Wild Child escrita por Kiri Huo Ziv


Capítulo 2
Capítulo I


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo. Espero que esteja do agrado de vocês, embora seja uma história um pouco picada.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/470306/chapter/2

Come see, close your eyes.
Come see, give me your sorrow.
And I keep watch for you.
Until the dawn is, breaking through.
Until the morning wakens you.
(Dreams Are More Precious – Enya)*

Sexta-Feira, 08 de novembro de 1996 – 23:42

Essa é a minha primeira noite em uma nova casa, com uma nova família, e ainda não consigo acreditar que é verdade: nunca mais vou precisar ver as paredes acinzentadas do orfanato, lutar para dormir apensar do ronco alto de alguns dos meus companheiros de quarto e ter que brigar por um pedaço da torta de chocolate que raríssimas vezes levavam para a gente comer por lá. É inacreditável, e ainda assim eu quero acreditar que tudo vai melhorar agora.

Lisa é ótima. Gostei dela desde aquela primeira conversa que tivemos ainda no orfanato, por cima do livro de contos de fadas que estava lendo. Não sei exatamente o que havia nela – em geral eu desprezava pessoas com esperanças infundadas –, mas algo me fez admirá-la desde a sua primeira visita.

Brian é muito rigoroso e responsável, mas acho que será um bom pai, porque, mesmo quando o assunto é sério, ele tenta sorrir numa tentativa de me transmitir pensamentos positivos. Como quando ele me contou que permitiriam que eu terminasse meu ano escolar onde já estava estudando, mas me transfeririam para uma escola melhor no próximo setembro.

Na minha nova casa, eu tenho um quarto só para mim, e é um pouco estranho e silencioso demais. Não consigo dormir há dois dias – desde que cheguei – e estou muito cansada o tempo todo, o que me deixa irritada e faz com que eu não consiga prestar muita atenção a nada.

Brian e Lisa perceberam que eu não estava muito feliz, mas não comentaram nada, dando-me o espaço que prometeram e esperando que eu vá falar com eles o que está me incomodando. Mas é um pouco difícil recorrer a outras pessoas quando você passou toda a sua vida cuidando de si mesma e eu não sei muito bem o que fazer.

Então, eu me lembrei desse diário e resolvi utilizá-lo. Não acho que vá ajudar qualquer coisa escrever sobre isso, mas talvez – sei lá! – faça com que eu organize os meus pensamentos e encontre uma solução. Afinal, o que eu preciso para resolver o meu problema é barulho, o que resta saber é como provocá-lo em um nível que me ajude a dormir e não acorde Lisa e Brian.

Difícil. Estou tão cansada que não consigo pensar em uma solução. Ou, talvez, a única solução possível seja contar a Lisa e Brian e esperar que eles me ajudem, mas isso ainda me deixa muito desconfortável.

Quinta-Feira, 26 de dezembro de 1996 – 09:48

Não escrevo há um bom tempo porque o meu problema de insônia foi resolvido na manhã posterior à noite em que eu escrevi. Lisa viu o tamanho das minhas olheiras e percebeu que eu não parava de bocejar e suspirar e que meus olhos não conseguiam ficar abertos por muito tempo e exigiu saber o que estava acontecendo.

Quando eu contei, ela riu de mim e disse que eu devia ter contado antes. E, à noite, Brian apareceu com um rádio que ele comprou no bazar que um dos vizinhos estava organizando e disse que eu deveria usar quando não conseguisse dormir – mas não muito alto, para não acordá-los!

A partir daí, passei a dormir muito bem toda noite em minha nova – e mais confortável – cama.

Ontem, no entanto, foi o meu primeiro Natal com uma família de verdade, e eu estou me sentindo tão estranha e desconfortável que achei que seria legal reabrir esse diário.

Não que a minha nova família tenha me tratado mal. Na verdade, eles foram acolhedores: o pai, a mãe e o irmão de Brian e a esposa do irmão dele. Todos foram ótimos e me abraçaram e se comportaram como se eu fosse membro da família deles desde sempre, o que foi bem legal da parte deles!

A mãe de Brian disse que eu estava magra e tentou me empanturrar de doces antes do jantar, o que fez com que Brian gargalhasse, dizendo que quando ele era criança, doces antes do jantar apenas quando roubados, com risco de serem castigados e proibidos de sair de casa durante o fim de semana seguinte se fosse pego.

O pai e o irmão de Brian tentaram descobrir do que eu gostava: esportes, bandas, livros, programas de TV. E a esposa do irmão dele conversou longamente sobre a escola onde estudaria quando terminasse esse ano escolar, onde ela dá aulas.

