27 escrita por AoiRaito


Capítulo 1
27


Notas iniciais do capítulo

Capítulo que substitui o 27 no livro original. Bom, não é cronologicamente equilibrado, mas os fatos acontecem naquela época... Katniss volta ao 12 e Peeta chega depois de uns meses. E aí então se passa a minha fanfic. Fiz apenas para dar um gostinho de final mais feliz e bem terminado. Acho que falhei em descrever a Katniss como ela é de fato, mas dane-se... É só uma fanfic mesmo. Espero que gostem!



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Acordo após uma noite repleta de pesadelos. Certifico-me se meu braço está no mesmo lugar, pois no sonho ele era devorado pela forma bestante de Rue. Sento-me na cama com meu corpo pesado, consequência das noites mal dormidas. Normalmente eu consigo me sentir levemente recuperada quando fico semanas sem dormir direito, porque só assim eu mergulho num sono profundo sem pesadelos. Ou pelo menos eu não me lembro deles. É melhor assim, não me lembrar de nada. Pelo menos não sou obrigada a olhar nos olhos de Rue naquele bestante enquanto meu braço é arrancado violentamente. Como se não bastasse, saio de um pesadelo para entrar em outro. Uma casa vazia, sem Prim, sem minha mãe, sem Gale, sem Peeta. Haymitch estava enfurnado em sua casa e não saía para nada, apenas Greasy Sae cozinhava para mim e ia embora logo em seguida. Talvez fosse melhor, afinal eu não queria a companhia de ninguém mesmo. Desço do meu quarto até a cozinha, onde encontro sobras da janta de ontem – que eu sequer havia tocado. Um caldo de coelho cozido com cenouras. Como apenas um pouco, apenas para me certificar de que continuarei viva para agradar as pessoas. O que eu mais queria, provavelmente, era que Peeta estivesse aqui para completar a missão que a Capital deu a ele: me matar. Mas talvez isso fosse pedir demais a ele. Talvez isso fosse coisa boa demais para acontecer com uma pessoa como eu. Tenho muitas dívidas não pagas, muitas com pessoas que morreram por mim e fizeram-nas ainda maiores. Pensando nisso, sento-me na cadeira em frente ao fogão e fico lá, parada, apenas remoendo o remorso de continuar viva enquanto o que eu mais queria era me juntar a Prim.

Hoje, pelo jeito, é um dos dias que nem ânimo para caçar eu tenho. Prefiro ficar em casa lamentando minhas misérias sem agradecer a segunda chance que a vida me deu. Se é que é uma segunda chance, pois mais parece uma punição. Normalmente minha mãe me liga para saber se estou bem, e ela me alerta para que eu continue comendo e tomando os remédios que vêm da Capital. Sempre respondo “sim” para todas as suas perguntas não tentando agradá-la, mas sim para mudar de assunto. No fim, acabamos chorando juntas por nos sentirmos igualmente sozinhas. Mesmo assim, ela foi mais sábia que eu. Talvez a experiência da perda de meu pai tenha feito dela uma pessoa mais forte, capaz de seguir em frente. Ao menos ela está tentando, enquanto eu me entreguei aos braços da morte.

Ouço um estranho ruído e vejo que Buttercup está miando. Deve querer comida, para variar. Suspiro e ergo o meu prato de cozido de coelho e deixo no chão, assistindo-o ser devorado pelo gato horroroso. No fim, aquela coisa que um dia eu quis afogar é a minha companhia e a única lembrança viva de Prim. Mais uma punição que a vida me reserva, no final das contas. Fecho os olhos e me encosto à cadeira, tentando apenas aproveitar o meu dia de miserável quando ouço mais um ruído. Olho para Buttercup e rosno para ele:

– Já te dei a comida. O que mais você quer?

Ele apenas mia e dá passos circulares. Imaginei o que aquele gesto poderia significar, mas não dei muita importância para isso. Apenas bufei e me encostei novamente à cadeira, quando escuto novamente um barulho mais alto e irritante. Olho para Buttercup e chuto o seu prato de comida. A raiva era audível na minha voz.

