Doce Inverno de Eternas Lembranças escrita por ju_mysczak


Capítulo 5
Um vício


Notas iniciais do capítulo

Esse veio bem mais rápido. :)
Boa leitura!



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Segurava um livro de belas capas de couro verde, escrito na frente em um floreado dourado, longas letras finas formavam um nome. Seus olhos passeavam por entre os borrões negros, lendo, mas sem saber o quê. Desde que o abrira, não prestara atenção em uma única palavra.

“Talvez a vida nos reserve mais que isso. Ou quem sabe eu morra amanhã?”

“Não sei quanto tempo aguentarei este tormento que me abraça toda manhã.”

“- Gritei pela noite sombria por você.”

“- Não faça isso! Não o faça real!”

Quando deu-se por si, eram já quatro horas. O Sol se punha em um dos horizontes na janela oeste da biblioteca. A gripe o mantivera grudado na cama por quase duas semanas, mas agora estava quase que completamente recuperado.

Sua boca estava levemente entreaberta e o livro escorregara por entre os dedos até atingir o piso de madeira. Aparentemente cochilara por tempo demais. Levantou-se, espreguiçando e sentindo seu cóccix doer de tanto tempo que permanecera sentado.

Caminhou a passos lentos pela mansão, observando os detalhes precisos, refeitos com exatidão pelo demônio após o incêndio que destruíra a tudo. Cada quadrado, cada pilar, cada tapete fora especificamente ordenado pelo mordomo conforme a planta original da casa.

Eu estou bem. Eu estou tão bem!

A garganta seca coçava. Precisa de um copo d’água. Antes que sequer pensasse em chamar um empregado, Maylene aparece, com seus óculos gigantes, a atrapalhando completamente na difícil tarefa de descer as escadas segurando uma bandeja sem cair.

– Mestre! Sebastian-san mandou-me levar esse copo à biblioteca para o conde. – O vestido preto balança de um lado para o outro, fazendo os talheres de prata dos bolsos tilintarem. Ciel pegou o copo sem questionar. A sensação de letargia que o atingia naquela tarde ensolarada não se dissipara completamente, mas se sentia muito mais disposto e até um pouco menos preguiçoso.

Está tudo tão bem!

A passos lentos atingiu o piso do escritório. Sentou-se na cadeira, esticando o corpo e pondo os pés para a frente. Passou as mão sobre o tampo da mesa de mogno, em um carinho incontido. Nem se lembrava mais porque não gostava daquela mesa antes. Algo a ver com seu passado?

Alcançou mais a frente um pequeno frasco de vidro fosco marrom. Girou com cuidado, ouvindo o barulhinho de pílulas se chocando umas contra as outras. Deu uma pequena risada e, despreocupadamente, jogou o frasco, o fazendo dar uma volta completa e meia, antes de pousar seguro em sua palma aberta.

– Jovem mestre ainda não parou de tomar seu remédio?

– Sebastian! – O garoto se assusta, tacando o vidrinho já pela metade no fundo de uma gaveta. O mais rápido que pôde, se recompôs. – Não entre assim, sem avisar!

– Já estava aqui, limpando as estantes de documentos, o mestre é que não viu.

– Bem, tanto faz. O médico disse para que eu tomasse um comprimido sempre que me sentisse mal.

Com um ar de resignação, mas inconformidade, o mordomo inclinou a cabeça e se retirou. Deixou o material de limpeza em um lugar apropriado, com cuidado para não misturar os panos. Com um cuidado extremo, passou a rearrumar os livros da biblioteca, que o conde já tinha feito questão de retirar muitos do lugar para folhear com desinteresse. J. Hugh. Prateleira 2, fileira 7. H-547. B. Lorde. Prateleira 4, fileira 2. B- 136. Aquela droga está fazendo com que o jovem mestre piore mentalmente, já está até lendo livros de poesia. H. Edgar. Prateleira 3, fileira 7. Talvez eu deva dar um jeito de fazê-lo parar de tomar as pílulas da alegria. Mas por que me importaria com isso? R. Lawrence. Prateleira 5, fileira 9. R-632.

...

