Tudo por Nico di Angelo escrita por Mariana Pimenta


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem...



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/469973/chapter/2

Pisquei. Eu havia esperado esse momento nos últimos doze anos e não sabia o que fazer agora que ele havia chegado.

Tentei falar, mas minha voz não saía.

— Te espero na sala. – disse meu pai, e fechou a porta.

Fiquei mais alguns segundos sentada, sem me mexer. Então pulei da cama, coloquei a toalha no banheiro e desci as escadas. Como dissera, meu pai estava no sofá da sala, sentado me observando. Havia uma caixa de plástico enorme aos seus pés. Me sentei ao lado dele.

— Onde estão Madrasta, Hilary e Gavin?

— Pedi que eles saíssem para um passeio no shopping. Não quero que eles ouçam.

— Por quê? O que você tem para me contar?

Ele suspirou pesadamente.

— Mariana, você se lembra dos mitos que eu te contava quando você era pequena?

— Claro. Não importava quantas vezes você repetisse a mesma história, eu nunca me cansava.

— Qual é o nome que se dá para os filhos de um deus com um mortal?

— Semideus. Mas o que isso tem a ver com a minha... – comecei a perceber onde ele queria chegar – Não. Impossível.

— Consegue adivinhar o nome da sua mãe?

Não precisei pensar muito, pois me lembrei automaticamente da minha conversa com Rúben.

— Atena. – sussurrei. Como ele não negou, continuei – A deusa da sabedoria. Isso faz de mim...

— Uma semideusa. – ele concluiu.

Coloquei a mão na boca, chocada. Fitei meu pai, e pelo seu olhar aquilo não era brincadeira. Engoli em seco. Se aquilo era mesmo verdade, eu precisava saber mais.

— Por que nunca me contou?

— Era mais seguro você não saber. O seu cheiro de semideusa fica cada vez mais intenso quando você sabe sobre isso. Atrairia monstros para essa região.

— Espera. Os monstros também são verdadeiros? Quer dizer que... todos os mitos são verdadeiros? Os deuses, os monstros, os heróis... tudo?

— Tudo.

Momento de silêncio para eu absorver a informação.

— Por isso a mamãe nunca mais veio nos visitar.

— Exato. Ela só veio aqui quando você tinha um ano, para ver como você estava. Ela ficou chocada quando te viu.

— O que tem de errado comigo?

— Ela disse que você... não é igual aos seus irmãos e irmãs. Você é diferente em alguns aspectos.

— Como, por exemplo?

— Ela disse que seus filhos normalmente são loiros e têm olhos cinzentos, como nuvens de tempestade.

— Ela é assim? Loira com olhos cinzentos, quero dizer.

— Na verdade, os olhos dela são cinzentos sim. Mas o cabelo dela é escuro.

— Ah. Só por isso?

— Ela também disse que você tem um ar um tanto... sombrio. Tem algo a mais em você, mas ninguém sabe o que é.

— Você me contava aquelas histórias para ficar mais fácil para eu entender a verdade?

— É um dos motivos, mas não é o principal. Eu estava preparando você. Desde os sete anos você tem aulas de esgrima, arco e flecha e karatê. Eu contava as histórias para você. Te dei livros sobre isso. E essas informações podem salvar sua vida.

Assenti. Isso fazia sentido.

— É comum os semideuses não terem muitos amigos?

— Um pouco. Mas o seu caso é estranho. Na maioria das vezes, só os sátiros ficam amigos de verdade dos semideuses.

— Sátiros? Por quê?

— É o dever deles. Mariana, você não está sozinha neste mundo. Há um lugar onde você pode treinar e conhecer seus irmãos.

— Sério? Onde?

— Eu não sei o que é, mas fica em Long Island, Nova York. Os sátiros ajudam os semideuses a chegarem lá.

Nesse momento, ele puxou a caixa de plástico que estava aos seus pés e retirou a tampa. Ele remexeu ali dentro e tirou um pedaço de papel rasgado e um pouco amarelado.

— Este é o endereço. E tem mais algumas coisas que eu gostaria de te dar.

A caligrafia da pessoa que escreveu era belíssima. Foi Atena, com certeza. Meu pai não tem uma letra tão bonita.

— Lá eu vou encontrar filhos de todos os deuses? Como Zeus e Poseidon?