– Se está insatisfeito, pode ir embora! – grito deixando o gato miando para mim. Ele abaixou as orelhas e bateu o rabo como se fosse me atacar, mas na verdade ele estava me reprimindo. Levanto-me da minha cadeira a fim de ir para um lugar calmo, sem aquele gato maldito, quando ouço o mesmo barulho. Olho para Buttercup e percebo que o ruído não vinha dele desde o princípio. – Nem pense que eu vou pedir desculpas.

Resmunguei para ele da mesma forma que ele resmungou, mas não seguimos adiante com a discussão. O gato horroroso apenas terminou de lamber as sobras do prato enquanto eu tentava desvendar aquele ruído. Era como se fosse uma batida no chão, que ocorria quase sequencialmente. Percebi que o som vinha de fora da minha casa, então devia ser alguma obra. Só que estava suficientemente perto de mim para me irritar, então percebi que na verdade era na minha casa. Saio correndo e abro a porta bruscamente, dando-me de cara com ele. Sem dúvidas era Peeta Mellark com uma enxada nas mãos e limpando o suor que lhe descia pela testa. Olhando os buracos que estavam ao redor de minha casa vi claramente que ele trabalhou desde cedo. Vejo no seu rosto uma expressão serena, como ele costumava ser antes da Capital telessequestrá-lo. Ele sorri assim que me vê e eu sinto que talvez não tenha perdido tudo.

– Espero não ter te acordado – Peeta deixa a enxada cair no chão e coloca as mãos na cintura. Arfava constantemente por causa do cansaço. Ele parecia muito melhor e mais vivo que eu, mesmo tendo perdido toda a família e ter todo aquele veneno de teleguiadas no seu cérebro.

– Não acordou. – Respondo hesitante. Tive medo de ele ainda querer me matar, mesmo estando claro em seus olhos que ele não era mais programado para isso.

– Que bom. Eu cheguei há uma semana, mas não queria te incomodar – ele diz suspirando, tentando acalmar sua pulsação acelerada devido ao esforço físico.

– Por que não veio me ver? – pergunto fechando um pouco os olhos para que a luz do sol não me incomode. Ele chegou há uma semana e não me veio visitar? Ele certamente deve me odiar muito.

– Greasy Sae me disse que você só saía para caçar de manhã e então voltava para seu quarto. Não conversava com ninguém, nem mesmo com Haymitch e custa atender o telefone, então eu imaginei que quisesse ficar sozinha – ele explicou olhando nos meus olhos. Percebi que era verdade, e que ele novamente estava preocupado comigo. Sinto um alívio percorrer meu corpo e novamente culpada por julgá-lo mal. Este talvez seria um hábito que eu nunca perderia.

Fico calada ouvindo tudo o que ele diz. Presto atenção nos arredores, vendo as mudas de rosas plantadas na beirada da minha casa. Reconheço aqueles brotos de longe e então se forma um nó em minha garganta. Até mesmo nisso Peeta Mellark sabia ter o toque certo de gentileza. Eu odeio rosas por causa do Snow, mas o que ele havia me trago eram prímulas. As mesmas flores que batizaram minha irmã. Suspiro e olho novamente para ele, que já estava com a enxada nas mãos e apoiada no ombro.

– Desculpe – ele diz. – Eu não queria que se sentisse mal por causa disso. Só quis que você tivesse algo bom para se recordar.

– Não. Eu gostei. De verdade. – Respondo engolindo em seco e sem saber mais o que dizer a ele. Surpreendo-me como o garoto do pão deixou de ser a máquina programada para me matar e voltara a ser ele mesmo. Não sabia como e quando isso aconteceu, mas era ele quem estava lá. E estava bem, ainda por cima. Peço licença a ele e caminho para dentro da floresta. Peeta não pestanejou e continuou seu trabalho.