“- Um dia irá se apaixonar. Essa paixão te tocará no fundo da alma. Mas logo então irá se casar e isso o matará por dentro. Com a certeza de fazer o que é melhor para todos, se esquecerá de seu amor e, por mais que durante as noites frias a lembrança ainda volte a sua mente, se esforçará para ser o melhor pai e marido que puder. Sei disso porque é humano, CIel. Assim como eu.”

Uma batida na porta retira o garoto de seus devaneios. O mordomo entra, trazendo consigo um elegante cartão branco.

– O senhor Bellmont deseja vê-lo, jovem mestre. – Entrega o cartão.

– Mande-o entrar. Verei-o na sala de visitas.

O noivo da prima de sua prima entrou no salão, o olhar para baixo, a cabeça erguida, observando tudo com olhos aprovadores e a boca retorcida em escárnio. Incrível o que um garotinho medíocre consegue apenas nascendo em uma família rica. Enquanto três gerações minhas tiveram que dar seu suor e sangue para acumular nossa pequena fortuna. As vestes, completamente brancas, combinavam com a alta cartola de seda indiana e contrastavam perfeitamente com a fita roxa de caxemira em seu ventre.

– Conde Phantomhive! Que prazer reencontrá-lo!

– Digo o mesmo, Sir. – Cie finge estar alheio à inveja do outro.

– Fiquei sabendo que estava doente, até pensei em passar para ver como estava mas os preparativos para o casamento me ocuparam todo o tempo. Mandei flores em compensação. Recebeu?

– Sim, obrigada pela lembrança. – Recebera as flores, e as mandara diretamente para a cozinha, enfeitando os pratos de Sebastian.

– Bem, vamos direto ao assunto então, não é mesmo? Vim verificar se pensou em minha proposta. – Recusa a xícara de chá oferecida pelo mordomo.

– Pensei e cheguei a uma conclusão. Após refletir durante as últimas semanas, defini que de nada me adianta ter um contrato com você para vender leões. Não é o tipo de brinquedo que fabricamos.

– É um brinquedo, conde. São todos iguais. – Exclama, surpreso pela recusa do menor.

– Um brinquedo qualquer, talvez. Os brinquedos Phantom são especiais. Não são como nessas indústrias baratas em que tudo é mal feito. As indústrias Phantom possuem uma quantidade máxima para fabricar cada produto. Todos feitos com máxima qualidade, apenas dos melhores materiais. Não existem dois navios Queen Victoria iguais. Cada um tem sua própria áurea. Desculpe-me, mas terei que recusar sua oferta. Não me sujeitarei nem à empresa de minha família a fazer algo contra nossos princípios.

Desistindo de argumentar, Bellmont suspira.

– Tudo bem, então. Queria apenas fazer esse trato com você por considera-lo da família, pelo seu parentesco com a prima de “mi Scarlet”. Posso encontrar outra empresa que o faça.

Se levantou, dirigindo-se à porta de entrada, onde Sebastian a abriu para permitir a passagem do convidado.

– Que belo mordomo tem, conde. Talvez eu volte para mais uma visitinha amigável. Trarei seu convite para meu casamento pessoalmente. – Diz, olhando-o de cima a baixo.

Ciel não soube como reagir. De alguma forma o sorriso de Sebastian ao ouvir o comentário o irritou profundamente. Por motivos ignorados pelo mesmo pensou em Peter, sendo pressionado contra o corpo másculo. Um breve arrepio percorreu sua espinha, atingindo a base de suas costas e eriçando seus pelos.

Subiu com pressa para o escritório e, irritadiço, alcançou o frasco marrom no fundo da gaveta. Tomou dois comprimidos de uma só vez. Jogou-se sem jeito na cadeira almofadada, com raiva de si mesmo e confuso. Estranhos pensamentos invadiam sua mente.

. . .

As folhas farfalhavam do lado de fora do recinto e Sebastian as conseguia sentir enquanto olhava pela janela comprida do terceiro andar. Jovem mestre deve estar no jardim sem casaco algum para se proteger. Ficará doente. Logo reprimiu o pensamento de preocupação que se formava em sua mente. Prometeu ao garoto não fingir preocupação para com ele. Mas não estava fingindo. Chegava a ser quase natural pensar em cuidar do pequeno. Talvez devesse apenas levar e deixar um cachecol ao seu lado. Não, Ciel era esperto e perceberia sua intenção. Será que estou realmente preocupado com ele?

