Uma Balada para Lionor escrita por Anya Tallis


Capítulo 22
De ódio e perdão


Notas iniciais do capítulo

Cheguei, trazendo mais um capítulo. Este é focado especialmente em Wilhem, e em suas reflexões. Fiquei desanimada ao perceber que não havia dado um nome a esse capítulo, e tive que criar um no momento da revisão. Isso é que dá, abandonar os textos sem títulos por praticamente dois anos... confesso que nem sempre tenho um nome bom para os capítulos, e sugestões são sempre bem vindas.
Quase não corrigi nada nessa parte, fiquei até desconfiada. Espero que gostem, já vou continuar a revisão para deixar mais um capítulo pronto para ser postado em breve. Até mais!



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O ranger da porta fez o seu coração acelerar. Wilhem agarrou o punhal ao seu lado, os dedos tensos em volta do cabo fazendo uma força desnecessária para mantê-lo firme. Caminhou, pé ante pé, pelo corredor sujo e empoeirado, quase tropeçando em um tapete encardido antes de chegar à sala. Sentiu um arrepio ao ver que havia alguém no cômodo, mas a sensação ruim durou apenas alguns poucos segundos antes de perceber que era Claire quem havia chegado.

– Mas que diabos... – ele suspirou, aliviado, e atirou o punhal a um canto – É por isso que odeio invadir casas abandonadas. A todo instante penso que o dono da casa estará de volta a qualquer momento e vai nos expulsar a golpes de foice.

– O que eu odeio, querido irmão, é dormir ao relento com a cabeça apoiada em uma trouxa de roupas – Claire tirou o chapéu florido, e os cabelos ruivos cascatearam-se por suas costas, meio amassados e despenteados – Notícia boa e notícia ruim.

– A ruim primeiro. Não aguento a curiosidade.

Claire fechou a porta devagar. Haviam se refugiado em uma casa simples, no meio de um sítio abandonado, sem animais ou plantações, mas apenas um poço seco e algumas janelas quebradas, após duas noites dormindo ao ar livre, sob árvores frondosas. Wilhem sempre passava a noite acordado e o dia inteiro dormindo, para revezar com Claire a vigilância de seus pertences e integridade física; depois disso, mesmo após conseguirem abrigo, o rapaz continuava sem sono durante a noite e dormindo somente quando Claire acordava. Estava sentindo tanto sono que as pálpebras insistiam em querer se fechar involuntariamente.

– Bem, acabei de encontrar um de meus informantes da corte... soube que há uma ordem de execução contra nós – ela falou, aflita. – Somos acusados de assassinar todos aqueles guardas em quem Baltazar atirou, e de tentar matar Nigel Klein.

– Execução? – Wilhem levou as mãos à cabeça, quase sem perceber, correndo os dedos pelos cabelos.

– Wilhem, você não teve culpa. Não matou ninguém. Na verdade, nem sabia do plano. A culpa foi minha, eu tive a ideia, e o corsário... ele matou também... eu sei que nunca atirei contra ninguém, mas é tudo culpa minha... – ela se desesperou, e levou as mãos ao rosto, soluçando – Ah, Wilhem, não tem mais jeito para nós!

Ele a abraçou, e sentiu os soluços sacudirem o corpo da garota. Sentiu suas lágrimas banharem-lhe o pescoço, e quase chorou com ela, mas as lágrimas não vinham.

– Para nós dois juntos, não tem mais jeito... – ele acariciou-lhe os cabelos, para confortá-la – Mas para você, sozinha, há um jeito. Fuja, Claire.

– Sozinha? Jamais! – ela se afastou para olhá-lo – Já fui forçada a abandoná-lo uma vez, jamais o deixarei para trás de novo. E o que eu farei da minha vida sozinha, Wilhem? Meus pais estão nas cinzas de Curvavento, em nossa casa incendiada; se você for executado, nada mais valerá a pena para mim.

