Uma Balada para Lionor escrita por Anya Tallis


Capítulo 13
Da Corte


Notas iniciais do capítulo

Conforme prometido, estamos de volta à corte, com Lionor, Nigel, o rei Miguel, Alonzo e Hermes. Quero que prestem bastante atenção nos presentes recebidos pelos personagens! Digo isso por causa da distância entre as postagens, e imagino que seja complicado se lembrar de pequenos detalhes meses depois de mencionados... Se fosse um livro impresso, daria para ler em poucos dias, mas infelizmente (ainda) não é.
Gosto muito desse quarteto de personagens (Hermes, Alonzo, Nigel e Miguel), e acho que escreveria centenas de histórias sobre eles, sem me cansar. São meus xodós, com certeza. Qualquer dia posto curiosidades sobre cada um, apenas para informar e divertir vocês.
Vamos ao capítulo, espero que gostem!



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As canecas de estanho se chocaram com tanta força que uma parte do vinho derramou-se sobre a mesa e sobre os rapazes que brindavam. Os quatro se afastaram, com as mangas das camisas molhadas, quase chocando-se contra as mulheres que os acompanhavam, ao voltarem para seus assentos no banco de madeira ao redor da mesa do banquete improvisado ao ar livre.

Haviam atrasado a viagem por um dia inteiro, depois que Hermes acordara pálido e cansado, alegando indisposição. Apenas Lionor sabia o motivo da suposta enfermidade, mas não contou nem mesmo a Nigel. Havia feito um curativo no duque, durante a madrugada, e dado a ele um pouco de infusão para as dores. Já no palácio, parecia um pouco melhor, embora respirasse com uma certa dificuldade e estivesse mais calado que de costume. Após o brinde, decidiu arrastar- se para seus aposentos com sua esposa, a jovem princesa Oriana, sem comer sequer uma fatia do apetitoso faisão com pêssegos que havia sido colocado no centro da mesa.

– Está indisposto, deve ser a idade – brincou o rei Miguel, repousando a caneca sobre a mesa.

– Ele tem somente dez anos a mais que você – lembrou-lhe o primo, Alonzo.

Para Lionor, ainda soava estranho que o marido de sua irmã chamasse o rei pelo prenome, e se dirigisse a Sua Majestade como “você”; e não era somente o rapaz que o tratava dessa forma, sempre que estavam falando em particular: Nigel e Hermes agiam da mesma forma. A garota admirava a amizade deles, pois não tinha sequer uma amiga na corte. Quando falava com a princesa Oriana e a rainha Anna Thereza, era sempre com reverência, mesmo quando fofocavam e falavam futilidades. Sabia que estava muito abaixo das duas, era somente a irmã da mulher que o primo do rei havia abandonado. E, por vezes, sentia-se humilhada com isso, embora as mulheres da família real jamais houvessem falado sobre a irmã de Lionor com descortesia.

Certa feita, Hermes lhe aconselhara a impor respeito. Não era nobre, mas não era de baixo nascimento; sua família era rica e influente, e sua irmã se tornara nobre pelo casamento, mesmo tendo sido desposada pelo filho ilegítimo de um membro da família real. Não devia deixar que a olhassem como uma simples amante de um guarda do rei. Mas Lionor não sabia impor respeito. Encolheu-se com um prato de ameixas frescas, ouvindo as conversas animadas dos rapazes sobre assuntos que ela desconhecia. Faziam piadas maldosas que ela não entendia. Nigel falava com o rei sem palavras, somente com um gesto ou um olhar, e os dois riam de algum bobagem oculta que ela jamais saberia do que se tratava. Alonzo batia no tampo da mesa e pedia mais bebida antes que seu copo estivesse vazio. Quando a morena curvilínea que servia o vinho se sentou no colo do conde e beijou-o nos lábios, debaixo de uma enxurrada de piadas de Nigel e do próprio rei, Lionor desviou o olhar, indignada. Mal podia acreditar que aquele rapaz largara a sua bela e fina irmã para se beijar em público com uma criada que se vestia e agia como uma prostituta.

