Uma Balada para Lionor escrita por Anya Tallis


Capítulo 8
Do segredo do jogo


Notas iniciais do capítulo

Cá estão de volta Hermes, Lionor e Nigel. Este capítulo traz algumas informações resumidas de uma história anterior, de onde surgiram estes personagens. Quando reli o trecho, temi que estivesse confuso demais para todos que estão vendo os personagens pela primeira vez. Digo todos porque a outra história não foi postada. É centrada em Nina, irmã de Lionor, e em Alonzo, primo do rei. São aqueles personagens que aparecem no enterro de Lionor no Capítulo Um. Então vamos ao glossário de personagens, para que ninguém se perca.

Miguel - é o jovem rei, casado com Anna Thereza. A irmã de Lionor era apaixonada por ele.
Alonzo - filho ilegítimo de um tio de Miguel e Oriana, casou-se com a irmã de Lionor.
Oriana - irmã do rei e jovem esposa de Hermes.

Se ficou confuso, me avisem que eu explico melhor!



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Era a vez de Lionor portar a lança. Atirou-a com toda a força, mas a arma caiu no chão a poucos centímetros do cervo das montanhas, que fugiu saltitante por entre as árvores do bosque. Ela soltou um suspiro de decepçao. Era a primeira vez que Hermes e Nigel a levavam para caçar, e ela tentava dar o melhor de si, mas estava se saindo tão mal que já se arrependia de ter pedido para ir junto com eles. Costumava ser ótima em combates à curta distância e em simulações de lutas, mas não gostava de alvos distantes e velozes como animais da mata. Tinha certeza de que, se houvesse tentado acertar um homem numa guerra, teria sido bem sucedida; afinal, alvos humanos não poderiam sair saltitando velozmente pelo bosque.

– Não se preocupe, Lionor – Nigel a tranquilizou – nem o próprio rei consegue atirar dessa distância. Ele sempre perdia os melhores alvos.

Nem o próprio rei. O que é que ser rei tinha a ver com atirar bem ou mal? A garota desceu do cavalo, aborrecida, para lavar o suor do rosto na beira do Carpas. Debruçou-se sobre a beira do rio e as pontas do cabelo mergulharam no espelho d’água.

– Falando no rei, recebi uma carta dele hoje – contou Hermes.

– Ele mencionou meu nome? – Nigel desceu do cavalo e amarrou o animal na mesma árvore em que a noiva amarrara a montaria dela. – Perguntou se eu estava bem?

– Perguntou qual mão havia sido ferida.

Nigel ajoelhou-se ao lado de Lionor e mergulhou as mãos em concha na água do rio, levando-a à boca e sorvendo com avidez. A água do Carpas tinha uma coloração levemente escura, como chá, mas todos diziam que era limpa o suficiente para que pudessem bebê-la. Só então se deu conta de que acabara de molhar o curativo da mão ferida. Xingou, com um suspiro.

– Me sinto aleijado. Ainda bem que a mão ferida foi a esquerda. Se tivesse sido a direita, eu me tornaria quase inútil.

– Quando voltamos para a corte? – Lionor espremia as pontas molhadas dos cabelos. Gostava do norte, mas estava começando a se aborrecer com aquelas tentativas de assassinato por causa do vilarejo incendiado em Curvavento.

– Eu disse a Oriana que ficaria aqui até reconstruir todo o vilarejo – lembrou-lhes Hermes. A princesa Oriana era sua esposa, embora fosse mais nova que Lionor, e era irmã mais nova do rei Miguel – Mas preciso ir até a corte para acertar pessoalmente com o rei os detalhes do orçamento da reconstrução, e depois retornarei a essa fortaleza. Preciso que venham comigo.

