A Boneca de Porcelana escrita por Matheus Pereira


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



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Era nos tempos da guerra, a Grande Guerra, quero dizer. Papai alistou-se, era 1915. Na época, com toda a ingenuidade de uma menina de seis anos, eu não compreendia porque Papai estava deixando eu e a Mamãe. Muito embora ela tentasse me explicar que nossos irmãos britânicos necessitavam de ajuda nas batalhas da Grande Guerra e que Papai estaria indo para apoiá-los, aquilo não fazia sentido algum para mim. Qual era o porquê dessa guerra? Para onde Papai iria? Em quanto tempo ele iria voltar? Por que eu não poderia ir junto? Muitas dessas perguntas eu fazia à Mamãe, que parecia tão triste quanto eu com a partida do papai. Nós confortávamos-nos uma à outra.

Papai ao menos nos fazia visitas rápidas e surpresas de tempos em tempos, e essas me traziam profunda alegria. Como Papai Noel, aparecia de assombro, trazendo-me uma boneca de pano aos farrapos ou um outro agrado, e também, como o velhinho, estava sempre fantasiado. Usava uma túnica de lã muito grossa, de um verde-amarronzado. Mamãe explicou-me que era um uniforme de camuflagem. Papai deitava-se, então, junto à mim e me contava histórias a respeito da Guerra e fazíamos planos de um futuro que parecia muito risonho. Papai me dissera que a guerra estava próxima de chegar ao seu fim e que poderíamos visitar um parque de diversão.

"Quando iremos, Papai?" – eu interrogava-o.

"Está perto, filhinha, seja paciente..." – ele falava com uma voz carinhosa.

"Eu quero uma boneca de porcelana!" – eu exclamei, olhando para seu rosto iluminado pela luz das velas. "Uma boneca de porcelana de verdade. Não uma esfarrapada de pano. Pois eu quero uma, muito, muito bonita. Uma que pareça tão bonita quanto a mamãe, branquinha, de cachos louros, com um vestido azul. Promete, promete que me dá?" – eu olhava bem para os seus olhos, como se anunciando que não aceitaria uma recusa.

"Prometo, filha, irei trazer-te sim" – ele olhou firme para mim, com uma voz muito cansada e, ao evocar tais memórias agora, como se triste por não poder estar comigo todos os dias. Mas eu mal considerei aquilo. Fazíamos muitos, muitos planos e eles me enchiam de felicidade. Com a ausência de Papai, as poucas horas que eu podia então desfrutar de sua companhia tornaram-se muito marcantes e especiais.

Se Papai ousasse desgrudar de mim – um movimento suspeito que fosse – eu logo arregalava os olhos e fazia beicinho, ameaçando chorar. Ele não ousava, então, a levantar-se, mas logo cantarolava baixinho melodias desajeitadas que eu jamais ouvira e creio que jamais irei ouvir. Eram canções de ninar que me acalentavam. Mas suas voz era um sonífero para quem a escutasse por muito tempo, e eu brigava com ele, aos bocejos:

"Não irei dormir. Ficarei acordada" – resmungava, enquanto o sono ia anestesiando minha mente, mas eu resistia.

"Se eu dormir, Papai, você me acorda?"

"Não vou... Se você cair no sono, é porque precisa de descanso" – ele interrompia as cantigas e me dizia com uma voz doce. Era uma voz tão tranqüila, de modo que realmente me escapa a compreensão como ele era capaz de forjá-la, diante de toda a sangria da guerra.

"Se eu cair no sono, irás desaparecer, não irás?" eu perguntava com a voz chorosa.

"Estarei lá em seus sonhos" respondeu Papai.

E logo eu adormecia com sua voz de anjo. Acordava, contudo, já em sobressalto. De olhos fechados, eu esperava que Papai estivesse ali, em sua túnica cáqui com botões de metal, mas a fantasia acabava quando os abria. Iludia a mim mesma, me recusando a acreditar que Papai fora mais uma vez. Fechava e abria os olhos por umas cem vezes, esperando encontrá-lo em todas. Mamãe vinha me consolar e eu escondia em seu regaço, chorando e repreendendo a mim mesma por ter adormecido. Logo depois, agarrava-me, às bonecas de pano rasgadas, chorando com saudades de Papai.