Ainda conseguia explorar uma pequena parte de mim quando vagava pela floresta. Sinto falta da presença de Gale, mas não como antigamente. Um dia sei que irei perdoá-lo e possivelmente esquecer que foi a bomba dele que matou Prim, mas imagino que ele mesmo não se perdoará nunca. Talvez ele estar longe seja mais uma autopunição do que uma maneira de me atingir. Chego perto de uma árvore onde deixei meu arco escondido e pego-o rapidamente. Penduro-o no ombro e amarro a aljava com as flechas na minha cintura. Caminho taciturnamente pela floresta espreitando qualquer presa que servirá para um bom almoço. Meus pensamentos se voltam ao delicioso cozido de carneiro que comi na Capital, mas nem isso quero de lá. Prefiro me restringir ao que o Distrito 12 tem a me oferecer, portanto mantenho meu hábito de caçar – pelo menos nos dias que tenho aptidão para isso. Ouço barulho de mato que está bem verde por causa do início da primavera. Ainda bem que essa parte da floresta não foi afetada pelos bombardeios, assim os animais crescem e se distribuem por aqui. Escondo-me atrás da árvore e vejo um peru selvagem caminhando a alguns metros. Estava indo em direção ao lago, portanto deve estar com sede. Sem hesitar lanço uma flecha que o atravessa no olho, não tendo tempo nem de o animal sentir a dor. Não sei se me considero misericordiosa ou sádica por isso, só que o fato de eu não mais precisar da caça para sobreviver faz com que isso se torne um hobby, não uma necessidade. Aproximo-me do peru não mais me importando em fazer tanto barulho. O pescoço não tem quase nenhuma carne, mas é muito saboroso. Ergo o bicho e coloco na minha bolsa, já imaginando em limpá-lo e em como ficaria apetitoso com um caldo de cebolas. Pela primeira vez em muito tempo sinto um apetite voraz me consumir, e até então não tinha percebido o motivo. Olho para o lado e vejo um broto de dente-de-leão pronto para abrir. A primavera é a melhor época para eles florescerem, então não há muito mistério nisso. Aproximo-me e me lembro daquela vez que espiei Peeta na escola, logo depois do dia que ele jogou o pão chamuscado para mim. Naquele dia ele me deu esperança para seguir em frente. E, pelo jeito, agora que ele voltou tenho novamente esperanças de um futuro pacífico.

Não quis mais caçar depois disso. Guardei meu arco no ombro e fui ao lago para limpar a minha flecha. Decidi nadar um pouco para esquecer os meus problemas de aceitação. Segundo o Dr. Aurelius é uma fase comum após a perda de entes queridos, mas eu pouco me importo com o que ele diz. Sempre lidei com perdas à minha maneira, só não queria que Prim estivesse envolvida nisso. Choro novamente quando boio à margem do lago, então me mergulho e tento tirar esses pensamentos da minha cabeça. Não olho muito para meu corpo depois que minha pele ficou parecida como uma colcha de retalhos, mas até que já estava melhor. Sei disso porque a tonalidade ficou mais similar à pele original, dando-me pelo menos vontade de me ver no espelho de novo. Depois que o lago ficou conhecido pelas pessoas do Distrito 12 evito ficar nua. Tirei apenas a minha jaqueta de couro – que pertenceu a meu pai – e a deixei na borda, junto aos meus apetrechos de caça. O sol brilhando no alto já indicava meio-dia. Greasy Sae já estava na minha casa e eu queria muito comer o peru, então me vesti rapidamente e me apressei até a Aldeia dos Vitoriosos.

Olhei para a casa de Peeta e encontrei tudo fechado. Ele não estava mais plantando as prímulas, também. Segui para minha casa e encontro Greasy Sae acendendo o fogo. Ponho o peru na pia e me ofereço para limpá-lo, mas ela diz que eu devo tomar um banho porque estou ensopada. Sorrio e concordo com ela, afinal minha imunidade não anda muito boa devido à falta de cuidado que tenho comigo mesma. Subo as escadas, entro no banheiro, tiro todas as minhas peças de roupa e abro o chuveiro, deixando que a água quente caia sobre mim. Não consigo evitar um prazer estranho percorrer meu corpo ao sentir meus músculos relaxarem. Basicamente só deixo a água cair, sem ligar muito para o sabão que veio da Capital e cheira absurdamente bem. Visto uma camiseta de cor cinza e uma calça verde-escura, que é meio grotesca mas muito confortável. Assim que saio do banheiro sinto o cheiro delicioso do peru sendo cozinhado com as cebolas. Greasy Sae podia ser meio ousada – para não dizer maluca -, mas ela tinha uma magia para engrossar o caldo de seus cozidos que me dava água na boca só de pensar. Finalmente desço as escadas e a encontro na beirada do fogão, sentada e apenas esperando o cozido ficar pronto.