Não importava realmente. Sebastian sabia que queria ter Ciel seguro, de preferência longe da cama durante o dia. Levou o cachecol e um casaco macio de pele negra. Se aproximou silenciosamente do menor e o vestiu. O conde estava tão concentrado em seus pensamentos, em sua própria falsa alegria, que nem percebeu os movimentos de um preocupado mordomo.

Sebastian conseguiu por fim suspirar, livre de questionamentos por parte de Ciel, mas cheio das próprias questões.

. . .

Acabou. As roupas estavam jogadas em um canto qualquer. Um cristal quebrado espalhava água pelo chão, com umas poucas flores amarelas ao redor. Acabou. As gavetas do armário e da cômoda escancaradas transbordavam de pertences que eram arrancados com fúria. Não pode ter acabado! Um curto grito de exasperação e desespero arranha a garganta do jovem. As duas mãos de longos e finos dedos grudam nos cabelos macios e bagunçados. Os finos lábios são mordidos com força, por dentes branquíssimos, novos e fortes.

Do lado de fora, com as portas abertas, o mordomo observava sem ser percebido o desenrolar da cena. Há semanas que era ignorado quase completamente pelo conde. Repetia para si mesmo que o menor estava doente, precisava de ajuda. Ele tinha que fazer alguma coisa.

– Sebastian! Onde está? Onde tem? O doutor não deixou mais? Ele disse que deixaria mais! – O tom de Ciel chegava a beirar loucura. As lágrimas caíam livremente pelo rosto do menor que passou a soluçar e convulsionar, ajoelhado no meio do quarto.

O mais velho se aproximou, com certo receio. Pela primeira vez, não tinha certeza de como agir. Se encostasse nele, era capaz do garoto brigar e descontar no mordomo todas as frustrações. Por outro lado, algo o dizia para consolá-lo. Alguma força interior, irracional, que não sabia existir, o impulsionava a esticar os braços.

Os soluços continuavam, as lágrimas ainda rolavam e nenhum grito foi solto. Sebastian soltou o ar que prendeu sem perceber. Estava abraçando Ciel. A mão esquerda segurando o ombro esquerdo do rapaz por trás, tendo na clavícula a testa suada apoiada. Nada mudou.

Com isso o mordomo sentiu-se mais confiante para prosseguir e fazer o que a voz, apelidada de “instinto”, lhe dizia. Com cuidado e leveza, passou a mão lentamente pelas costas do menor, sentindo cada costela. Passou a afagar o cabelo úmido, retirando sua luva com os dentes para melhor senti-lo.

– Por quê? Por quê, Sebastian? – O menor ainda chorava, falando sem muita convicção. – Ele prometeu! Ele prometeu que eu seria feliz! – Ciel confundia as lembranças.

A respiração do mordomo aumentou, enchendo seus pulmões, mesmo sem necessidade. O akuma que era o dizia para não soltá-lo. Pois era isso que era: um akuma, como um animal. Predador, instintivo. A voz repetia incessantemente. Pare, mestre! Como não suporto vê-lo assim! Não chore, eu irei protegê-lo do futuro! Sebastian se perdia nos próprios pensamentos, certo de que o destino sombrio que o garoto teria seria dado por ele mesmo.

O aperto ficou mais forte, unindo os dois. Aos poucos, o choro foi diminuindo, até desaparecer. Os soluços reduziram também, até que o único som provinha de suas inspirações e expirações.

Sem saber o que fazer, Sebastian apenas ficou ali, parado. Mortificado com a própria coragem e falta de bom senso. O que estava fazendo ali? Desde quando ouvia o que esse instinto suicida dizia?

Depois de vários minutos com Ciel em seus braços, resolveu por pegá-lo no colo. Os olhos do menor estavam inchados e completamente vermelhos, a pele pálida maculada com quatro arranhões vermelhos em sua bochecha antes corada.

Ciel olhava para nenhum lugar específico. Nada vinha a sua mente. E quando foi colocado sobre a cama desejou não ficar ali sozinho, sem comprimido nem pessoa alguma como escape. Como fugiria de sua realidade agora? Como esqueceria seu passado? Como ignoraria seus confusos sentimentos?

Com o olhar desfocado, desejou novamente algo ou alguém, mas nem ele soube identificar mais tarde o que era.


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