— Na verdade não. Os Três Grandes fizeram um pacto de que não teriam mais filhos, pois eram muito poderosos. Isso foi logo após a segunda guerra mundial, acho. E como você sabe, Ártemis e Hera não têm filhos. Ah, aqui está.

Ele me entregou um envelope grande. De dentro, eu tirei uma foto. Nela estava eu e meu pai, havia uma árvore atrás de nós e pássaros voando no céu azul. Vi que estávamos em um parque. Nós dois sorríamos.

— Essa foto foi tirada semana passada. No parque do centro da cidade. – recordei.

— É a foto mais recente que você tem de mim. E eu também tenho uma dessa na minha carteira. – contou.

Dentro do envelope ainda havia um pedaço de papel.

— O que é isso? – perguntei, já colocando a mão lá.

— Mariana, eu acho melhor você não ver isso agora. Faça-me um favor: só abra esse envelope de novo quando o policial chegar aqui em casa.

Franzi a testa.

— Policial? Como assim, policial? Que policial?

— Você vai entender depois. Fique com a foto. E guarde-a bem. Tem mais algumas coisas que quero lhe dar.

Ele pegou um pedaço grande de tecido e o desembrulhou. Vi um cabo como os de espadas e mais um pedaço de tecido.

— Quero que você fique com isso.

Ele tirou o tecido e a lâmina apareceu. Trinta centímetros. Era uma faca de açougueiro, daquelas que parecem facas comuns, só que maior e sem os dentes.

— Isso é bronze? – perguntei quando reparei na cor.

— Bronze celestial. Isso é letal para os monstros e não fere mortais. Você vai precisar.

Peguei a faca pelo cabo e admirei a arma. A lâmina brilhava na luz.

— Puxa, pai. Obrigada. Onde conseguiu isso?

— Alguns dias depois que sua mãe veio aqui, encontrei isso dentro de uma caixa de papelão em frente à porta. Isso e mais uma coisa.

De dentro da caixa ele tirou uma boneca de pano. A boneca era pálida, vestia um vestido preto e tênis também pretos, cabelos escuros e compridos e óculos roxos. Ela não tinha dedos, só o dedão. A cabeça era dura, mas o corpo era fofinho.

— Ela se parece comigo. – notei – Na verdade, é igual a mim.

— E tem mais.

Meu pai tirou os óculos da boneca. Depois, me mostrou um pequeno corte na raiz dos cabelos dela, que percorria toda a nuca. Ele girou o cabelo, que começou a se soltar. Então, pude ver fios amarelos saindo do outro lado da peça. Ele a virou de cabeça para baixo e encaixou a peça novamente na boneca.

Agora, ela não se parecia comigo, pois estava loira.

— Como qualquer outra filha de Atena. – disse meu pai – Lembre-se disso.

Ele colocou a boneca como estava antes e me entregou. Fiquei olhando para os itens na minha mão.

— Pai, por que você está me contando essas coisas agora?

— Porque você precisa de treinamento. Você precisa saber o que você é de verdade. E eu não terei outra oportunidade para contá-la a você.

— Como assim? Do que você está falando?

— Eu tenho... contas a acertar. Você antes ainda era muito nova para saber dessas coisas, mas agora já está grande o suficiente para aguentar. Você é forte, filha. E eu já cumpri meu papel com você.

Ele colocou a caixa de plástico, no chão e se levantou, indo em direção as escadas.

— O que você quer dizer com “contas a acertar”?

Ele parou ao pé das escadas e hesitou. E sem me encarar, disse:

— Você é esperta o suficiente para saber que há algo errado. E também para saber que tem relação com a minha viagem amanhã. E você está certa. Essa viagem vai ser diferente das outras.

.......

Naquela noite, fui para o telhado de novo, mas sem o arco. Só encostei a cabeça nos tijolos e olhei para o céu.

Seria possível que aquilo tudo fosse verdade? Eu, uma semideusa. Uma filha de Atena. Talvez isso explica o nervoso de aranhas. Ainda me lembro da história de Atena com Aracne e a competição de tear.

O que meu pai quis dizer sobre os sátiros? Como assim é dever deles ficar amigos dos semideuses?

Espere. Sátiros. Como eles são? Metade homem, metade bode. Homens da cintura para cima e pernas de bode, chifres. Se é dever dos sátiros levar os semideuses para o local de treinamento, eles tem que ficar em um lugar em que haja muitos adolescentes.