– Você sabia que Peeta estava aqui? – pergunto sentando-me à mesa ao invés da cadeira na beirada do fogão, na qual ela provavelmente esperava que eu fosse me sentar como de costume.

– Sim, eu soube. Na verdade, ele vem todos os dias. – Ela responde dando uma última olhada no cozido e finalmente apagando o fogo. Não evito engolir a saliva de tão apetitoso que aquele prato me parecia. Só depois assimilo a informação que ela me dera.

– E por que ele não veio me ver? – pergunto após um tempo, soando um tanto quanto incrédula e eu de fato estava.

– Porque você nunca estava. – Lembro-me que esse foi o mesmo motivo que ele me deu e me contento com isso.

– O que ele tem feito? – esperei pacientemente até ela pegar um prato e servir o cozido nele. Parecia durar uma eternidade.

– Tem tentado dar um jeito na padaria, mas tudo está um desastre. Ele foi muito gentil ao arrumar aquelas prímulas para você. – Greasy Sae disse dando um sorriso e me empurrando o cozido. Sorri de volta e não precisei dizer nada para que ela soubesse que eu tinha concordado.

– O quão horrível está por lá? – refiro-me à padaria, é claro. Faz muito sentido Peeta querer cuidar do pão. Ele sempre foi muito bom nisso e provavelmente fará muito bem ao nosso distrito. Observo Buttercup comendo o que pareciam ser as entranhas do peru satisfatoriamente e, por um instante, sinto-me culpada por ter sido agressiva com ele pela manhã.

– Estava irreconhecível a princípio, mas ele está dando um jeito em tudo. É incrível a velocidade com que ele se recuperou – ela diz. Parece surpresa por mantermos uma conversa por tanto tempo.

– Ele se recuperou por completo? – era o que estava me parecendo, mas acho que ele nunca voltaria a me amar. Pelo menos não da mesma forma.

– Isso só o tempo pode dizer. Segundo ele, os médicos da Capital estão muito contentes. Dizem que talvez ele se recupere por completo e quem sabe os flashes um dia sumirão. – Ah, sim. Havia os flashes, também. Memórias falsas que vinham hora ou outra, mas eram suficientes para perturbá-lo por completo. Suspiro profundamente e percebo que nem depois de morto Snow consegue me deixar em paz.

Fico calada por um tempo apenas saboreando meu almoço. Minha curiosidade ficou limitada a saber o estado de saúde de Peeta, mas ter ciência de que ele ainda é atormentado pelos flashes me desanima. Isso não o impede de tentar me matar a qualquer instante. Desvio minha atenção para outras coisas que há muito não dou importância.

– Quem mais tem me ligado além da minha mãe? – pergunto e Greasy Sae me olha incrédula, dando a entender que era eu quem devia saber disso e não ela.

– Dr. Aurelius e Plutarch Heavensbee. – Ela responde e se levanta na mesma hora. – Precisa de mais alguma coisa, Katniss?

Memorizo os nomes. Dr. Aurelius... Sim, há muito não converso com ele. Talvez devesse apenas ouvi-lo para dizer que estou recebendo o tratamento. Não é honesto tampouco justo com o cuidado que o novo governo tem tomado comigo, mas temo não ser obrigada a seguir o que eles me dizem no final das contas. Tenho em minha mente que só são preocupados assim comigo porque fui o Tordo deles, caso contrário não deixariam Johanna Mason sem os mesmos cuidados que eu. Talvez ela também seja difícil a ponto de negar esse tipo de tratamento, mas poderiam ser tão incisivos quanto foram comigo. Plutarch Heavensbee... O que ele poderia querer comigo? Nunca fui com a cara dele por ser um Chefe dos Idealizadores dos Jogos, mas no fim ele era responsável de coordenar – ou melhor, caracterizar – uma grande rebelião. Teria salvo a todos, inclusive a Prim, se não fosse a ganância da presidente Coin. Minha mãe... Com ela eu tenho conversado e chorado com frequência. Então, não tenho urgência em falar com ela. Viro-me novamente para Greasy Sae e digo com um sorriso que não preciso de mais nada. Agradeço da forma mais sincera possível e ela vai embora. Antes de sair pela porta, ela deixa as seguintes palavras:

– Devia sair mais. Vá falar com Peeta, ele deve estar na padaria.