A parte da entrega dos presentes foi ótima também. Naquele ano, Lisa e Brian disseram que não esperavam que eu desse presentes para a família, já que eu era nova e não os conhecia – e eles queriam que eu desse algo porque me fazia lembrar de todos. Mesmo assim, eu dei a Lisa o mesmíssimo livro de contos de fadas que ela havia me visto lendo quando nos conhecemos e a Brian o primeiro álbum de sua banda favorita, Pink Floyd. Para meu alívio, os dois gostaram muito dos presentes.

Lisa e Brian me deram uma coleção de fitas cassetes para que eu tocasse em meu novo rádio, o que foi bem legal da parte deles, já que eu não tinha nenhuma. Os pais de Brian me deram uma jaqueta vermelha muito bonita que acabou ficando grande em mim – mas eles me garantiram que um dia eu ficaria grande o bastante para caber nela. O irmão de Brian e a esposa dela me deram uma coleção de livros policiais – eu não era muito fã de leitura, mas gostava de tentar adivinhar antes dos detetives quem eram os criminosos nas histórias policiais.

Não! Definitivamente, minha nova família foi ótima e acolhedora e se esforçaram o máximo para que eu me sentisse como se sempre tivesse pertencido àquele núcleo familiar. Após meu estranhamento inicial, passei um dia realmente divertido.

Mas agora, sozinha em meu quarto com meus novos presentes e esse sentimento bom no peito, estou me sentindo estranhamente leve e feliz, mas também estou com medo de que tudo isso acabe: porque eu aprendi que nada que é bom dura para sempre. E o pior é que eu me sinto mal por me sentir dessa maneira, porque minha família nova é ótima e não fez nada para merecer desconfiança.


Talvez, eu não seja feita para a vida em família e essa seja a razão pela qual meus pais biológicos me abandonaram. Eles devem ter olhado para o meu rosto e pensado, “essa não serve para fazer parte de uma família”, e me abandonado na beirada da estrada.

O que há de errado comigo?

Sexta-Feira, 06 de setembro de 1997 – 09:48

Confesso que os primeiros meses após a minha adoção foram difíceis. O sentimento de estranheza em ter uma família após tantos anos sozinha no orfanato foi muito grande e a culpa por estar sentindo aquilo foi ainda maior. Quando finalmente meus pais perceberam que eu não me sentia tão confortável com a minha nova vida quanto queria transparecer, eles começaram a me levar a um psicólogo.

Eu estava um pouco descrente a respeito do assunto a princípio, mas acabou se tornando algo bom quando ele pediu que meus pais me acompanhassem durante algumas sessões e me ajudou a ter conversas que, de outra maneira, ficariam suspensas.

Foi durante essas sessões que Brian começou a ser meu pai e Lisa começou a ser a minha mãe, e nós começamos a nos tornar realmente uma família. Após quase cinco meses sob a tutela do Dr. Edmunds, ele finalmente decidiu que estávamos muito bem e não precisávamos mais da ajuda dele e, pedindo que eu retornasse se um dia achasse necessário, me liberou de nossas sessões.

As sessões com Edmunds tornaram o uso desse diário um pouco desnecessário e, embora eu o tenha aberto algumas vezes nesses meses, nunca senti necessidade de escrever nele.

Essa semana, eu comecei em uma nova escola e achei que seria interessante escrever algumas coisas que encontrei por aqui – uma precaução para que eu não tenha que voltar a consultar com o Edmunds, talvez.

Por aqui, quase tudo é muito diferente da minha antiga escola, em que precisávamos vestir uniformes e não precisávamos necessariamente nos comportar muito bem nos corredores e durante as aulas. Aqui, a disciplina – como todos chamam – é muito mais rigorosas, mas, embora existam regras de vestimenta, nós não precisamos usar um uniforme.

As outras pessoas que estudam aqui são como pessoas em todas as escolas, eu acho. Existem os esportistas e as líderes de torcida, que me tratam mal porque sou nova e adotada; os nerds, que me tratam mal porque eu não sou tão inteligente e não entendo a linguagem deles; os drogados, que me tratam mal porque eu não gosto de usar drogas; e por aí vai. Ou seja, como na minha antiga escola, continuo solitária e, como antes, isso não me incomoda.

Os professores, entretanto, são ainda melhores e mais rigorosos, o que me deixa com um pouco de medo que eu não me saia muito bem. Mas estou tentando não pensar muito no assunto e deixar para me preocupar quando – se – o problema aparecer.

É bom ter alguém que cuide de mim, para variar. E acho que estou no caminho para a felicidade: finalmente, começo a ter fé! Espero não me decepcionar.

______________

*Venha ver, feche seus olhos./Venha ver, entregue-me a sua dor,/E eu vou cuidar de você/Até o romper da aurora./Até o amanhecer acordar você.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado desse capítulo!