– Caridad, por favor, estão quase derrubando a mesa – o rei fez um gesto para que ela se levantasse, e pareceu reparar finalmente em Lionor – Pobrezinha, não está acostumada a conviver com um bando de loucos.

– Na verdade estou, Majestade – ela lamentou não ter ido para a cama quando Hermes e Oriana retornaram para a torre.

Antes, costumava achá-lo tão belo e imponente que mal se atrevia a encará-lo sem corar. Ele continuava belo, e imponente, mas ela já começava a se acostumar à sua presença, embora ainda o tratasse com extrema polidez. Jamais teria com ele a intimidade que o restante do grupo demonstrava.

– Amanhã iremos... Garota, tenha a bondade de sair de cima dele, preciso falar algo sério – Miguel espantou Caridad com um gesto afetado, como se estivesse tangendo um animal de cima de Alonzo – Amanhã iremos pagar a recompensa pela empreitada de Curvavento. Se desejarem algo além do ouro, podem falar agora.

– Eu queria ter ido – lamentou Alonzo – Mas Miguel disse que não era necessário quatro pessoas para jogar uma tocha num vilarejo.

– Só foram necessárias duas – contou Nigel, com a mão na frente da boca por não ter terminado de mastigar. Engoliu a comida – Hermes ficou na fortaleza, dando comida para aquela ave dos infernos. Bem , eu desejo algo além do ouro... mas eu não pensei ainda.

Não havia nada que Nigel quisesse que o rei simplesmente não lhe desse, deliberadamente. Escolher uma recompensa por uma empreitada lhe parecia tão vazio que precisaria parar um pouco para pensar. Já Lionor tinha certeza absoluta do que iria pedir, mas não quis parecer demasiadamente ansiosa, e esperou que os rapazes silenciassem para que falasse.

– Eu queria... o direito de participar de um torneio.

Nigel lançou-lhe um olhar de desaprovação. Não está pronta para lutar no meio de rapazes, ele sempre lhe dizia, precisa melhorar muito, iria se ferir demais, não existem regras diferentes para moças no torneio. Parecia aborrecido por ela não ter pedido sua opinião antes. O rei pareceu ligeiramente desconcertado.

– Na verdade, senhorita, eu havia pensado em algo material. Ou em um título, se achar conveniente.

Ela não queria um título. Títulos eram vazios. Nigel Klein tinha o título de Condestável e ela nem sabia para que servia tal denominação. Alonzo era Conde, e mal tomava conta de suas terras. Não queria somente enriquecer, acomodada sob um título; queria sentir a emoção de participar de um torneio de verdade.

Ao perceber a expressão de desapontamento da garota, Alonzo interveio.

– Leve-a à sala de armas, Miguel, talvez ela se interesse por alguma coisa de lá.

A sala de armas ficava em um anexo da torre da guarda, próximo de onde o grupo se encontrava jantando e bebendo. A maior parte das armas utilizadas pela guarda ficava pendurada nas paredes do grande salão. Espadas de diversos tamanhos e formas, escudos, punhais, arcos, flechas, bestas, dardos. As paredes pareciam reluzentes com o metal prateado e dourado alternando-se, além de bainhas decoradas com pedras preciosas que refletiam a luz colorida nos outros objetos. O grupo se dirigiu para o local, e a criada de sorriso lascivo e andar provocante os acompanhou, sempre pendurada em Alonzo, para onde quer que fosse.

– É... incrível – Lionor mal sabia para onde olhar primeiro.

– Ainda não viu nada – Miguel pegou duas espadas e atirou-as a Nigel. O rapaz pegou uma delas com a mão direita, mas deixou a outra cair, com um ar de desapontamento – Havia me esquecido de que estava ferido.

– Minha mão está em perfeitas condições – mentiu Nigel, apanhando do chão a espada que caíra, e segurando-a firmemente, escondendo a dor que sentia em uma expressão desafiadora. – Vocês dois, que tal?