Um nó na garganta impedia Wilhem de responder. Apertou-a contra si com tanta força que temeu poder esmagá-la. E, por um momento, reviveu em sua mente tantos momentos que haviam passado juntos, no vilarejo ou na viagem que haviam feito; o momento que ela o viera resgatar da fortaleza, e as noites dormindo lado a lado no abrigo de desamparados. E, em seguida, foi como se vislumbrasse o futuro – e não sabia se era delírio ou um planejamento. Conseguiu ver a si mesmo se rendendo, acusando a si mesmo de todos os crimes e isentando Claire de qualquer culpa. Pouco lhe importaria ser executado se isso significasse que ela viveria. Se pudesse arranjar-lhe um bom marido, para garantir-lhe o sustento! Mas não teria tempo para isso. Ademais, qual homem iria querer desposar uma moça suspeita de ser mandante de um assassinato de membros da guarda real, que nem mesmo tinha um dote? Ela tinha razão, estavam perdidos.

– Disse que tinha uma notícia boa. Não creio que possa haver algo bom depois disso.

– Ah, quase ia me esquecendo – ela se afastou outra vez, e enxugou as lágrimas com as costas das mãos – Aquele bordel da beira da estrada tem um restaurante bem do lado. Disse que eu poderia varrer o chão e lavar os pratos em troca de um quartinho para nós dois. É bem melhor que esta casa abandonada, pois há água para beber e três refeições diárias.

– Claire, eu jamais pensei que iria vê-la lavando pratos e varrendo o chão. Sei que não somos de família nobre, mas nunca nos vi como miseráveis. Permita-me que lhe aconselhe a recusar, e deixe que eu trabalho pelo nosso sustento. Sinto-me envergonhado quando parece que jamais estarei curado da lança que me atravessou. Vê, parece ter atravessado somente a carne. Não atingiu nenhum órgão. Posso trabalhar, tanto quanto você.

Mas, e quando eu me for? Ele sentiu a cabeça começar a doer, como se o esforço para arranjar uma solução para seus problemas estivesse consumindo-lhe a mente. Levou a mão às têmporas, quase sem perceber. Claire falou alguma coisa, mas ele não conseguiu escutar nada além das últimas palavras.

– ... que tenha passado dois anos estudando fora para se tornar um homem culto, e que depois seja obrigado a fazer trabalho braçal para se sustentar.

– Estudei para me tornar um homem culto, mas virei um criminoso – Wilhem a interrompeu, quase gritando. O sangue ruim, pensou, o sangue de corsários que corre em minha veia.

Por um instante, imaginou como seria sua vida se não houvesse sido dado como presente à família de Claire. Poderia estar em alto mar, comandando um navio, ou limpando o seu convés, não importava. Sentiria o chão oscilando sob seus pés a cada onda que balançasse o navio. Sentiria o gosto do sal, o cheio do sal, o toque do sal. E o sol torraria-lhe a pele, e ele interceptaria navios de carga, apontaria os canhões para os carregamentos de carne salgada e perfumes de Frills, os tecidos exóticos do Além-Mar. Navegaria do rio até o mar, e de novo até o rio novamente, buscando mercadoria e vendendo, e roubando, e vendendo, e trocando, e as moedas de ouro tilintariam em suas sacolas e arcas, e o sol pintaria de prateado o vasto mar à sua frente... e ele talvez tivesse uma mulher para amar, mas uma que a amasse também, como homem, não uma que o visse como um irmãozinho. Soltou um longo suspiro.

– Vamos fugir de barco. Barco não, navio.

Claire percebeu que era uma brincadeira, mas ainda assim objetou.

– E para onde iríamos?

– Para Frills – foi o primeiro nome que lhe veio à mente.

– Frills é uma terra gelada de gente selvagem e mal-educada, que come carne quase crua e se veste de pele de animais, e que mora em casas de madeira, e que toma cerveja preta em baldes. É gente que mata um ao outro com machado, por motivo banal. E eles tem mulheres que usam calças compridas e vão para as guerras no meio dos homens, e quando eles morrem, são queimados em vez de enterrados. E as palavras na língua deles são tão longas que uma palavra de cinquenta letras pode ser traduzida por uma frase inteira ou até duas, na nossa língua – e, com uma cara de nojo – pelo sobrenome, Nigel deve ser de Frills.

Assim que Claire mencionou o nome do rapaz, Wilhem sobressaltou-se. Jamais se preocupara com a estranheza do sobrenome do rapaz, mas somente agora percebia que ele realmente era estrangeiro. São queimados em vez de enterrados. Queimados. É por isso que ele considerou absurda a nossa reivindicação de enterrar nossos mortos... para ele, se os corpos já estavam queimados, era mais que suficiente... pensa que nos prestou um favor, que aquele gesto equivalia a enterrá-los, e não foi por maldade, foi como fazer um favor...

