Vita Lumini escrita por Ephemeron


Capítulo 1
De Repente




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/46853/chapter/1

Capitulo I - De repente

 

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Soneto de Separação – Vinicius de Morais

 

 

Tão rápido quanto a própria luz que eles já criaram. Ou quanto o vento quando ia de encontro às asas da águia. Tão surpreendente quanto o bote da serpente. Ou quanto a vida que dá seu primeiro respirar.

 

Num único momento, tudo aquilo que sonharam simplesmente se foi.

 

Realmente chegaram um dia a sonhar? Algum deles realmente sonhara naquela vida tão sofrida?

 

Ah, sim! Sonhavam, os Santos de Athena. Sonhavam com um mundo de paz e justiça. E mais que esse grande ideal, que já seria suficiente para tantos outros mortais na face da Terra, eles também desejavam ardentemente poder viver, somente. Poder estar livre das amarras do sofrimento, da angústia da guerra, do destino inefável.

 

Inefável. O algoz de todos aqueles que brutalmente desapareciam do universo, era nada menos que o próprio deus do submundo. E existia alguma coisa mais finita do que a morte?

 

Houve apenas um suspiro de alívio quando Hades foi derrotado. E era apenas isso. Não havia alegria naquele momento. Não havia nada. Os sobreviventes perguntavam-se quem realmente tinha ganhado a guerra.

 

Pois a destruição e o sangue, faziam parte da paisagem daquele novo mundo que eles salvaram. E também o silêncio.

 

Um grande silêncio. Algo que não estava apenas no ouvir daqueles guerreiros e guerreiras que contavam seus mortos. Estava dentro de seus corações. Uma tristeza profunda abateu-se sobre o Santuário.

 

Athena organizou da melhor maneira possível a reconstrução de templos e das dependências do local. Ao mesmo tempo em que auxiliava na cura e recuperação dos feridos.

 

Sua austeridade impressionou a todos, pois se tratava apenas de uma criança perto de amazonas e cavaleiros tão mais experientes que ela e, ainda assim, representava a deusa da sabedoria com toda a sua imponência.

 

Quando ela chamou as guerreiras para irem até seu salão, ninguém sequer imaginava o que desejava a deusa. E solicitar que retirassem suas máscaras, foi a maneira mais humana e delicada que encontrou para dizer-lhes que estavam livres para viver o luto que se abatia ao redor.

 

Engolindo em seco, as amazonas demoraram a entender o que ela lhes ordenava. E as lágrimas chegaram antes da ação de retirar o frio metal de seus rostos. Ali não se entristeciam apenas por terem perdido companheiros de batalha. Fechadas no salão de Athena, lhes foi permitido chorar como mulheres que perderam um pedaço de suas almas, de seus corações.

 

Assim, o fardo pareceu ficar um pouco mais leve. Porque passaram a carregá-lo juntas. Afinal, cada uma delas percebeu estar vivendo a mesma dor. Athena lhes pediu para continuarem a ser os pilares daquele Santuário, pois agora eram elas as mais antigas guerreiras. Relembrou a história mitológica em que Athena, no início dos tempos, só tinha suas amazonas e as fez sentir orgulho de permanecer no mundo.

 

A máscara continuaria em suas vidas, mas agora sabiam que – quando necessário – tinham um lugar para voltar a serem apenas elas mesmas.

 

Era uma pequena luz que se acendia na escuridão.

 

A escuridão.

 

Eles podiam sentir a escuridão dentro de si. Havia apenas suas tristes recordações e seus tenebrosos pensamentos. E apesar de terem vencido aquela batalha, porque, então, não se sentiam vitoriosos? Porque não tinham o descanso eterno? Porque os Campos Elíseos lhes pareciam tão distante?

 

As histórias se repetiam como filmes na mente de cada um. Detalhes de suas vidas eram revividos constantemente e alguns deles mesclavam-se em passado e em um futuro que jamais chegaria.

 

Os cavaleiros de ouro foram trancafiados em suas próprias lembranças. Em seus próprios anseios, pesadelos, em sua própria consciência. A mesma que lhes dizia que não mais viviam, mas também jamais morreriam.

 

Sabiam intimamente que o que passavam era o verdadeiro inferno.

