Passado Presente escrita por Vick


Capítulo 1
Prólogo


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem e se expressem nos comentários. Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/468039/chapter/1

Milão, 1690.

As patas do cavalo faziam barulhos engraçados no contato com a estrada embarrada. Havia chovido por pouco tempo, mas foi o suficiente para que pequenas poças se depositassem na extensão. Anabelle tentava segurar-se na estrutura de madeira dentro da carruagem, a tarefa não estava tendo sucesso o bastante, porém Valentim já alimentava seu cérebro com uma imagem tola de mulher indefesa e o cocheiro era um grande amigo ainda por cima. Ela não queria que aquela imagem falsa fosse confirmada.

Visitava o irmão no primeiro dia do mês, ao entardecer, desde que o mesmo saíra da mansão dos Hampton, situada do outro lado da cidade. A família era nobre e reconhecida em alguns lugares da Itália, mas seus filhos queriam independência acima de tudo, nem que isso fosse considerado rude para os padrões da época. Morar afastado da cidade fora uma decisão apenas de Valentim, alguém ousado e curioso. Anabelle preferia ficar perto de pessoas com as quais ela já mantinha alguma relação. O irmão vivia excluído, por pura opção, e a jovem não conseguia entender exatamente o porquê.

O movimento cessou. A carruagem rangeu e em seguida parou completamente. Arlo Bunch abriu a porta e acenou para que Anabelle se aproximasse.

— Dê-me sua mão, la mia signorina.

Ela estendeu a mão enluvada por rendas claras, e com a desocupada desamassou seu vestido decorado com cristais cor creme. O casarão branco tinha janelas grandes de madeira, essas perfeitamente alinhadas na fachada arredondada do terceiro andar. Logo na entrada ficava uma espécie de círculo feito por pedras brancas, que rodeava uma pequena cascata de água com fundo de pedras vulcânicas, o ladrilho se estendia a uma varanda larga.

— Deseja que eu lhe acompanhe, Srta. Hampton?

Anabelle negou com a cabeça. Os cachos escuros esvoaçando na parte aberta da roupa em suas costas bronzeadas. Preferia ir sozinha e aproveitar a presença de Valentim para mais uma conversa animada, ora relembrando a alegre infância, ora discutindo sobre o agora. Os dois sempre tiveram uma ótima relação e a cultivavam através do tempo.

Arlo retirou-se de volta pra a carruagem, o terno marrom folgado ao lado de suas pernas finas.

Então a jovem andou até a porta dupla de cor amarela que estava entreaberta e entornou sua mão delicada no suporte por educação, dando três batidas seguidas; como costumava fazer. Era como um código de identificação na casa da família, e mesmo estando afastados ainda se conservava.

O céu estava alaranjado, com nuvens escuras pontilhando-o de forma agradável. A vegetação farfalhava com a brisa leve, causando uma harmonia incrivelmente relaxante. Os campos de Milão eram uma ótima escolha, um ótimo lugar para se morar.

Anabelle tinha certeza que Valentim estava em casa, por isso bateu o suporte na madeira novamente; dessa vez com mais força.

Três vezes

Esperou mais alguns instantes e por fim resolveu adentrar na residência, o assoalho rangendo sob suas botas de couro avermelhado. Uma escada majestosa chamava atenção no hall de entrada, passando a impressão de um castelo. Algumas poltronas de pele de boi estavam espalhadas de frente para a lareira. As paredes cor de capim estavam decoradas por castiçais de cobre, com velas apagadas. Isso era estranho, levando em consideração que Valentim tinha medo do escuro e o casarão estava naquela situação.

Ela deu mais alguns passos cautelosos até o interruptor, e os castiçais pendidos na parede se acenderam rapidamente assim que seu indicador o pressionou. O cômodo ficou totalmente iluminado.

— Tim! — chamou.

Não houve resposta.

Anabelle andou em direção à escada, olhando para a cozinha – no fundo do corredor – querendo cumprimentar os funcionários, como estava acostumada a fazer --. Nem mesmo Amélia Rovani, a cozinheira adolescente que estava sempre lá, deu sinal de presença. Não havia ninguém aparentemente. Começou então a subir os degraus lentamente, atenta a qualquer ruído, os passos ecoando pela estrutura.