– São queimados... – Wilhem pensou alto, e Claire lhe lançou um olhar interrogativo. Ele fez um gesto impaciente – Preciso descansar, não dormi nada durante a noite. A cabeça já me começa a doer.

Mas, quando deitou, o sono não veio. O colchão era mais desconfortável e sujo do que qualquer lugar onde já haviam dormido na vida, e uma colcha trazida do Consolo dos Desamparados havia sido colocada sobre a cama, por causa da poeira e das manchas de umidade do lençol. A claridade mal entrava pelas janelas quebradas, mas Wilhem teve que colocar o braço sobre os olhos para evitar que o sol o incomodasse. Não conseguia parar de pensar na informação que Claire lhe dera sem querer. Queimados, em vez de enterrados. Não, não podia usar aquele argumento para perdoar Nigel. Não podia perdoá-lo, jamais! Tenho que odiá-lo, ele abusou da minha Claire, esmurrou-me quando eu estava ferido. Mas eles o haviam atraído para uma armadilha, Claire se insinuara para ele. E o rapaz esmurrara Wilhem para defender Hermes, quando o garoto tentara fugir. Qualquer um faria isso por um amigo, ainda mais sendo parte da guarda e o amigo um Duque. Estou tentando justificá-lo! Mas eu tenho que odiá-lo.

– Ele abusou dela... – murmurou, e surpreendeu-se de tal forma ao ouvir o som da própria voz que olhou ao redor, sobressaltado, para ver se a garota estava por perto para escutar. Felizmente, estava sozinho.

Rolou na cama, repetindo centenas de vezes em sua mente os motivos que tinha para odiar Nigel, mas apenas um vinha à sua mente. Abusou dela, abusou da minha Claire. Se não se agarrasse àquele pensamento, acabaria por dar razão àquele desgraçado. A cabeça continuava a doer, e agora latejava. Frills... por que mencionara aquele lugar infeliz, que nem conhecia, terra de gente estranha com nomes de pronúncia complicada? Nem sabia como escrever o sobrenome do maldito. “Clain”, “Klaine”, ouvira centenas de vezes. Na realidade, o próprio Wilhem poderia ser de Frills; afinal, não sabia a origem da sua família de verdade – os corsários que o haviam abandonado. E a gente daquela terra era malandra; não seria difícil que hordas de piratas atravessassem o mar para saquear no caminho para Curvavento. E eram todos muito claros, com cabelos claros e muito escorridos. Não seria espantoso se houvessem pessoas ruivas no meio deles.

– Não – ele resmungou, o rosto afundado no colchão. Um “não” que negava todos os seus pensamentos de uma só vez. Não, ele não podia ser de Frills, e mesmo que fosse, jamais o saberia; não, Nigel não merecia o seu perdão. Não, não...

Decidiu que tinha que matá-lo antes que conseguisse perdoá-lo. Já adiara demais a sua vingança. Forçou-se a se levantar, a cabeça doendo ainda mais que antes, e caminhou devagar até a sala da casa abandonada, um olho aberto e um fechado, como se isso fosse capaz de minimizar o incômodo que a luz lhe causava.

– Claire – ele parou, quando a encontrou remendando um cobertor velho, sentada no chão da sala – Como é o nome do seu informante no palácio?

Ela ergueu os olhos, surpresa.

– Tenho vários, mas o que mais conversa comigo se chama Vicente. Ele sela os cavalos da família real e os de seus bajuladores também...

– Interessante. Peço-lhe que o apresente a mim, Claire. Gostaria de tratar de alguns assuntos com esse Vicente.


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Notas finais do capítulo

Confesso que realmente gosto de piratas/corsários, e um dia escreverei alguma coisa sobre eles! Tenho histórias que se passam em Frills, a terra de onde vem Nigel Klein e muitos outros personagens dessa "franquia" (nossa, não era essa a palavra que eu ia usar, mas não me ocorreu mais nada). Enfim, Frills é cenário de duas outras histórias que posso postar futuramente, mas as duas ainda estão incompletas. É um lugar muito interessante, mesmo! Enfim, não percam o próximo capítulo, voltaremos à corte, com Nigel e os demais.