 

Ausência de vida. Presença de recordações. Atormentando cada um deles com as possibilidades e preocupações mundanas. Trazendo memórias de dores, felicidades, traições e júbilo.

 

E cada um deles teria realmente algo a se lembrar... Agora, aqueles doze cavaleiros não passavam de cruéis pensamentos...

 

A doce lembrança do toque dos pequeninos dedos dele em sua mão fazia seu coração apertar. O olhar gentil e os fios ruivos e sempre revoltos traziam alegria a todos que o conheciam. E então as batalhas. E ele quis tanto tirar de sua cabeça aquela vida de guerreiro... Mas nele também havia, além da felicidade, a coragem. O que teria acontecido à Kiki? Teria também sucumbido à força de Hades? Estaria chorando sua morte? Seu futuro seria no frio templo em Jamiel assim como foi a vida de seu mestre? Ah, deuses, sejam misericordiosos com ele! – orava o cavaleiro em seu estranho sentimento paternal.

 

Pai. País. Por que naquela total ausência de vida e morte, ele podia sentir aquele cheiro? Aquele perfume de terra molhada e de fogão de lenha? Se ainda ali existisse um coração, ele bateria descompassado perante aquela saudade terrível que impregnava o grande Touro. A promessa que fez àquela terra tropical de que voltaria jamais se findaria. Poderia ele voltar mesmo agora? Poderia ele levar flores e cores jamais vistas para os olhos da donzela grega? Estaria a menina viva para tal? Quantos morreram para que a paz se realizasse... O futuro incerto e duro daqueles que restaram, era pior do que lembrar do passado naquele instante.

 

Passado feito de sangue. De dor. De espelho que se refletia na face má. Da traição, ao desespero. Da verdade e da mentira. Do laço familiar e do descaso com o ser humano. Ser humano. Ele não o era. Não ele. Jamais seria. E desejava no mais fundo de sua alma que aquele castigo perdurasse e não seria nunca suficiente. O guerreiro Saga não se perdoava e não se perdoaria. Ele que manipulara os companheiros, os amigos que sempre estiveram ao seu lado... Ele os enganara. Não merecia nada deles e nada mais fez que sua obrigação, no final da vida.

 

Tudo em sua vida foram obrigações. Daquelas iniciadas por seus pais até as que ele impunha a ele mesmo. Chegou um momento em que nada mais tinha a perder. A violência se tornou uma forma de manifestar a culpa por não protegê-los. O grotesco e o brutal eram suas identidades externas, seu coração tornara-se frio. Ou quase. Que era aquilo que lhe trazia tanto conforto? Que era aquela força fraterna que o faria sorrir, se pudesse? Se pudesse... o que faria, Carlo de Câncer, se pudesse viver agora? O arrependimento lhe enchia a alma de dor.

 

Deveria ter dito a ela. Deveria ter lhe tirado aquela mascara. Deveria... Uma possibilidade que não se concretizaria. E como aquilo o consumia! O sofrimento de um leão agora solitário em sua força. O irmão mais velho vinha em pensamento, a imagem dele sorrindo e os instigando a continuar... A levar em frente a batalha. Que heróis foram eles, perto de Aioros? Que tipo de atrocidades fizeram até descobrir a verdade? O orgulho ferido, fazia aquecer o cosmo que não tinha, numa vã tentativa de sair daquele vazio perturbador. Só desejava terrivelmente poder ver o sorriso dela. O futuro, que não haveria, amargurava seus sentidos. Imagens de felicidade, de paz e luz que queria para ela, transformavam-se na tristeza de não poder estar ao seu lado para fazer parte disso.

 

Uma pequena parte do todo. Mais que nunca, ele, o mais próximo dos deuses, sentia que tudo aquilo fora minimamente calculado até o fim. Mas jamais imaginou que seria esse o fim. Treinado para suportar qualquer tortura mental, ainda assim sentia-se extremamente cansado do jogo que faziam com sua razão. E depois de tudo o que controlara em sua vida, percebia-se agora impotente aos mais profundos desejos de seu ser. E ele só precisava... Voltar para casa.

