Uma Balada para Lionor escrita por Anya Tallis


Capítulo 7
De vestidos de mulher, maçãs e ouro


Notas iniciais do capítulo

Quando estava revisando este capítulo, fiquei espantada com a pequena quantidade de diálogos. É um capítulo dedicado a uma única personagem, então é normal que ela não tenha com quem conversar.
É curioso como a Lionor, que dá nome à história, nem apareça hoje. Como eu disse, Claire domina a área.
Sabe o que aconteceu comigo enquanto eu revisava este capítulo? Percebi que não me recordo de todos os detalhes do final da história. Imagino que dois anos sejam tempo suficiente para se esquecer de um livro lido, ou de um filme assistido, mas como eu posso esquecer de minha própria história? Vou correr para revisar mais capítulos, porque confesso que até eu fiquei curiosa agora. Boa leitura, espero que gostem!



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Claire sentiu o estômago roncar, mas não se moveu. Estava agachada atrás de uma árvore caída, olhando a fortaleza ao longe. Por mais que pensasse em um jeito de libertar Wilhem, parecia tão inábil e desamparada que jamais passaria pelos guardas, mesmo que levasse uma espada em cada mão, um machado, uma lança, uma marreta, um punhal – e, afinal, não tinha nenhuma dessas armas. E, ainda que tivesse, jamais saberia como usá-las. A única arma que lhe fora permitido aprender, sob a farsa de um esporte, havia sido o arco e a flecha. Tinha uma mira razoável, mas aperfeiçoara com o tempo, embora somente com alvos fixos. Nunca havia tentado atirar em lebres e esquilos, como Wilhem fazia durante suas caçadas com os companheiros de estudos no leste. Além do arco, o garoto treinara com espadas curtas e longas, punhais e escudos, mas jamais permitira que a irmã de criação treinasse tais habilidades. Dizia que não era apropriado para uma mulher que desejava se casar e ter filhos; dizia-lhe que aprendesse a bordar, fiar, a tocar o alaúde, a recitar poesias e cuidar da casa. Por um momento, Claire sentiu inveja de Lionor. Pelas conversas que escutara no caminho para a fortaleza, o próprio noivo a ensinara a lutar com espadas e a incentivava a treinar cada vez mais para se tornar tão forte e hábil quanto os homens maiores e mais fortes que ela. Como poderia enfrentar pessoas tão bem preparadas para o combate se era somente uma menina preparada para ser uma dona de casa?

Se possuísse dinheiro, subornaria os guardas para entrar furtivamente na madrugada e resgatar Wilhem. Se não fosse donzela, até consideraria a hipótese de suborná-los com outra moeda que não fosse ouro. Mas não havia a menor chance para ela, sozinha e desarmada, sem um pão sequer para alimentá-la, vencer os homens que mantinham o rapaz prisioneiro. Suspirou, aborrecida. Precisava pensar em algo. Costumava escutar inúmeras histórias de bravos cavaleiros enfrentando perigos para salvar donzelas em apuros, mas jamais escutara uma história em que a donzela deveria salvar o rapaz.

Quando começou a escurecer, cogitou a ideia de deixar o seu esconderijo na entrada do bosque. Havia mais perigos naquele bosque do que nas masmorras, nas quais, ao menos, estaria a salvo dos saqueadores, estupradores e animais selvagens que poderiam lhe fazer mal. Se bem que aquele miserável do Nigel a havia obrigado a tocá-lo, e ela sentia ódio apenas com a lembrança. Jamais tocara um homem daquela forma, e ainda por cima, sendo sem o seu consentimento! Desejou ter a chance de acabar com ele com as próprias mãos. Era uma lástima ser fraca.

Contornou a orla do bosque apressadamente, à medida que a escuridão aumentava. Não sabia para onde ir; a distância da fortaleza para a estalagem era muito grande e perigosa para ser feita por uma moça sozinha à noite. Não se lembrava de ter visto vilarejos ou casas isoladas nas proximidades, mas conseguia ver fumaça e um clarão mais adiante; só podia significar uma aldeia, e uma chaminé, fora da estrada por onde a carroça passara – somente isso poderia explicar por que não vira nada além de mato dos dois lados do acostamento quando fora levada amarrada a Wilhem.

Seguiu a direção da fumaça por alguns minutos, atravessando um caminho de grama que ia até a altura de seus joelhos. Pequenas bolinhas verdes grudavam-se à sua saia, e quando ela se inclinava para tirá-las do tecido, mais vinte apareciam para cada dez que eram arrancadas. Desistiu da tarefa e seguiu adiante.

A aldeia era minúscula, não mais que quinze ou vinte casinhas pobres, a maioria desocupada. Mais da metade do vilarejo parecia ter fugido com medo da peste, Claire concluiu. Uma bobagem; estavam distantes o suficiente de Curvavento, e só seriam contaminados se fossem visitados por algum portador da doença. Talvez não soubessem da forma de contágio, para a sorte da garota. Bastava entrar em uma daquelas casas, e teria um teto para dormir.