— Valentim? — sussurrou pela segunda vez. Sussurros não iriam fazer muita diferença, certo, porém a jovem conseguia sentir um formigar esquisito em sua espinha; seu sexto sentido avisando-a: — Hey, estou aqui! Algo estava errado.

Quando chegou ao segundo piso, não encontrou nada além de silêncio, novamente. A porta do quarto do irmão estava fechada, e um fio de conforto atingiu-a sobre o coração: talvez ele estivesse tirando um cochilo profundo. Relaxou. Se estivesse mesmo tirando um cochilo o fato era um pouco engraçado: Sr. Hampton adorava um sono de fim de tarde e ela então teria alguma coisa curiosa para contar ao pai. Eles teriam um costume em comum.

Mas isso não explicava a porta da frente estar aberta... A menos que os empregados estejam no jardim, pensou.

Anabelle pressionou a maçaneta arredondada de ferro do quarto de Valentim, porém a mesma não se moveu. Fez mais pressão para o lado direito. Nem um movimento a mais, poderia estar emperrada ou trancada pelo lado de dentro.

— Irmão?

Ela escutou prontamente uma respiração fraca. Estivera tão concentrada em achar seu irmão dentro da própria casa do mesmo que mal percebera alguém atrás de si. Ao virar o corpo deparou-se com Amélia. A cozinheira.

Amélia! Estou procurando Tim... Você o viu por ai? — perguntou exasperada. — Não o encontro em nenhum lugar e a porta da frente estava aberta!

Amélia assentiu calmamente, a boca carnuda em uma linha fina. Não estava uniformizada como em todas as vezes que a vira, e sim vestida de forma um tanto esquisita para uma mulher da época, até para quem não tinha dinheiro; uma espécie de calça preta emendada com uma blusa comprida de gola alta - tudo muito justo – e botas de cano comprido de cor semelhante, essas iam até seus joelhos. Já o cabelo castanho claro, estava solto sobre os ombros formando pequenas ondas. Amélia nunca lhe parecera tão bonita, ou sua beleza apenas estivera escondida atrás de um avental e de uma touca.

— Ele não está mais entre nós — falou indiferente.

— Explique-me! O que está acontecendo? Onde está Valentim?!

Amélia sacudiu a cabeça, distante de qualquer aparente realidade.

— Fique do lado de fora, Anabelle. — Amélia encostou a mão no fecho da porta e segredou uma palavra inaudível, aumentando a curiosidade da jovem. A porta surtiu um estralo alto, e então teve uma fresta aberta para seu interior de trevas. Não havia um fio de luz dentro do quarto. — Não se aproxime desse quarto!

Amélia entrou no cômodo, e somente naquele instante Anabelle pôde notar um boomerang de ouro entre seus dedos. Aquilo era uma arma afiada, e ela ainda não conseguia organizar seus neurônios de forma menos confusa que um rolo de lã embolado.

— Amélia...

Nenhum som veio da escuridão.

O aposento era enorme para ser o que era, portanto, indiferente do lugar onde Amélia estaria a mesma não poderia ser ouvida. Tudo estava realmente muito estranho. Por que uma cozinheira estava agindo daquela forma? Onde estava Valentim, afinal? Essas perguntas exigiam respostas que no momento ela não sabia.

— Amélia... Tim está ai? — perguntou com a voz baixa. — Me responda!

A mulher voltou a se aproximar, fechando a porta, e tomou Anabelle pelos ombros, segurando-a com força.

— Você precisará ser forte... Mas antes também precisará saber de algumas coisas — advertiu. Seu olhar vagava pelo ambiente enquanto as palavras saiam de sua boca, pronunciadas sem cautela.

— Do que exatamente você está falando? Explique-me! O que está acontecendo?!

Amélia suspirou pacientemente, levantou a manga de seu traje e estendeu seu braço, mostrando a parte interior com uma tatuagem grande e vermelha parecendo uma raiz, que continuava além dos limites a vista.

— O que é isso?! — Anabelle estava assustada. Apenas homens tinham permissão de marcar o corpo com tatuagens.