Tipo a escola.

Eles têm que se disfarçar. Calça jeans resolve o problema das pernas peludas. O boné esconde os chifres.

Rúben. Ele agia como se fosse obrigado a falar comigo. Ele sempre anda de jeans e boné.

E aí, a ficha caiu. Rúben é um sátiro.

Por isso ele fez aquela pergunta na biblioteca. Ele estava em dúvida: Só por que não sou loira, ele não imaginava que eu sou uma filha de Atena. Eu teria que conversar com ele na escola depois.

Olhei para cima, para a lua, para as estrelas, para a noite. Tudo parecia diferente agora, como se não tivesse mais sentido e, ao mesmo tempo, muito sentido.

24 horas antes, a lua era a lua, a noite era a noite, Rúben era só um garoto estranho, minha mãe era uma desconhecida, e eu era só uma menina sem amigos e com uma vida complicada. Agora, a lua é Ártemis, a noite é Nyx, Rúben é um sátiro, minha mãe é Atena, e eu sou uma semideusa.

.......

O vôo do meu pai era às dez da manhã, então todos acordaram oito e meia para chegar ao aeroporto cedo e dar tempo de tudo.

Chegamos lá às nove e quinze, e vimos alguns amigos dele de longe, que o cumprimentaram com um aceno de cabeça. Meu pai parecia nervoso. Madrasta percebeu sua expressão e tentou acalmá-lo.

— Fique calmo. Tudo vai dar certo, como o planejado.

— Como o planejado. – ele repetiu.

Havia apenas uma mala para ser despachada. Madrasta ficou assustada com isso, mas se convenceu de que ele compraria outra mala lá na Alemanha.

Meia hora mais tarde, já estavam chamando para irem para a área de embarque. Meu pai falou com Hilary, Gavin e Madrasta. Ele parecia realmente triste. Por fim, se dirigiu a mim, falando tão baixo que ninguém mais podia ouvir.

— Mariana, - ele disse lentamente – eu só quero que entenda que tudo o que eu fiz por você foi para o seu próprio bem. Você vai saber quando chegar a hora de ir para o endereço que eu te dei.

— O que está acontecendo? – perguntei – O que vai acontecer de estranho nessa viagem?

— É melhor você não saber, para o seu próprio bem. Agora não. Mas você vai descobrir. Preciso que me prometa uma coisa.

— O que?

— Não ligue para mim. Em nenhum momento. Entendeu?

— Claro. Mas por quê?

— Não importa no momento. – ele me puxou para um abraço – Eu te amo, filha.

Ele me soltou, pegou sua mochila no chão e foi em direção aos portões. Deu uma última olhada para mim e acenou, sorrindo. Então, desapareceu.

..........

Passei o resto do dia na biblioteca, lendo e pesquisando. Eram poucas as coisas que eu não sabia sobre as histórias gregas. Não posso mais falar "mitos".

Voltei para casa e Madrasta estava na sala, parecendo irritada.

— Onde você estava? Sabe que horas são?

Olhei meu relógio de pulso e suspirei impaciente.

— Não são nem nove horas.

— Pelo menos um dia, se afaste dessa porcaria que você chama de livro e haja como uma menina de doze anos decente.

— Muitas meninas de doze anos lêem tanto quanto eu.

— Não interessa. Para mim, uma garota da sua idade está falando com a amiga no telefone o tempo todo, não dentro de uma biblioteca.

Subi as escadas e me tranquei no quarto. Decidi dormir mais cedo. Assim, às onze horas já estava apagando a luz e afastando o edredom para deitar.

..........

Eu me vi em um lugar escuro. Alguns pontos brancos passavam aqui e ali pela minha visão. Olhei para frente e vi vários traços e linhas coloridas piscando na minha frente. Estava tudo fora de foco. Pisquei, mas era como se eu visse tudo por um vidro embaçado. Os meus óculos estavam no meu rosto.

Olhei em volta e percebi que estava sentada em um banco macio. Reconheci que era o banco de trás de um carro. O motorista parou o carro – no sinal, eu acho – e falava alguma coisa que eu não estava entendo e um homem ao meu lado respondia.

Ele estava logo atrás do motorista e trazia algo retangular nas mãos. Uma fotografia. Mesmo sem conseguir enxergar direito, podia ver duas pessoas, um céu azul e grama.