Lionor quase comemorou com aplausos e risos, mas limitou-se a sorrir sozinha. Lembrava-se dos torneios, jantares e festas da corte, do camarote reservado para a família real e seus convidados, no qual sempre lhe era reservado um lugar – a irmã mais velha de Lionor, Nina, havia se casado com um primo bastardo do rei – e dos jardins imensos onde podia cavalgar com a princesa Oriana e as damas da rainha. E, é claro, havia o rei. Lionor costumava suspirar pelos cantos sempre que o via – não tanto quanto Nina, que sempre se declarara apaixonadíssima pelo rapaz desde que eram crianças, quando ele ainda era príncipe e as meninas o viam acenando na varanda do castelo. Mas aquilo havia sido antes, bem antes de Nina se casar, e de Miguel ter de tornado rei, quase ao mesmo tempo em que começava a ser acusado de ser grande admirador da bebida e dá companhia de rapazes. As fofocas e intrigas já não interessavam mais a Lionor como antigamente. Costumava se reunir com as outras moças da família e cochichar segredos dos nobres, quando visitavam a irmã mais velha no palácio. Mas quando seu acesso aos salões do castelo se tornou banal, e ela viu a si mesma, ao noivo, à irmã e ao cunhado como alvo do falatório dos desocupados, percebendo que não havia a menor graça no falatório, quando o alvo era ela mesma e sua família e amigos. Era a única parte ruim de estar na corte: quando Lionor os ouvia dizer que o filho da rainha não era era do rei Miguel, e sim do marido de sua irmã, ou que seu próprio noivo teria um caso com o rei. Em uma ocasião, contou a Nigel o que diziam, mas ele não escutou – ou fingiu não ter escutado – e ignorou solenemente o falatório. Nigel jamais parecia se incomodar com o que quer que fosse dito sobre ele. E, apesar de toda a superficialidade e a falsidade, aquele lugar atraía a ambos. Ela sabia que Nigel também mal podia esperar pelo retorno ao castelo. A outra metade do inseparável grupo de amigos do rapaz havia ficado na corte.

Naquele seu primeiro dia de caça, Lionor não capturou um animal sequer, e foi obrigada a escutar os rapazes comentando que a caça não era um esporte para donzelas, o que a deixou ainda mais aborrecida. Ela tentou lhes dizer que jamais treinara qualquer tipo de combate a distância, mas que, se estivesse perto, talvez conseguisse caçar algum animal.

– Pretendia abater um esquilo com uma espada? – Nigel gargalhou – Meu amor, olhe como se faz.

Ela se irritou com a demonstração gratuita de destreza do rapaz, quando ele atirou uma flecha numa árvore e uma ave qualquer despencou, grasnando, de cima dos galhos mais altos. Hermes concordou com Nigel, mas foi mais gentil.

– Melhor começar a treinar. Pode precisar dessa habilidade, um dia.

Retornaram para a fortaleza com algumas lebres, seis codornas e um porco selvagem que Hermes conseguira matar com apenas uma lança. Durante o trajeto de volta para a fortaleza, Nigel contava que, nas terras além-mar, os caçadores usavam pólvora em canos de ferro para caçar. E, por mais que Lionor tentasse imaginar que estranho tipo de arma seria aquele, não conseguiu visualizar o objeto em sua mente. Jamais ouvira falar naquilo, sempre achara que pólvora servia somente para bombas e fogos de artifício.

– É como os canhões dos piratas – Nigel tentou explicar – Só que você pode carregá-lo com uma única mão.

– Eu nunca vi um pirata – lembrou-lhe Lionor.

Havia muito mais carne do que podiam comer. Eram somente três pessoas, e mais alguns guardas nas entradas e saídas da fortaleza, mas ao todo não passavam de doze, e mais seis criados e um cura, além do prisioneiro. Lionor se deu conta de que era a única mulher no local, com exceção das criadas, e sentiu-se estranha em pensar que, naquele lugar, ela passava o dia fazendo atividades normalmente feitas por homens, como treinos e caçadas. Pensou que podia ser delicada pelo menos por um breve instante, e decidiu costurar a camisa de Nigel que havia se rasgado em um galho durante a perseguição ao porco selvagem. Terminou o serviço com tanta rapidez que, quando foi entregar a peça de roupa de volta ao rapaz, ele ainda estava no mesmo lugar em que ela o deixara: na enfermaria, refazendo o curativo da mão esquerda, que havia sido molhado no rio. O cura resmungava que Nigel nunca tomava cuidado com as ataduras, mas ele simplesmente fingia nada escutar.