— Você bem sabe o que é! — falou enquanto puxava a manga para baixo novamente. — O ponto é: eu não sou apenas a cozinheira da casa como você pensa, ou pensava... Estou aqui porque além de precisar sobreviver com a merreca que ganho, tinha que proteger mais uma alma... a do seu irmão. Pode parecer estranho, mas você certamente já deve ter percebido coisas estranhas acontecendo a todo o tempo. São os feiticeiros. Eles querem tomar o nosso mundo... Mudá-lo com a magia que possuem e que humanos desproveem. E isso é a minha identificação, o que me faz o que eu sou... Ainda está em teste, logo todos nós poderemos usar.

— Eu não entendo...

— Eu sei que você não irá entender tão rapidamente, mas temos que começar de algum lugar.

Não — Anabelle colocou as mãos sobre a cabeça —, eu não entendo o porquê de você estar aqui. Na casa de Valentim... Por que aqui?

Amélia voltou a tomá-la pelos ombros. Aquilo poderia até ser uma mania.

— Valentim... Bem. Valentim não é exatamente quem você pensa — afirmou. — Digo, ele é bom. Isso é. Porém, ele estava envolvido com a captura desses feiticeiros... Você não achou mesmo morar fora da cidade um pouco estranho?

— Ahn...

Não importa. Não mais. Temos que sair daqui de uma vez... Teremos uma conversa séria! Você fará sua escolha ainda hoje. — falou Amélia. — O fato é que eu estava aqui para ajudar a proteger meu amigo de longa data... A cozinha era somente um disfarce para que não notassem. Nós éramos companheiros de caça.

— O que aconteceu com ele? Por que você não o ajudou? — as lágrimas começaram a brotar dos olhos de Anabelle inconscientemente — Ele está no quarto, não é?! Diga-me!

— EU NÃO PUDE! Estava na cidade quando aparentemente aconteceu... Os feiticeiros devem ter vindo em um grupo! — Amélia estava um pouco desesperada — Mas olhe, eu tentarei ajuda-lo! Sim! Eu vou tentar ajuda-lo. Deve haver alguma forma...

Então. Era isso.

— Ele se foi. E eu quero vê-lo.

— Ah, mas você realmente não quer vê-lo!

— Amélia. Eu. Quero. Ver. Meu. Irmão — respirou fundo entre as palavras. Seu coração chorava tanto quanto ela agora.

Amélia abriu a porta do quarto e prontamente fez sinal para que Anabelle entrasse, a mente da mesma estava tão conturbada com o conhecimento que adquirira recentemente que se sentia zonza.

Anabelle andou até a metade do quarto, era muito mais fácil fazê-lo quando já tinha certeza que nada estava ali dentro. Nada mesmo. Inclusive, o que nesse momento é nada, antes era o que ela mais prezava.

— Quer que eu acenda a luz? — Amélia sussurrou. Escorada na batente, Anebelle tinha quase certeza que a mesma também chorava.

Era seu amigo...

— N-não! — exclamou com a voz trêmula. — Eu só quero senti-lo

Havia uma sombra mais escura que o quarto; colada ao chão de madeira polida.

Tim!

O quarto certamente estava destruído, a mobília, seus pedaços, espalhados pelo chão. Mas Anabelle não via nada mais além da sombra.

Ajoelhou-se ao lado do corpo; dobrando vestido, imediatamente sentiu um líquido viscoso na palma de suas mãos. Sangue. O cheiro de ferro revirou seu estômago. Céus! É Valentim!

— Meu irmão... Meu irmão querido.

Anabelle acariciou seus cabelos pretos que se dissolviam na escuridão. Sentiu seu rosto oval. Frio.

— Tim! Por favor! — falou baixo, não queria que Amélia escutasse sua despedida e isso era um tanto idiota; as duas estavam perdendo alguém. — Volte pra mim! Vamos conversar sobre aquele dia... O que eu cai do balanço da Tia Evy.... V-vamos falar sobre como você cuidou dos meus machucados dando um beijinho... Você sempre foi tão protetor! Ah! Lembra daquela vez na qual você bateu no menino que pediu minha mão em casamento...

— Anabelle. — Amélia devia ter se aproximado. Colocou o braço ao redor dos ombros da jovem. Uma forma carinhosa de apoiá-la.