Era a foto que meu pai me dera no envelope. E o homem ao meu lado era meu pai.

Ele assentiu, como se estivesse concordando. Respirou fundo e murmurou:

— Estou pronto.

O motorista avançou e eu vi duas luzes vindo na direção do carro, do lado do meu pai. Percebi que estávamos em um cruzamento e um outro carro vinha em nossa direção.

.........

Acordei com um berro. Eu arfava e suava. O travesseiro estava molhado e meu cabelo grudava no pescoço. Eu estava sentada. Peguei meu relógio de pulso na cabeceira e olhei a hora: meia-noite.

Ouvi passos no corredor. Segundos depois, Madrasta abriu a porta do quarto, com a cara verde por causa de algum creme, o cabelo preso e usando um roupão com pantufas.

— Ficou maluca? – ela perguntou, com a mão ainda na maçaneta – Faz ideia de que horas são?

— Desculpe. – percebi que era a primeira vez que me desculpava com ela – Tive um pesadelo.

— Se eu berrasse como uma louca toda vez que tivesse um pesadelo, berraria toda vez que vejo você. – e fechou a porta do quarto.

..........

Acordei na manhã seguinte com uma sensação estranha. Depois de trocar de roupa, escovar os dentes e prender o cabelo, fui direto para a cozinha. Achei um pedaço de bolo na geladeira e o coloquei em um prato. Comi distraidamente, tentando me lembrar do sonho.

Parecia muito real para ser apenas um sonho. Aquilo era estranho. Já havia tido sonhos realistas antes, mas nada como este.

Coloquei o prato e o garfo dentro da pia. Já ia começar a lavar, quando ouvi a campainha ser tocada.

Mariana, atenda a porta! — gritou Madrasta do andar de cima.

Revirei os olhos. O que você acha que eu ia fazer? Pensei.

Fui até a porta e a destranquei. Quando abri, vi um homem alto com um uniforme azul marinho da polícia parado em frente à porta. Ele me encarou.

— Bom dia.

— Bom dia. Posso ajudá-lo?

— Um homem chamado Heitor mora aqui?

— Sim. Sou filha dele. – acrescentei – Ele não está.

— Creio que não. Há algum adulto na casa?

— Minha madrasta.

— Será que eu poderia entrar?

— Claro.

Abri a porta um pouco mais e o deixei passar. Assim que a fechei, Madrasta apareceu no topo da escada.

— Mariana, quem... – ela viu o policial – Olá.

— Olá. A senhora é a responsável?

— Só quando meu marido não está. Há algo errado?

— Acho melhor vocês se sentarem. Há mais algum parente de Heitor dentro desta casa?

— Meus dois filhos. Vou chamá-los.

Um minuto depois eu, Madrasta, Hilary e Gavin estávamos sentados no sofá branco da sala.

— Aconteceu algo com meu marido? – perguntou Madrasta.

O policial olhou para cada um de nós e suspirou.

— Na verdade sim, senhora. Ocorreu... um acidente. E o seu marido estava envolvido.

— Ele está bem?

O policial não respondeu. Comecei a ligar as informações e cheguei a uma conclusão. Estava óbvio. Mesmo que a verdade, mesmo sendo um pouco estranha e improvável, fosse dura eu tinha que enfrentá-la.

— Ele morreu, não foi?

Mantive meu rosto sem expressão. Todos na sala se viraram para mim, surpresos. Madrasta estava boquiaberta. Ela soltou uma risada fraca, sem humor.

— Isso é ridículo. – ela se virou para o policial e apontou para mim – Por favor, diga a ela que está enganada.

Ele apenas suspirou outra vez e disse:

— Infelizmente, ela está certa.

Foi então que a verdade realmente me atingiu. Meu pai estava morto. A única pessoa na minha vida que se importava comigo estava morta. Não era possível. Eu não queria acreditar. Naquele momento, tudo o que eu queria fazer era acordar e ver que tudo aquilo era um sonho, mas eu sabia que isso não ia acontecer. Aquele era o mundo real.

Esse pode ser o mundo real, mas como eu havia sonhado com aquilo? Pensei.

— Mas o que aconteceu? – Madrasta exigiu saber.

Não sei o que deu em mim, mas eu só me vi murmurando:

— Acidente de carro em um cruzamento. Ele estava dentro de um táxi e um carro veio na direção dele.