Lionor parou à porta, aguardando pacientemente que o Cura terminasse de enrolar o linho branco na mão de Nigel. Correu os olhos pela enfermaria e viu Wilhem na maca, com os olhos cerrados, parecendo quase morto, não fosse pelo seu peito subindo e descendo com a respiração profunda. Aproximou-se cuidadosamente do prisioneiro e arregalou os olhos quando percebeu.

– Por que não recolocaram a corrente nos braços dele?

– Porque ele me parece mais morto do que vivo – respondeu Nigel – Duvido que agora possa sair correndo, como fez ontem.

Curiosa, a garota levantou a camisa do prisioneiro. Ele gemeu, e se moveu um pouco, mas não acordou. Estava sob o efeito de fortes infusões que o mantinham desacordado para o alívio das dores. Quando Lionor viu as manchas roxas, quase negras, ao redor do curativo, soltou um discreto gemido de agonia.

– Ele vai morrer?

– Ele teve um sangramento sério. – explicou o cura - Uma hemorragia interna. O mais provável é que morresse, mas acredito que o sangramento já tenha parado. Pode se recuperar, ou não. Quem sabe?

– Hermes trata os prisioneiros como lordes – resmungou Nigel, se afastando do cura assim que suas ataduras foram presas em volta de sua mão. Caminhou até o garoto ferido e fitou as manchas negras bem no local onde ele fora atingido pelo murro. – Sabe, eu até queria que ele acordasse. Queria que me ensinasse a jogar cartas. Ele ganhou de mim na estalagem, todos sempre ganham de mim nas cartas... e eu queria saber o segredo do jogo.

Lionor não pode evitar um sorriso. Nigel só poderia estar brincando, se achava que o seu prisioneiro lhe ensinaria a jogar cartas após ter sido ferido e, posteriormente, esmurrado no local do ferimento. Na melhor das hipóteses, o xingaria e o mandaria para o inferno.

– O segredo do jogo, Nigel Klein, é o blefe. – declarou a garota, solene. Inspirou profundamente – Sinta o cheiro do porco assando! Já deve estar sendo tirado da brasa. Venha, meu amor, antes que comam as melhores partes antes de nós.

Atirou-lhe a camisa que viera trazer, e correu porta afora, atraída pelos bons odores da caça sendo assada. Nigel ajeitou a camisa de Wilhem, para esconder debaixo do tecido as manchas escuras em sua pele alva. Inclinou-se sobre o rapaz para falar-lhe ao ouvido, quase em um sussurro.

– Não acho que sobreviverá a isso, Wilhem. Uma pena... em alguma outra vida, poderíamos ter sido amigos.

Seus dedos envolveram o pescoço pálido, e o garoto ferido moveu o rosto levemente, mas não acordou. Quando pensou em fechar o dedos ao redor da carne febril, ergueu os olhos e viu Hermes parado à porta.

– Às vezes você parece um fantasma – afastou a mão de Wilhem, decepcionado pela interrupção.

– Nigel, não é possível que eu não possa confiar em deixá-lo sozinho com um prisioneiro por um minuto sequer, sem que tente violar ou matar alguém.

– Vai se arrepender, Hermes – Nigel resmungou, enquanto passava pelo duque ao sair da enfermaria – E isto não é uma maldição. É um aviso de amigo.


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Notas finais do capítulo

Terminamos este capítulo com Nigel aprontando como sempre. O que acharam? Em breve novo capítulo. Vamos falar um pouco sobre armas, que tal? Nos vemos no próximo capítulo.