— Tão bonito... Tão... Meu irmão! Tim! Acorde, por favor! Acorde... — exasperou sacudindo o corpo morto. — Amélia! Diga-me que estou sonhando... Que é só mais um pesadelo!

— Anabelle...

— DIGA-ME! NÃO LHE CUSTA NADA! — gritou.

Amélia pareceu assustada com a exaltação, porém procurou não demonstrar e apertou mais o abraço de lado.

— Você está tendo um pesadelo muito ruim... Muito ruim mesmo. Você está vivendo esse pesadelo, Anabelle. E nós costumamos chamar esse pesadelo de Realidade.

As lágrimas já tinham um gosto salgado quando percorriam seu caminho até a boca rosada dela, podia as sentir se libertando como se de uma cadeia na qual estiveram aprisionadas. Mas ela não as havia aprisionado. Queria deixar sua alma lavada, fazer aquela dor horrível no peito passar. Não passava.

— Por que ele? Eu o amava tanto...

— Eu sei. Eu sei Anabelle. Você tem duas opções: pode acreditar que a morte faz parte da vida, ou que a vida faz parte da morte, entretanto só saberá quando sua hora chegar. Quando forem seus os batimentos petrificados.

— Valentim... Por que fizeram isso?! Por quê?! — exclamou, ignorando. As pessoas nessas horas não sabem os sentimentos reais sufocados dentro do peito, querem somente fazer você parar de sofrer.

Anabelle desprendeu-se do aperto firme de Amélia e colocou com um pouco de esforço, metade do corpo de Valentim sobre suas pernas. Em seguida abaixou-se e o abraçou, coração com coração, tentando sentir uma respiração oculta, a denúncia da linha tênue que divide a vida e a morte tenha se movido para o lado que ela queria.

E chorou. Chorou ao ver que não havia mais nada além do vazio. Teria que viver de lembranças daqui pra frente. E eis uma verdade da vida, lembranças não alimentam o verdadeiro ser mais do que comida. Nesse ponto ela poderia morrer de fome.

— Temos que ir, eles podem voltar — Amélia concluiu enquanto fechava os olhos de Valentim e murmurava: aeternum est in nobis.

— ahn? O que é isso?

— Toda a vez que alguém do grupo morre. Eterno entre nós — explicou.

Alguns instante de silêncio se seguiram, Anabelle acariciando os cabelos de Tim como nunca havia feito.

— Você disse que iria tentar revivê-lo. Como você iria fazer isso? — a garota indagou colocando o irmão de lado. As mãos ensopadas de um vermelho que ela realmente preferia fingir ser tinta.

— Você irá se juntar a mim. Se juntar a nós. Estou planejando muito para a nossa Ordem e quero que cresça com as mudanças... assim como o nosso grupo está crescendo. Eu sou a sua líder.

— E eu quero que você responda minha pergunta. Como você iria tentar revivê-lo?!

Amélia ficou em silêncio. Mas sua mente estava ativa, vagando no tempo; indo para uma época nada distante, quando ela era um pouco mais nova.

— Está em mim. Está no sangue da minha família bastarda e nojenta. Eu sou um conflito, você pode dizer — falou por fim, enquanto cuspia as palavras. Sua expressão era de puro horror e fez Anabelle distrair-se um pouco de seu momento.

— V-você é uma feiticeira? Mas co...

Amélia cortou-a, seus olhar cor de esmeralda afiado como uma faca.

— Eu sou. Apenas sou — disse encarando-a.

— VOCÊ CAÇA SUA PRÓPRIA ESPÉCIE! COMO ISSO É POSSÍVEL?!

— Eles não são... Eles tiram vantagem. Eu uso magia para combater magia! Isso é raro, mas é o certo! E se tudo sair como quero poderemos combater o mal com tudo o que criarei com meu poder! Sim! Nós poderemos — os olhos de Amélia reviraram iluminados em suas órbitas —, conseguiremos controlar o caos que o mundo pode vir a se tornar.

— O que você é precisamente? — Anabelle perguntou. Suas bochechas ainda estavam salpicadas por lágrimas, estas já começavam a secar.

— A partir de hoje você será como eu. Vou fazer ser!

— Amélia... Responda minha pergunta.

— Com algumas vergonhas no sangue. Sede para ser suprida. Eu sou uma Caçadora.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Passado Presente" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.