Mamãe recebia algumas cartas de Papai, que a escrevia nas trincheiras. Ela as guardava com muito carinho numa caixinha de madeira, no alto de um armário em seu quarto, como se fossem um tesouro. Eu pedia, por vezes, para que ela pegasse a caixinha e lesse as palavras de Papai para mim. Hoje sei que Mamãe omitiu muitas coisas. Papai relatava os horrores da Grande Guerra. Pelas cartas, contava o quanto sentia falta de uma roupa seca, pois a sua há muito estava úmida, e por meses ansiava trocá-la. Contava o quanto tinha medo de morrer em alguma batalha, um temor que o assombrava quando via os ratos roerem os ossos daqueles que há poucos dias eram seus companheiros de guerra. Ah, os ratos: esses, segundo Papai em suas cartas, tornavam a vida nas trincheiras um inferno e não poucas vezes era acordado com o som de um tiro de revólver disparado contra um desses por algum combatente, quando o animal era muito insistente. Papai estava atemorizado com a indiferença que a morte era, aos poucos, tratada, como se fosse algo rotineiro e comum. Atos de "heroísmo", como, durante o bombardeiro, sair das trincheiras e ir para a terra de ninguém; eram, na realidade, nada mais que suicídio. Fileiras de soldados caíam, segundo Papai, de uma só vez, e tudo aquilo para dominar pequenos hectares de terra, que logo seriam novamente perdidos. No fim dos bombardeios, o campo de batalha estava lotado de cadáveres, contava-nos, que se juntavam como uma única massa, e mal havia como distinguir os corpos de ambos adversários. Poucos tinham um enterro digno. "É como se o inferno tivesse vindo à Terra", descreveu, citando o racionamento da ração, a exaustão e o barulho proveniente das explosões de artilharia que os acompanhava desde os primeiros alvores do dia até as últimas trevas da noite, sem interrupção.

Sua última carta se deu já por meados do inverno de 1917. Estava em território francês, a muitas milhas de casa, e preparava-se para uma importante ofensiva contra os Aliados. Disse que conseguira roupas novas e secas, finalmente. Mas não tinha uma perspectiva tão boa quanto a esse ataque, sendo isto o que disse; não exatamente nessas palavras, a bem da verdade, mas mais ou menos assim: "Temo muito esta ofensiva contra os alemães, posto que, estando numa das primeiras fileiras de trincheiras, logo partir para o que chamam aqui de terra de ninguém. E digo-lhe que terei sorte se Deus for bondoso o suficiente para permitir-me viver. Posso dizer que a única coisa que me inquieta sobre a morte é que ela significa deixar-te e deixar também minha pequena. Se desta vez tiver eu a infelicidade de partir, por favor, lembre-se de mim pelas pequenas e boas coisas que fiz para trazer um pouco de felicidade nesse mundo de miséria. Peço que em suas rezas coloque meu nome e rogai pela misericórdia divina. Possa Deus ter piedade pela minha pobre alma". Terminava assim a última carta que papai enviou-nos. Ali ele escrevera como se houvesse previsto o que lhe estava guardado, pois seu corpo na frente de batalha teve nada senão a função de parar uma das balas da artilharia alemã.

Essa carta, por motivos lógicos, inquietou Mamãe por muitos dias, durante os quais ela parecia estar sendo torturada. Via-a rezando todos os dias, durante muitas horas, enquanto eu brincava com as bonecas de pano dadas por Papai. Não entendia porque Mamãe estava tão ansiosa e amargurada.

"Quando Papai vem novamente, Mamãe?" – questionei-a. Ela ficou desconcertada.

"Temos que ter fé que logo ele virá, querida. Reze pelo seu pai, está bem?" ela pediu-me. Eu observei seus olhos azuis, bonitos olhos azuis, que agora reluziam. Não percebi a motivação do seu pedido e apenas disse que não sabia rezar, voltando a brincar com as bonecas, observando a neve.