E saiu. Apoio meus cotovelos na mesa e olho para o nada, pensando se seria mesmo recomendável que eu fosse até ele. Gale estava no Distrito 2 tomando conta da limpeza e, como pensei antes, ele talvez não voltaria mais. Pelo menos não enquanto se sentisse culpado e enquanto eu não o perdoasse verbal e sinceramente. Não estava preparada para isso, então olhei para Buttercup que lambia os beiços depois da saborosa refeição e disse-lhe que não demoraria. Falei para ele não caçar confusão e senti pena de mim mesma por perder tempo em conversar com um gato. Visto uma roupa melhor, uma camisa e calça simples, sem querer parecer diferente de mim. Pela primeira vez faço isso depois de muitos meses. O banho quente fez com que a cor voltasse à minha pele. Se minha equipe de preparação estivesse aqui, teriam um susto daqueles por causa do meu corpo. Acho que Cinna não se importaria em me ver assim, porque aquilo era eu e ele me amava desse jeito. Então ignoro qualquer possibilidade de ser malvista e saio de casa, determinada a ver como Peeta estava se saindo depois que voltara da Capital.

Saio da Aldeia dos Vitoriosos e alcanço o centro do distrito, onde fica a padaria da família de Peeta. Passo pela praça onde Gale fora amarrado e torturado pelo chicote de Romulus Thread e então me pergunto o que teria acontecido com o chefe de pacificadores do meu distrito. Acho que fora feito prisioneiro ou até mesmo assassinado durante a rebelião. Caminho apressadamente, recebendo muitos olhares mas ignorando todos, percebendo que ainda não sou acostumada com o público. Vejo ainda muitas cinzas e restos de prédios, como o Edifício da Justiça. Demorará um tempo ainda para que as coisas voltem a ser como eram – se é que algum dia voltariam. Pelo menos não para mim, afinal eu perdi minha única razão de lutar. Chego, então, à padaria de Peeta. Vejo como está tudo acabado, cheio de pó e com a madeira nova da reconstrução ainda à mostra. Posso ver claramente tudo o que está se passando lá dentro por causa da ausência de paredes, então noto que Peeta não está sozinho. Não sei quem está com ele, mas percebo que é uma moça. Percebo que os dois estão rindo juntos. Percebo que meu sangue começa a borbulhar à medida que ouço suas risadas perfeitamente sincronizadas. Cerro meu punho e vejo que quem está lá é Delly Cartwright, a amiga de infância de Peeta. A mesma que o ajudou a se recuperar quando estava telessequestrado, enquanto tudo o que eu fiz por ele foi cuspir no seu amor e entrega-lo de bandeja à Capital. Suspiro profundamente e giro meu corpo, já dando passos largos e me afastando do local.

Então ele realmente havia me esquecido. Se é que não me odiava. Talvez as prímulas que estava plantando na minha casa fossem apenas um golpe de misericórdia. Algo para mostrar que nossa relação não passaria mais de pura diplomacia dali em diante. Meu corpo se quebra em mil pedaços e eu caminho não sei com que forças. Finalmente me sinto mais solitária do que antes e, talvez, sem mais esperanças para seguir em frente. O amor de Peeta era a única coisa sincera que poderia existir para mim depois que Prim se foi, mas até mesmo isso Snow conseguiu me tirar. Mesmo morto aquele... cobra... consegue consumir tudo aquilo que é especial para mim. Katniss, a garota em chamas. A garota que não tem nada.

Depois de longos minutos de caminhada chego novamente à Aldeia dos Vitoriosos. Diferente do que tinha em mente não vou à minha casa, mas sim à casa de Haymitch. Bato na porta, esperando uma resposta, mas ainda sou positiva demais em pensar que o encontraria sóbrio. Ele provavelmente estava apagado em cima de seu próprio vômito – se não tiver engasgado com ele na garganta e morrido de forma vergonhosa, é claro. Depois de bater sucessivamente e sem respostas, abro bruscamente a porta e minhas suspeitas se confirmam. Ele está com a faca na mão, apagado e de testa na mesa. Pelo menos não está com vômito por nenhuma parte, mas o cheiro forte do álcool sai assim que o ar puro de fora entra. Caminho sonoramente até ele e o sacudo, já esperando que ele me atacasse com a faca. Haymitch não dá nenhuma resposta. Pego a garrafa de aguardente no chão e encho de água na cozinha, esperando que assim possa acordá-lo. Dito e feito: depois de atirar o líquido pelo seu rosto ele começa a resmungar e se levanta, surpreendentemente sem erguer a faca para mim ou tentar cravá-la em qualquer coisa – mais precisamente no ar. Ele simplesmente a larga e tira os cabelos molhados da frente dos olhos, franzindo as sobrancelhas e olhando para mim surpreso.