Lionor sobressaltou-se quando compreendeu a proposta de Nigel. Queria que o rei e seu primo lutassem com ele ao mesmo tempo. Quase se desesperou e pediu que não o fizessem, pois a mão de Nigel ainda não estava totalmente curada, e seus movimentos eram limitados. No entanto, quando as espadas se chocaram, se afastaram e voltaram a se afastar, com movimentos precisos e bem ensaiados, e quando eles se olhavam e faziam gestos com a cabeça, a garota compreendeu que todos os passos eram ensaiados. Era como uma dança com espadas; cada som do metal de chocando ressoando pelo salão, cada avanço ou recuo, cada gesto era cuidadosamente planejado. Sempre ouvira falar que alguns torneios eram meras simulações, e que os competidores ensaiavam juntos para fazer um espetáculo à multidão, combinando até mesmo quem ganharia e quem perderia. Pareciam estar fazendo uma simulação como aquelas, mas haviam combinado que Nigel venceria e ele não conseguiu. Quando sua mão esquerda fraquejou, Alonzo tirou-lhe a espada, e ele se rendeu. Não conseguiria lutar contra dois ao mesmo tempo com uma arma apenas. Estava ofegante, e levou as mãos aos joelhos. Caridad aplaudiu, saltitante, e parabenizou Alonzo com gritos de incentivo que fizeram Lionor se envergonhar. Não adiantava mais gritar, depois da luta terminada... Tentou não odiar aquela garota, mas achou-a tão estúpida. Será que ela nunca saberá que ele ainda ama a condessa, e só a procura para não dormir sozinho?

– Está péssimo, caro amigo! – o rei o provocou. Atravessou o salão à procura de algo e, quando voltou, trazia um enorme disco de metal ricamente decorado – Não precisa de uma espada a mais, na mão esquerda, e sim de um escudo.

Entregou o objeto a Nigel, que o segurou enquanto se desmanchava em agradecimentos. Lionor aproximou-se para ver melhor. Estava encantada; seus dedos pequenos tocaram o metal gelado. Não achava que aquele escudo seria resistente e valioso o suficiente para que pudesse pedi-lo como recompensa. Torceu o nariz.

– Pode proteger contra qualquer tipo de arma? – ela indagou, apertando os olhos para os desenhos gravados na superfície do objeto.

– Menos contra bala de canhão – brincou Alonzo – Mas como é proibido o uso do canhão em terra firme... agradeça a Sua Majestade, pois eu detestaria ver um canhão apontado para mim.

Proibido? – perguntou Lionor, intrigada. Nunca ouvira falar daquela lei.

– Sim, proibido – confirmou Miguel, parecendo orgulhoso – Canhões e todo tipo de arma que usa pólvora são proibidos em terra firme. Pode ser comum e liberado no além mar, mas em nosso reino apenas malfeitores os utilizam. Fiz o decreto quando ainda era príncipe regente, fico surpreso por ninguém saber.

A maioria dos habitantes do reino jamais vira um canhão ou uma espingarda pessoalmente, e metade destes jamais ouvira sequer falar que existissem tais armas. Lionor se recordava do brilho dos fogos de artifício colorindo um céu estrelado, certa noite, no palácio, e ela desejara tê-los em sua festa de casamento, mas alguém – talvez sua irmã, não se recordava ao certo – lhe dissera que os fogos era permitidos somente à família real. Ninguém mais estava autorizado a utilizar ou mesmo comercializar pólvora.

– Só precisa de preocupar com espadas – concluiu o rei.

– E com machados – acrescentou Alonzo.

– E com lanças – acrescentou Nigel.

– E punhais – o conde prosseguiu – Com as foices, e facões, e adagas, e porretes...

– Já compreendi – Lionor o interrompeu, pensativa. Resumiu – Só preciso me preocupar com as lâminas.

– Você não – o rei apontou para Nigel – ele.

E a olhou como se enxergasse uma criança a quem não era permitido participar dos jogos dos adultos. Lionor sentiu-se injustiçada; sabia que, quando o rei tinha a sua idade, seu amigo mais próximo era o pai de Alonzo, exatamente catorze anos mais velho que ele, e também Hermes, que tinha dez anos a mais. Apenas sete anos a separavam do rei, e ele não tinha o direito de tratá-la como uma menininha, não depois que ela cumprira a missão que ele mesmo lhe havia designado através do duque. O que mais precisaria fazer para mostrar-lhe o seu valor?