Mais alguns dias se passaram e o martírio de Mamãe continuava. Parecia que passava as madrugadas em vigília, pois seu cansaço era aparente e tinha profundas olheiras manchando-lhe sua linda face. Minha mente infantil estava alheia à tudo. Eu tentava encontrar motivos para a sofreguidão de Mamãe. Será por que eu me comportei mal, alguma vez? Ou por que não a acompanhava em suas orações? Senti o ímpeto de abraçá-la, certa vez, quando ela tinha o olhar absorto na já então fraca neve que caía, mas contive-me.

O rapaz dos telégrafos entregou-nos, nessa mesma semana, uma carta. Já era tarde da noite. Achei que era mais uma de Papai, mas, mais tarde, descobri se tratar de uma carta do War Office. Contudo, lembro que, naquela época, eu logo me animei com a perspectiva de ouvir o que Papai havia escrito, torcendo para mais uma de suas visitas. Mamãe rasgou o envelope apressadamente e começou a ler, sentada numa cadeira em frente a uma mesinha. Ela levou a mão à boca, parecia chocada com o que tinha lido.

"Qual o problema, Mamãe?", eu perguntei, me aproximando dela. Mamãe estava paralisada.

"Vá para o seu quarto", ela ordenou, sem forças. Eu não compreendi e continuei ali, em pé, ao seu lado, mas sem ousar em me aproximar mais. Falou num tom muito mais alto e urgente: "Agora!", e eu de pronto obedeci. Na porta de meu quarto, inclinei-me para poder vê-la. Ela estava inclinada sobre a mesa, com a cabeça abaixada e apoiada em um de seus braços, segurando a carta com o outro. Pude ouvir seus soluços. Eram muito baixos, como se ela se esforçasse para não fazê-lo serem ouvidos. Ela não conseguiu conter e logo soltava gemidos altos, gemidos de sofrimento que ecoaram em minha mente por muitas horas. Parecia um animal agonizando. Foi então que soltou um grito longo, vindo de dentro, um grito de um ser em profunda agonia.

Naquele momento eu senti tanta pena de Mamãe, pois mal posso aqui descrever o quão sofrido foi aquele grito estridente, nem chegando perto ao ruído do metal rangendo contra um objeto espesso. Ao mesmo tempo curiosa com o que Papai escreva. Ou não seria Papai? Entretanto, fora tratada tão ferozmente que achei melhor ir para o meu quarto.

Deitei-me, envolvendo por uma montanha de cobertas. Por muito tempo, pensei em desobedecer à ordem que me fora dada, pois me doía muito ouvir o choro de Mamãe chegando ao meu quarto; um choro agora sufocado. Percebi minhas mãos trêmulas e, naquele momento, milhares de possibilidades acerca da carta recebida passavam por minha cabeça. Eu era muito ingênua e pouco sabia sobre as realidades da Grande Guerra, contudo, para entender o seu real conteúdo, mas não deixava de ficar agitada em minhas conjecturas. A chuva, que caía junto com a noite, batia contra a janela sufocava os soluços de mamãe. Isso me trouxe um pouco de alívio. Agarrei-me, então, a uma das minhas bonecas de pano favoritas. Ela lembrava-me papai e de suas cantigas. Tentei recordar alguns versinhos, mas eles já me escapavam à mente. Acabei pegando no sono com a paz causada pela recordação da sua voz tranqüila e doce.

Devo ter acordado algumas horas mais tarde, no início da madrugada. Não por acordar, mas como se acabasse de ter um pesadelo: um despertar súbito, com o coração palpitando em tal pânico que mal conseguia respirar. Fechei os olhos e aquela mesma sensação ruim de ansiedade não me deixou em paz, até que desisti de tentar voltar ao sono. Larguei a minha boneca de pano, enquanto a chuva, em furiosa tormenta, parecia destruir tudo lá fora. E, em meu quarto, encontrava-me imersa por uma escuridão amedrontante. A vela já se apagara e eu podia sentir a cera no móvel de madeira. Fechei os olhos e tornei a abri-los, na esperança de minha visão agora me permitisse enxergar um centímetro a minha frente que fosse. Era como se eu houvesse me tornado cega. Meus outros sentidos, contudo, pareciam ter se aguçado, ou era apenas o medo do escuro e das coisas que ele escondia. Digo isso, pois, sabe, quando temos consciência da presença de alguém, mesmo na escuridão total? Eu sentia que ali estava alguém, junto comigo.