– Docinho? O que faz aqui? – ele pergunta sarcasticamente com um terrível hálito de álcool. Preciso me concentrar para conseguir manter a conversa com ele.

– Soube que Peeta voltou? – perguntei na mesma hora, cruzando os braços e observando sua reação típica. Sim. Ele sabia.

Ele lambe o bico da garrafa de aguardente, mostrando-se cada vez mais digno de pena. Haymitch apenas ri grosseiramente e se senta, olhando-me de forma curiosa e tentando adivinhar o que se passa na minha mente.

– E o que tem isso, Katniss? Ele não vai te matar. – Ele diz seguramente. Sei que Peeta não me mataria diretamente, mas indiretamente a conversa era outra.

Caminho pela casa e olho para a garrafa. Na mesma hora, Haymitch me lança um olhar tanto curioso como suspeito.

– Tem mais aí? – pergunto de forma que ele entende que eu precisava me abrir, e não faria isso sem antes beber. Estava tudo bem, afinal o peru que eu comi no almoço faria com que o álcool não me afetasse tão rapidamente.

Ele suspira e vai buscar algo na cozinha. Volta com duas garrafas, dando na cara que mesmo que não fosse me acompanhar, beberia sozinho de qualquer forma. Vejo também que parece insatisfeito por ter de dividir seu estoque de suicídio lento comigo, mas pouco me importo agora. Abro a garrafa na beirada de um criado que está ao lado da mesa e trago um enorme gole da bebida que desce queimando meu esôfago. Faço uma careta e escuto Haymitch rir de mim. Não sei se é por causa da minha reação ou porque neste momento me pareço tanto com ele, mas só consigo perceber que o estado em que me encontro é bem irônico. No fundo eu sempre soube que sou mais parecida com meu mentor do que eu gostaria.

– E então? Qual é o problema, docinho? – ele repete a pergunta, botando os pés em cima da mesa e fazendo uma cara sarcástica de quem não dá a mínima com o que se passa comigo.

– Haymitch, dá um tempo. – Engrosso a voz e na mesma hora me sento à mesa. Bebo mais um gole de aguardente, desta vez mais agradável, e quem sabe um pouco mais apta a me abrir com meu mentor. – Ele pode estar aqui de volta, mas ainda me odeia.

– Tá falando de Peeta? – pude perceber o tom incrédulo na sua voz.

– É.

– Você só pode estar brincando, Katniss. O moleque fez uma barulheira hoje de manhã só pra plantar aquelas flores pra te agradar – ele diz ainda sem beber da sua garrafa.

– Como você sabe disso? – fico surpresa e Haymitch bufou como se minha pergunta fosse estúpida.

– Ele veio aqui e pensou em algo que pudesse te animar um pouco. Comentou comigo a respeito das flores e eu fingi ficar animado com a ideia, como faço quase sempre na minha vida. Hoje ouvi a barulheira e fechei a janela. Satisfeita? – ele pergunta e finalmente bebe a aguardente. Era típico dele soar ignorante daquela forma, mas sabia que Haymitch tentava me ajudar à sua maneira.

– Mesmo assim ele seguiu em frente. Encontrei ele aos risos com a amiga dele, a Delly Cartwright. – Suspiro e me encosto à cadeira, bebendo mais aguardente. Sinto novamente meu sangue borbulhar e meus dedos se enrijecerem a ponto de apertar a garrafa com muita força.

– Aquela que foi para o Distrito 13 e o ajudou? É. Ela é bem bonita e muito mais atraente que você. – Ele diz me fazendo ficar ainda mais furiosa. Bato a mão na mesa e Haymitch me encara surpreso. Ficou bravo ao ver que a bebida dele sacudiu e algumas gotas do líquido caíram da garrafa.