O policial olhou chocado para mim.

— Exatamente. Como sabe?

A verdade era que eu não sabia. Eu não podia simplesmente contar a eles que sonhei com isso. Iam me internar, me mandar para um psicólogo, ou para o hospício. Então, para aliviar a tensão do momento me lembrei de uma coisa: Faça-me um favor: só abra esse envelope de novo quando o policial chegar aqui em casa. Ouvi meu pai dizer. Era isso que ele queria dizer? Bem, é mais provável.

— Esperem um minuto.

Subi as escadas em disparada e fui para o meu quarto. O envelope estava embaixo de alguns livros na minha escrivaninha. O tirei de lá e voltei para a sala.

O policial ficou me encarando com as sobrancelhas erguidas enquanto dava o envelope a ele.

— O que é isso?

— Na noite da véspera do vôo, ele me deu isso e disse – parei e pensei melhor – para eu entregar isso se um policial chegasse aqui.

Ele abriu o envelope e tirou o papel que estava lá dentro. Madrasta ergueu a cabeça tentando ver o que era. O policial arregalou os olhos enquanto lia.

— O que é isso? – perguntou Madrasta sem tirar os olhos do papel.

— Um testamento.

Madrasta se levantou na hora e foi olhar. Ela ficou ao lado do policial e leu algumas linhas antes de se virar para mim.

— Isso é falso. Foi você que escreveu isso, não foi?

— Claro que não.

— Eu posso levar isso ao tribunal e ver se é verdadeiro ou falso. – sugeriu o policial.

— Ótimo. Faça isso. – eu disse – Só veio aqui para dizer isso?

— Basicamente, foi. – ele tirou um cartão do bolso – Se precisarem de tratamento psiquiátrico, há um psicólogo muito bom na cidade. Bem, meu trabalho aqui está feito. Tenham... um bom dia.

Ele foi até a porta e saiu, levando o testamento. Fiquei parada no meio da sala olhando para o nada.

— Como você sabia? – perguntou Gavin.

Olhei para todos os presentes. Todos estavam com a testa franzida e me encarando. Comprimi os lábios. Virei de costas e corri pelas escadas.

— Mariana! – Madrasta me chamou, mas não dei ouvidos.

Virei a minha direita e atravessei a metade do corredor, indo em direção ao meu quarto. Fechei a porta atrás de mim e fiquei com as costas nela. Eu escorreguei para o chão enquanto lágrimas se formavam nos meus olhos.

Não podia ser verdade. Não assim. Não agora. Ainda havia muitas coisas que eu tinha que perguntar, e não poderia confiar na internet para isso. Talvez, nem nos livros.

Lágrimas rolaram pelo meu rosto, minhas tentativas de contê-las indo em vão. O que eu faria agora? Moraria com Madrasta? Agora com certeza as coisas vão piorar entre nós. Meu pai não vai mais estar aqui para limitá-la. É provável que eu morra em alguns dias.

Me levantei e tranquei a porta. Em seguida, tranquei a janela e fechei as cortinas, deixando o quarto escuro. Me sentei na cama, com os cotovelos apoiados dos joelhos e colocado a cabeça entre as mãos. Eu estava começando a tremer.

Não sei quanto tempo fiquei naquela posição. Só sei que foi bastante. O mundo que conheço começou a desabar. Primeiro, meu pai age de forma estranha. Depois, sou uma semideusa. Agora, meu pai está morto.

Minha vida virou um reality show.

O funeral do meu pai foi três dias depois. Bastante gente apareceu. A maioria, amigos do trabalho. Fiquei sozinha em um canto bebendo refrigerante e lendo um livro, enquanto as pessoas conversavam e alguns apontavam para mim às vezes. Nem liguei. Nada importava naquele momento.

Antes de sairmos, eu desci as escadas com a mão no corrimão, as botas pretas fazendo barulho quando batiam nos degraus. Madrasta ficou me examinando por um bom tempo e disse:

— Foi difícil se arrumar assim? Não deve ter sido, considerando que você vai para a escola assim todos os dias.

Apenas revirei os olhos.

Quando voltamos para casa, Madrasta mandou nós ficarmos na sala por mais um instante.

— Quero os três aqui em baixo em cinco minutos. Preciso falar com vocês. Vão trocar de roupa. Mariana... pelo menos tire essas botas. Você vai acabar colocando roupa preta de novo mesmo.