Esgueirou-se silenciosamente por trás das casas, sem desejar que os poucos habitantes das casas ocupadas a vissem. Haviam alguns homens e mulheres nas portas das casas, choro de crianças e cheiro de pão assado e mingau nas panelas. Não desejava parecer uma assaltante furtiva, pois receara que a pudessem assassinar ou prender se a vissem tentando invadir uma das residências. Teve o cuidado de esperar que ficasse mais tarde, escondida atrás de um muro parcialmente derrubado, com as mãos em volta do estômago que roncava e doía insuportavelmente.

Devia ter adormecido devido ao cansaço e à fome, pois quando abriu os olhos estava sentada, com as costas no muro, e o vilarejo estava completamente deserto e silencioso. Sua primeira reação foi procurar a casa mais isolada de todas, a fim de que o barulho da porta sendo arrombada não chegasse aos ouvidos dos moradores que dormiam. Haviam duas opções, mas Claire obviamente optou pela que tinha uma macieira no quintal, pois já não aguentava mais a fome que a enfraquecia. Somente depois de devorar quatro maçãs vermelhas e a parte boa de uma quinta, parcialmente enegrecida, é que começou a tentar abrir a porta. Forçou com o ombro, mas a porta não cedeu, e ainda lhe deu uma dor insuportável. Chutou, mas o barulho provocou uma revoada de morcegos da macieira, assustando-a a ponto de derrubá-la no chão. Enquanto se levantava, percebeu que havia uma janela já arrombada na lateral da casa. Alguém já tivera a mesma ideia que ela antes.

Passou pela janela com dificuldade, pois seu quadril era largo e usava sapatos desconfortáveis que não lhe permitiam movimentar os tornozelos com muita liberdade. Quase caiu com o rosto no chão, quando passou para o lado de dentro e se viu imersa na mais completa escuridão. Tateou às cegas, os pelos do corpo arrepiados. E se houvesse algum assaltante escondido ali? E se houvessem ratos, e cobras, ou qualquer tipo de perigo que ela não estava vendo? Nunca tivera medo do escuro em sua própria casa, mas aquele lugar lhe era desconhecido. Suas mãos trêmulas tocaram em mesas vazias, armários escancarados sem nada em suas prateleiras, e seus pés tropeçaram em cadeiras caídas pelo chão. Aparentemente, alguém já saqueara aquela casa antes dela. Claire escancarou as janelas para que a lua cheia derramasse seu brilho prateado sobre a escuridão da casa, e só então conseguiu encontrar algumas lamparinas com o azeite quase no fim. Era melhor que nada. Acendeu duas, colocando uma sobre a mesa e segurando a outra com uma das mãos geladas.

Abriu todas as gavetas e armários, a dispensa, as panelas e até mesmo o compartimento de lenha do fogão, mas tudo estava completamente vazio. A única coisa que os saqueadores não haviam levado estava dentro de um guarda-roupas, em um dos quartos da casa: um punhado de vestidos femininos, de variados modelos e cores, mas todos do mesmo tamanho. Descansou a lamparina sobre o criado mudo e despiu-se. Escolheu um vestido cinza, sóbrio e sem graça, mas não lhe serviu. Tentou o rosa, o azul celeste, o branco com fitas vermelhas, o amarelo ouro, mas percebeu que haviam sido feitos todos para a mesma mulher, que obviamente era ou havia sido mais magra que Claire. Não que a garota fosse gorda; mas tinha quadris muito redondos e uma barriguinha saliente que jamais a incomodara, pois costumava apertá-la com corpetes quando se vestia. Mas tudo que lhe pertencia havia sido feito sob medida. Vestir roupas dos outros era sempre difícil para ela. Desistiu de tentar, vestiu novamente seus trajes encardidos, e jogou em uma sacola de linho todos os vestidos que encontrara. Se não podia usá-los, venderia na feirinha no dia seguinte. Vasculhou o armário e encontrou três pares de sapatos femininos que também não lhe serviam, e jogou-os na sacola também.

Estava tão acostumada com a cama de pedras da sua cela na masmorra que, quando se jogou no colchão macio da cama, não se importou com o cheiro de mofo e baratas do lençol, nem com a poeira que fazia coçar o seu nariz. Usando a sacola de linho como travesseiro, dormiu profundamente , com sonhos confusos, Wilhem soltando fogos de artifício que estouravam a curta distância, ele rindo e mostrando a ela como era maravilhoso, sonhou com a feirinha, com morcegos e com Nigel forçando-a, não, ela não queria que ele se aproximasse, por favor...

Acordou sobressaltada, com um raio de sol ferindo-lhe os olhos. Sem perceber, dormira bem debaixo de uma das janelas que escancarara. Bocejando, decidiu partir imediatamente para a feirinha, mas o corpo não a obedecia. Foi preciso mais de meia hora para que conseguisse se levantar com o saco de linho nas costas e deixasse a casa, sem se preocupar em fechar as janelas que abria, e enchendo os bolsos com maçãs meio esverdeadas.