 

Algo ribombava em seu coração. Saudades do lar, verdadeiro lar... O Santuário. O estado letárgico em que se encontrava provavelmente era vivido pelos outros. No fim, trágico fim, eles salvaram a todos e – ao mesmo tempo – os perderam. Seria aquele o verdadeiro equilíbrio daquela balança? A troca justa entre o Olimpo e a humanidade era a vida dos Santos Dourados que os enfrentaram? Aquele martírio duraria a eternidade, mas aquilo não seria suficiente para tirar o orgulho do tigre.  E ele acreditava em uma vitória mais completa que aquela, porque não vivera por tanto tempo para terminar assim. Ele merecia voltar a viver. Todos mereciam uma nova chance.

 

As brincadeiras que fazia quando criança eram tão boas. Mesmo com tamanhas obrigações aquele lugar ainda era tão acolhedor para eles. Naquela época, as preocupações eram distantes... E porque não permanecer assim? Que insanidade pensar que tudo melhoraria! Que ele poderia continuar sua vida na Grécia e ter tantas outras crianças ao seu redor brincando junto com ele. Alguém poderia dizer que estaria louco ao ter esse sonho, mas não eram os escorpiões que carregavam seus filhotes nas costas? E adoraria poder voltar a estar com os amigos, mesmo que fosse preciso carregá-los com ele.

 

Jamais se acostumaria a solidão. E a maldição residia no fato de que, quando enfim conseguiu retornar e vê-los - mais que tudo, vê-los bem, determinados e fortes... Quando pôde sonhar novamente... Então as asas que lhe deram novamente foram cortadas. A mente vagava no sorriso dos companheiros e na expressão da pequena deusa. Guardava aquilo em seu coração, que não batia mais, como a única preciosidade do universo. Ele sabia que ali onde estavam, a lembrança era a única coisa que podiam se agarrar. E se agarrava. O sentimento era único: esperança.

 

Suas maiores armas sempre foram suas mãos. Estas mesmas que jamais voltaria a olhar, manchadas do sangue dos inimigos. A impulsividade e a sede de justiça já o cegaram muitas vezes. Mas agora sabia que o que fizera foi o certo. Então por que o incomodo? Por que a vontade de gritar, mesmo sabendo-se apenas um pó de estrelas perdido na escuridão? Porque queria tê-la protegido. Porque queria sobreviver apenas para abraçá-la uma vez. Ter direito ao amor, enfim. Compartilhar com os companheiros, mais que cicatrizes de guerra. Compartilhar a vida. Viver o que buscaram durante toda a existência.

 

Sua racionalidade o traía. O gelo eterno que ele imaginava estar protegendo-o, na verdade o enclausurara e agora sentia o verdadeiro peso de seus atos em vida. Que seria dele, se não fossem os amigos? E até mesmo os pupilos lhe passavam em lembrança, enquanto a escuridão se agigantava ao redor. A frieza tão característica seria mesmo só a carapaça de seu coração? Descobrira que a verdadeira força, ao contrário do que pregava, vinha da vontade de viver. Mas não sozinho. Ninguém podia viver sozinho. Não em se tratando daqueles cavaleiros. De seus amigos.

 

E a ele só restava sonhar. Só lhe sobrava o odor das rosas e o sorriso daquele que amava, mas não o sabia. Ficavam as gargalhadas do brasileiro e a excentricidade do virginiano. Sonhava com a sutileza do ferreiro, o amor do leão, o sangue quente do latino e a casca fria do vizinho. Residia a admiração ferrenha pelos heróis e amigos - o traidor e o traído. E o respeito ao antigo mestre e a força ciumenta do grego cavaleiro. Ele era aquele que nadava entre o real e o irreal, e deixava a emoção gritar. A escuridão não o afetava, porque em seus anseios a vida ocorria. As águas continuavam a correr... Porque ele não podia. Simplesmente não podia deixar tudo terminar assim.

 

E então todos eles sentiram a mesma dor. Todos sentiram a mesma vibração. Aquela vibração primeira, que do mundo fazia parte e que agora estava voltando a reacender seus corações. A mesma esperança vinda deles era transformada numa dor estranha e palpável. Não a dor da emoção. Era algo... Físico.

 

Começaram a sentir calor e frio, músculos doloridos e cansados. Então o som. Um som que eles reconheceriam em qualquer lugar. Uma única batida, um único impulso. A necessidade do ar e a sua conquista! Eles estavam respirando.

 

De repente, não mais que de repente...

 

A luz.

 

 

CONTINUA...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Vita Lumini" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.