– Não sei por que ainda venho conversar com você! – exclamo sem ousar me levantar. Sabia que se fosse para casa acabaria sozinha e isso eu não queria de qualquer forma. Não agora. Eu poderia me matar à vontade depois de estar bêbada suficiente para nem sentir dor.

– Olha, eu não sou um exemplo de vida nem sou o tipo de cara que vai falar algo para te agradar. Se quer uma conversa séria e bem próxima à realidade, veio ao lugar certo. Se quiser um conto de fadas onde tudo dá certo para a mocinha, você escolheu a vida errada docinho. Você tá longe de ser a mocinha e sabe muito bem disso – ele diz duramente, mas sei que é a verdade. Enquanto Delly ajudava Peeta eu estava furiosa por ele querer me matar. No fundo eu sabia que era culpa da Capital, mas mesmo assim o abandonei. Fui pior até que Haymitch porque eu dei a entender de fato que não queria Peeta por perto, e que até mesmo pensei em mata-lo. No fundo sou um monstro que mal pode esperar algo de bom de si mesma, tampouco algo de bom das pessoas que me rodeiam. Era mais saudável para Peeta ficar longe de mim. Haymitch pareceu um pouco culpado por suas palavras e tenta amenizar a situação. Consegue... um pouco. – Certo, não acho que ele te odeie, tá legal? Você precisa relaxar um pouco mais.

– Como relaxar, Haymitch? Eu não tenho mais nada. Mesmo com o fim da guerra o presidente Snow parece me perseguir. Agora eu sei por que você anda sempre bêbado. – Digo enquanto entorno a garrafa quase de uma vez, deixando até mesmo meu mentor um pouco preocupado. Ele não interfere, contudo. Apenas me olhou com uma expressão curiosa no rosto, desejando minha resposta. – Quando se está bêbado a gente custa a lembrar dos sonhos.

Era verdade. Eu sabia porque já bebi com ele uma vez. Fora antes do Massacre Quaternário, quando Peeta viera aqui logo antes de mim e fizera Haymitch prometer-lhe coisas. Suspiro por lembrar mais uma vez do garoto do pão que já não era mais apaixonado por mim. Haymitch solta um riso abafado e deixa a bebida em cima da mesa, crispando os lábios e balançando a cabeça afirmativamente, concordando com o que eu disse. Novamente fico irritada por perceber que sou tão parecida com ele. Imagino se meu egoísmo natural também é algo que Haymitch compartilha comigo. A julgar por suas ações durante a rebelião, imagino que não é bem assim. Ele pode ser o que for, mas ama a gente de verdade. Peeta e eu. Querendo ou não, somos uma família gerada pelos Jogos Vorazes e sempre seremos. Somente nós sabemos o peso disso e o tamanho da ferida que nunca cicatrizará.

– Certo, Katniss. Você seria uma excelente mentora se os Jogos não tivessem acabado – ele diz e eu percebo que isso é mais um elogio a si mesmo do que a mim.

– Não seja convencido. – Respondo bebendo mais aguardente. A essa altura, mal percebo quando dou os goles, apenas que fico cada vez mais tonta. – Eu não lhe daria o gostinho de me tornar mais um pouco como você, Haymitch.

– É, mesmo assim você não precisa se esforçar muito – ele ri de si mesmo e não consigo deixar de acompanha-lo. Acho que é o efeito do álcool.

O mais engraçado é que mesmo Haymitch sendo insuportável e grosseiro a ponto de querermos esbofeteá-lo, ele é a única pessoa com quem posso contar para uma conversa de verdade. Para tratos ele é um inútil, mas sempre nos diz o que precisa sem rodeios. Isso é algo que admiro nele e, provavelmente, mais uma característica que eu também tenho. Se for assim, considero uma das poucas qualidades que possuo.