Esgueirou-se pelo fundo das casas como fizera ao chegar, mas percebeu que alguns moradores a viam partir com a sacola nas costas, e cochichavam entre si. Começou a correr imediatamente, antes que começasse a escutar gritos para que pegassem a ladra. Não achava que estava roubando. Na verdade estava, mas não queria pensar assim.

Parou de correr quando chegou à estrada, e subiu em uma pedra na beira do Carpas para ver a fortaleza. As carroças ainda estavam lá, assim como os cavalos. Não podia evitar o medo de que o duque partisse com Nigel e Lionor para a corte, e levasse consigo o prisioneiro, para um julgamento. Tirou uma maçã do bolso e comeu-a, enquanto caminhava na direção da feirinha. Antes mesmo de vê-la, já sabia que estava chegando; o som das vozes negociando, o cheiro de perfumes e especiarias, brados e xingamentos, carroças e cavalos se aproximando. A feirinha ficava no porto onde as mercadorias eram desembarcadas, trazidas do sul para o norte e vice versa. Havia uma quantidade tão grande de barracas e barcos que Claire não sabia quem deveria abordar primeiro. Havia tantos homens e meninos que ela pensou que talvez não encontraria ninguém que se interessasse por vestidos e sapatos, até perceber um local escondido onde se vendiam mercadorias de segunda mão, provenientes de furtos e saques. Viu uma mulher idosa de pele morena e queixo proeminente com três ou quatro arcas cheias de vestidos enfeitados e bordados, muito semelhantes aos que eram usados pelas damas na corte. Alguns eram até mesmo dignos de uma princesa ou rainha. Aproximou-se e cumprimentou-a.

– Tenho sete vestidos que ganhei de doações na igreja, mas engordei e nenhum deles cabe mais em mim – mentiu Claire, apertando a pele da barriga para sustentar a mentira – E já não tenho mais nada para vestir. Gostaria de realizar algumas trocas.

– Deixe-me ver.

A menina abriu a sacola e mostrou os vestidos, um a um. A velha fez uma careta.

– Então, com que pensa que pode trocar seus trapos de camponesa por um de meus ricos trajes bordados e enfeitados? Se estiver realmente necessitada, e somente para que não fique nua, posso trocar três de seus panos por um dos meus vestidos mais simples.

Claire se sentiu roubada. Os vestidos que encontrara na casa não eram tão desprezíveis quanto a velha afirmava, mas não estava em condições de negociar. Se eram assim tão valiosos, poderia trocá-los por comida depois. Não podia permanecer somente com um único vestido, aquele com o qual fora presa, e que já estava encardido e suado.

– Feito. Mas tenho sapatos também, e quero moedas por eles. – Não se incomodava em permanecer com os seus próprios. – E posso pelo menos escolher os vestidos que quero?

A velha acenou com a cabeça, como se fosse pensar no caso dela. Revirou as arcas e ergueu os vestidos pelos ombros, tentando ver quais deles seriam grandes o suficiente para ficarem confortáveis em Claire. Separou um preto e um verde; mas eram sete os vestidos que a menina trouxera para trocar. Seis dos dela foram trocados por dois da velha, mas ainda restara um. Em troca daquele, a vendedora lhe deu um traje simples, de tecido barato, mas que caberia certinho no corpo da garota. E, ao examinar os sapatos, a mulher entortou a boca e despejou um punhado de moedas nas mãos dela.

– Só isso? – Claire gemeu.

– São usados. O que pensa que valem? – e enxotou-a – Está espantando a freguesia com sua péssima aparência.

Somente naquele momento Claire se deu conta de como estava andrajosa. Parecia mesmo uma fugitiva de uma prisão, com os cabelos oleosos e soltos sobre os ombros e aquela roupa em desalinho. Usou uma das moedas para adentrar uma estalagem, lavar as mãos e pedir uma refeição farta, que devorou como se não comesse há décadas. Tomou um banho longo e somente quando foi se vestir é que percebeu o que tinha feito com a mercadoria que furtara. Infeliz, percebeu que tinha menos da metade das roupas que conseguira, duas delas luxuosas demais para que passasse despercebida andando com elas na rua; afinal, se não era nobre, todas a confundiriam com uma ladra se começasse a usar veludo bordado e renda fina da noite para o dia. Optou pelo terceiro vestido trocado, de seda barata e quase sem detalhes. Quando o desenrolou da sacola, percebeu que havia um broche preso no colarinho. Um broche de ouro. O sorriso brotou nos seus lábios quase imediatamente: que bom que a velha não percebera o adereço na gola da roupa, caso contrário, nunca a teria trocado pelos seus trapos. Pela primeira vez desde que retornara ao norte, a sorte havia lhe sorrido.


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Notas finais do capítulo

Como este capítulo é apenas uma transição, e não possui exatamente muita ação, pensei em postar o próximo com um intervalo menor... vou correndo aqui revisar o seguinte! Até mais!