Em cinco minutos eu, Hilary e Gavin estávamos sentados no sofá da sala, Madrasta estava na nossa frente, apenas com a pequena mesa de centro nos separando.

— Quero que escutem com muita atenção: como o pai de vocês morreu, eu fiquei responsável por cuidar de vocês e da casa. O salário que ele ganhava era suficiente para nos sustentar, mas agora não temos mais ele. Como vocês sabem, o meu dever era cuidar da casa, pagar as contas, ir ao shopping fazer compras... mas isso vai mudar. Agora, eu vou arrumar um emprego e vocês vão arrumar a casa e fazer as compras. Principalmente você, Mariana, sendo a mais velha. Você tem que começar a ter responsabilidades.

— Qual foi a última vez que eu esqueci um dever de casa ou tirei uma nota abaixo de 9,5? Qual foi a última vez em que alguém teve que me acordar para ir à escola ou me lembrar que eu tenho as aulas extracurriculares? Hã... é mesmo. Nunca. Eu tenho responsabilidades, só que você acha que passo o dia inteiro depois da escola no shopping, comprando roupas pretas.

— Você, Mariana, está encarregada de lavar a louça, lavar a roupa, limpar a casa e cuidar de Hilary e Gavin. Vocês dois, tem que... – ela parou e pensou. Não sabia que ela era capaz de fazer isso – fazer a lista de compras e arrumar a mesa.

— Só isso? Você vai dar a eles os trabalhos mais estúpidos e simples para jogar tudo em cima de mim?

— Falando assim, parece até que é a pior coisa do mundo.

— Escuta aqui, é bom você ensinar a eles a fazer alguma coisa, porque se não, eles não vão ser burros só na escola, mas não vão saber apertar o botão da máquina de lavar.

— Ei! – Hilary e Gavin falaram ao mesmo tempo.

— Foi mau, mas é verdade.

— Não fale dos meus filhos assim. – Madrasta disse entre os dentes.

— Eu falo do jeito que eu quiser com quem eu quiser. O único motivo que me faz continuar morando aqui é que todas as minhas coisas estão aqui. Eu não tenho mais nenhuma ligação com você.

— Hilary e Gavin, vão lá para cima que eu tenho que dar uma palavrinha com a sua irmã.

Meia-irmã. – corrigi, enquanto observava-os subir as escadas cochichando.

— Escuta aqui, sua peste, - Madrasta me encarou de braços cruzados – você vai fazer o que eu mandar, e não é porque o seu pai morreu que eu vou deixar você sair livre.

— Ele era seu marido. Dava para você pelo menos mostrar que está triste com a morte dele?

— Eu posso arranjar outro. E eu queria falar outra coisa com você: cancelei a sua matrícula nas aulas de esgrima, arco e flecha karatê e coloquei aulas de teatro e dança no lugar.

O que você disse? Eu não posso sair dessas aulas. Esqueça. Nunca quis entrar em um clube de dança.

— Eu quero que você aprenda a ser uma garota de doze anos normal, que faz amigas e que usa roupas mais coloridas.

— Eu sou do jeito que eu quero ser, e não adianta você tentar me mudar, porque se não funcionou quando eu era bebê e você era minha única influência, não vai funcionar agora.

A campainha tocou. Madrasta foi atender e um homem de terno segurando uma maleta apareceu.

— Boa tarde senhora. Estou aqui para discutir a respeito do testamento.

— Claro, entre.

O homem entrou e colocou a maleta em cima da mesa.

— Bem, o testamento era verdadeiro. E ele deixou uma herança para duas pessoas: a esposa e a filha mais velha, cujo nome é Mariana.

— Sou eu. – ergui a mão, e o homem se virou para mim como se tivesse acabado de perceber minha presença.

— Excelente.

Ele se sentou no sofá e abriu a maleta. Havia vários papeis e ele retirou um, que era o testamento do meu pai.

— Bem, para a senhora, ele deixou todos os seus bens e mais uma quantia de dez mil dólares.

Madrasta piscou.

— Uau. Isso... é uma boa notícia.

Ele examinou o papel novamente e olhou para mim.

— Para você, ele foi bem mais breve: deixou uma quantia de vinte mil dólares.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Comentem, por favor.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Tudo por Nico di Angelo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.