"Mamãe?" perguntei, ao reunir toda a coragem que pude. A única resposta que tive foi a da chuva – tudo estava tão silencioso que era possível ouvir o ruído com que os pingos atingiam o chão. O vento também rugia, sacudindo as árvores. Já fazia muito frio em meu quarto e eu podia sentir o ar gélido se deslocando. Possivelmente, não fechara a janela por completo. Contrariada, levantei-me, ouvindo o piso estalar. Ah, aquela sensação – uma sensação muito ruim – continuava comigo. Mas nenhuma alma vaguearia por ali àquela hora, num inverno rigoroso daqueles.

A sensação aumentava junto dos meus passos em direção à janela. Fingi que não se tratava de nada, ao constatar que, a janela estava completamente fechada. Ouvi um suspiro, porém. Não era um ar gélido, era, na realidade, bem quente e bem perto do meu ouvido. Um relâmpago rasgou a noite, trazendo consigo um barulho muito forte de trovão, que estremeceu as vidraças. O relâmpago encheu, num rápido segundo, a paisagem por trás da janela de um clarão de luz. Vestido em um uniforme militar muito familiar; outrora cáqui e agora todo coberto de um líquido escuro, Papai inclinava-se sobre a janela. O olhar estava fixo em mim, as mãos fortes estavam apoiadas no vidro. Papai não se movia. A escuridão voltou novamente e nada pude enxergar.

"Papai! Papai! Vá à porta! Não fique aí nessa friagem!" eu gritei para ele. Ouvi o barulho de uma porta se bater. Um novo relâmpago se armou, um pouco mais fraco. Papai estava, sem nenhum milímetro de diferença, na mesma posição que ocupava. Agora, porém, eu via lágrimas descendo-lhe as faces. Vi nitidamente as lágrimas já nascentes chegando-lhe à boca. Apesar disso, tinha uma expressão apática, alheia à tudo. A escuridão voltou. Ouvi passos atrás de mim.

"Com quem... Com quem está gritando?" – era a voz de Mamãe: seu rosto iluminado pela luz fraca da vela que segurava. Eu me virei imediatamente, encarando seu rosto aturdido.

"Mamãe, é o Papai! Papai está lá fora, mas se recusa a entrar! Está machucado!". Sob a luz de outro relâmpago, Mamãe olhou abismada para a janela, e não tive tempo de virar-me para encarar Papai de novo. Apenas observei sua expressão atônita.

"Oh, meu Deus" ela suspirou.

"Abra a porta para Papai! Deve ter congelado com o frio!", eu clamei.

"Não é seu pai! Não é seu pai!", Mamãe repetia em um tom desesperador.

Eu me virei para a janela, ao tempo de um relâmpago ainda mais fraco, como se fosse a faísca do primeiro, iluminar as trevas. Apenas vi a fraca sombra de um homem portando uma arma de fogo pesada se afastar. Sabia, no fundo do meu ser, que aquela presença não fora material. Por isso, comecei a chorar – sem entender tão bem porque o fazia. Aquele jogo de luzes finalmente chegou ao fim e encontrei conforto no regaço acolhedor da Mamãe, que nada falava. Apenas mexia em meu cabelo, acariciando-o. Fiquei assim, sob minha cama com Mamãe, aos prantos, até cair no sono.

O dia amanheceu triste: muitas nuvens ainda se agrupavam e estava tudo muito escuro. Agarrei, instintivamente, minha boneca de pano. Sua textura parecia diferente, o que me deixou intrigada. Empurrei as cobertas para o chão do quarto, encontrando uma boneca de porcelana. A aparência da boneca era muito realeta, de modo que não parecia inanimada. Os lábios eram pintados por um batom vermelho. Seus olhos de vidro eram grandes e inocentes: muito azuis e encantadores. Eram quase da mesma cor que seu vestido azul de algodão, que, por sua vez, estava completamente limpo e abotoado. Sobre ele, caíam-lhe lindos cachos dourados, como os de Mamãe.


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Notas finais do capítulo

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