O tempo passa rapidamente e me vejo conversando com Haymitch até a noite. Não são coisas muito interessantes, apenas fatos engraçados que aconteceram após a morte da presidente Coin – por minhas mãos, embora eu faça parecer que não foi assim. Para Plutarch as coisas não podiam estar melhores. Ele chefia toda a telecomunicação em Panem e, até o momento, não apresenta nenhum comportamento sádico de um Chefe dos Idealizadores de Jogos. A nova presidente Paylor liberou o trânsito entre os distritos e parece bem interessada num manifesto sei-lá-o-quê feito por Karl sei-lá-quem. Estou bêbada demais para entender o que Haymitch diz e acho que ele está bêbado demais para dizer corretamente o que quer. Foi então que ambos ouvimos a porta da casa dele bater e aparece um Peeta bem surpreso, com a sobrancelha arqueada a me olhar incredulamente. Fico surpresa por ele estar ali – levemente irritada, também.

– O que está acontecendo aqui? – ele perguntou olhando para Haymitch e para mim.

– Nada, só estamos tendo uma conversa de mentor para pupila – Haymitch responde desabando de rir logo em seguida, como o fato de me chamar assim fosse motivo para gargalhadas. Mesmo não achando a menor graça, também me mato de rir. Não é um riso gostoso, mas algo involuntário. É como se eu não tivesse controle sobre mim mesma.

– Katniss, o quanto você bebeu? – Peeta volta a perguntar e dessa vez olhando para mim.

– Só um pouquinho – digo tentando manter meus olhos nele, mas não consigo enxergar direito. Por um instante, capto dois Peetas ao invés de só um. Só então me lembro que estou irritada pela presença dele ali, porque há pouco ele estava às risadas com Delly Cartwright e mal parecia se importar comigo. – Mas é lógico que isso não importa.

Ele parece surpreso pela minha resposta. Ah, é claro. Ele não sabe que fui à padaria e o vi com Delly. Bom, isso também não importa já que não tenho conta nenhuma com o que Peeta Mellark faz de sua vida.

– Venha. Vou te levar para sua casa. – Ele diz ignorando completamente o que eu falei há pouco tempo.

– E se eu não quiser ir? – pergunto tentando soar mais irritada do que o normal, só que o efeito sai o contrário e eu pareço mais digna de pena.

– É melhor ir mesmo, docinho. Senão vai acabar caindo aqui e só vai acordar amanhã. Não quero acordar em cima de um vômito que não seja o meu, então suma daqui – Haymitch diz e desaba no chão logo em seguida.

Novamente uma crise de riso me invade e Peeta me ajuda a levantar. Ele me apoia em suas costas de maneira que eu possa caminhar livremente, mas tendo algo para me sustentar sem que eu caia desastrosamente no chão. Passamos pela porta da casa de Haymitch e o mundo parece girar. A crise de riso passou e naquele instante surgiu um terrível sentimento de culpa, como se minhas mágoas voltassem à superfície da minha mente e o álcool não mais conseguisse sufoca-las. Passo pela porta da minha casa e Peeta tenta me empurrar escada acima, mas não consegue. Ele desajeitadamente me coloca em seu colo, fazendo com que eu fique um pouco corada. Não posso nem afirmar se isso aconteceu de fato, afinal eu estava tão bêbada que só via flashes enquanto me movia pelo local. Chegamos ao corredor e ele abre a porta do meu quarto sem me botar de volta no chão. Acho que perdi todas as forças, tanto que se ele me colocasse de pé mesmo com seu corpo para me apoiar eu desmoronaria ali mesmo. Com todo o cuidado sou colocada à cama e um gesto – que também não sei se é real ou não – tão carinhoso e tenro da parte dele foi tirar meus calçados. Esfreguei-me na cama, espreguiçando-me lentamente, enquanto o via sair pela porta. Um desespero me invade e suplico altivamente.

– Por favor, não vá.

Ele me olha desanimado, como se não quisesse ficar mas seu senso moral forçasse a isso. Nem me dei o trabalho de pensar que ele não me amava mais, apenas insisti que ele ficasse.

– Você está bêbada, Katniss – ele diz suspirando logo em seguida. Percebi que esse era o motivo. Senti que, de alguma forma, ele acreditava que se eu estivesse sóbria não o quereria por perto.

– Fique aqui. Por favor. – Suplico mais uma vez.

Peeta olhou para o canto como se estivesse pensando. Sua feição, contudo, era bem desanimada ainda. Ele não estava com vontade de ficar comigo, mas eu precisava dele. Antes que ele me desse uma resposta desmaio em minha cama.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham curtido :) Ah, fala sério... Foi maneiro, não foi? Aguardo comentários e críticas. Abraços!



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