– E a senhorita – Miguel voltou a se dirigir a ela - não deseja escolher nada pra si?

– Já disse o que desejava... – ela lembrou-lhe, inclinando a cabeça com humildade. Não queria parecer teimosa.

– Lionor, por favor, não importune o rei com algo que ele já disse ser impossível – Nigel soou envergonhado – Escolha uma dessas armas para você e não se fala mais disso.

Falou de um modo tão impaciente que Lionor ficou sem graça. Olhou ao redor, indecisa. Não tinha em mente esse tipo de recompensa, mas já que o rei não parecia inclinado a permitir sua participação em um torneio, sentiu que devia se contentar em escolher uma espada para si. Eram tantas as opções que ela nem mesmo sabia por onde começar a procurar.

– Poderia pedir uma jóia – lembrou Caridad, acariciando a gargantilha que cintilava em seu pescoço. – Vejo que não usa nenhuma...

Lionor lançou-lhe um olhar de desagrado. Não usava joias, mas não era porque não as tivesse; simplesmente não combinava com as roupas que costumava usar para cavalgar, treinar com espadas ou andar com os rapazes. Estavam bem guardadas na casa da sua família. E não tinha necessidade de mais outras, se não iria usá-las mesmo. Mas não perdeu tempo em retrucar a sugestão da criada. É somente uma rameira, não devo dar ouvidos a uma mulher como ela.

Avistou uma foice cujo cabo media aproximadamente dois metros de cumprimento. A lâmina prateada era maior do que a de qualquer foice que já vira na vida. Nigel pegou a arma que Lionor e balançou a cabeça negativamente, com ar de reprovação.

– Não sabe usar.

– Aprendo – ela retrucou, desafiadora.

Mas o rapaz encostou a arma de volta na parede. Pegou uma cota de malha dourada que vestia um manequim de madeira a um canto, e atirou-o a Lionor. Era pequena e estreita, como se houvesse sido feita para um rapaz de doze ou treze anos, mas era tão pesada que, quando caiu em suas mãos abertas, Lionor quase a derrubou. Um objeto de defesa, não de ataque. Era isso que esperavam dela.

– Tome, Lionor. Vai servir em você, certinho – seu noivo bateu as palmas das mãos para sacudir a poeira das ataduras.

Ela agradeceu, embora não fosse exatamente o que esperava. Era, pelo menos, melhor que um inútil colar de rubis ou um título. E era dourado, ela jamais imaginara que existissem cotas de malha daquela cor. Iria fazê-la parecer uma guerreira, sem perder o charme.

Já era tarde, e seus olhos ardiam de sono, quando deixaram a sala das armas. Caridad pendurava-se no pescoço de Alonzo, e os dois caminhavam atrás do restante do grupo, pois o conde estava visivelmente constrangido com os modos atrevidos da jovem. Lionor fez o possível para ignorá-los, por achar a cena um desrespeito à sagrada e indissolúvel união matrimonial. No entanto, não conseguiu ficar calada quando escutou comentários sobre todos irem dormir no mesmo aposento na torre da guarda. Puxou Nigel para si e sussurrou-lhe ao ouvido.

– Não vou dormir com três homens e uma vagabunda no mesm...

– É, com certeza não vai – Nigel não esperou que ela terminasse – Sabe que não pode dormir comigo quando estamos na corte. As pessoas diriam que você é uma desfrutável. Já arranjei para você um lugar entre as damas da princesa Oriana, enquanto estiver aqui. Uma criada vai acompanhá-la até a torre.

E afastou-lhe os cabelos da testa para lhe dar um beijo de boa noite, virando-lhe as costas em seguida para acompanhar os amigos, antes que percebesse a decepção nos olhos de Lionor. Ela esperava que ele a tomasse pelo braço e que a acompanhasse, mas ela tinha se esquecido. Não estavam mais na fortaleza, e as coisas na corte eram diferentes.


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo, voltaremos a Claire. Não percam! Ah, e se estiverem gostando da história, mostrem a seus amigos. Fico por aqui, mas aguardo todo mundo de volta daqui a poucos dias.