Valsa para Contrabaixo e Piano escrita por Anya Tallis


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Tom, Iohannes e Sara são personagens originais de uma história que escrevi entre 2012 e 2013, chamada "Aquele Tempo", que não será postada no site por ter cerca de 900 páginas. Como amo cada personagem que criei, pretendo utiliza-los em one shots que serão postadas periodicamente.



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Quando estou cansado da vida que levo, deixo que Iohannes toque para mim.

E ele toca o meu violino, o meu corpo e a minha alma.

Era um dos garotos da orquestra, onde tocávamos juntos desde crianças. Não me lembro de ter sido seu amigo; arrisco-me a dizer que nunca fomos próximos. Exceto, é claro, pela ocasião em que eu lhe contei que nunca havia beijado uma garota. Tínhamos dez, onze anos, aproximadamente. Lembro-me de sua risada de incredulidade. Disse-me que me beijaria para mostrar como se fazia. Duvidei, e ele segurou o meu rosto com cautela, como se temesse que eu o afastasse com um empurrão. Não o afastei, e o beijo terminou em um riso envergonhado.

Quando o reencontrei, tinha dezessete anos e estava irremediavelmente apaixonado por Sara Mortensen. E Iohannes sabia, pois eu mesmo lhe contei. Ainda assim, correspondeu às minhas desastradas tentativas de suprir minha carência em seus braços. Eu poderia ter escolhido uma garrafa de bebida para tentar esquecer Sara; escolhi Iohannes, e até hoje não a esqueci.

– A minha mãe queria que eu fosse copista - ele segredou-me, um dia - Vivia elogiando tudo que eu escrevia ou desenhava.

Estávamos na extensa biblioteca de sua residência. Com os cabelos presos e uma barba rala que o fazia parecer um pouco mais velho, parecia mais encantador naquela tarde. Corria as mãos pelas prateleiras sem, contudo, pegar livro algum.

– Pode me mostrar alguma iluminura que tenha feito? - pedi, parando em meio às estantes de madeira escura.

Ele tirou um livro qualquer da prateleira e mostrou suas páginas para mim. Havia copiado até a metade, com letras caprichosas e desenhos extremamente delicados e cheios de detalhes, em tintas preta e vermelha. Não consegui conter uma exclamação de surpresa.

– Então tem outros talentos, além da harpa - era para ser uma pergunta, mas não foi feita em tom interrogativo.

Dei-lhe o meu melhor sorriso enviesado, passando a mão pela testa para afastar os cachos que insistiam em cobrir meus olhos. Iohannes demorou a responder, encarando-me demoradamente, como a decidir se aquela seria a deixa para que ele retrucasse com algum galanteio.

– Muitos - foi tudo que ele me disse em resposta.

E permaneceu imóvel, em pé, à minha frente. Parecia prender a respiração. Eu também prendia a minha, sentindo-me prestes a estender a mão para puxá-lo em direção a mim. A tensão, no entanto, parecia uma parede sólida que nos separava.

– Eu sei - retruquei, sem que qualquer pergunta houvesse sido feita.

– Eu escrevi uma coisa para você - ele falou, em um tom de voz tão baixo que eu poderia ter me aproximado mais, com a desculpa de escuta-lo melhor.

– Uma carta? - devo ter soado muito tolo ao falar, porque ele me encarou por um breve instante, antes de rir.

Era uma música. Pedi-lhe que tocasse para mim. Ele não podia. Era uma valsa para contrabaixo e piano, e ele não era excelente em nenhum dos dois instrumentos. Pelo contrário: fora a harpa e o violino, que ele tocava com perfeição, Iohannes era fraco em todos os outros instrumentos.

– Então por que? - perguntei-lhe, sem compreender.

– Outra pessoa pode tocá-la - sua resposta foi singela, e não parecia admitir réplica.

– Você quer que outra pessoa toque a sua música para mim?

Ele ergueu os ombros, meio desamparado, meio desolado. Que remédio teria? E então me lembrei de minha amada Sara Mortensen, e de como Iohannes sabia que era nela que eu pensava, era ela que eu desejava, e era por ela que eu sofria. Que remédio teria? Eu queria Iohannes como um remédio para aliviar a dor, e ele nunca reclamara. Tinha vivido, em dezessete anos, mais tribulações do que qualquer pessoa mais velha poderia aguentar em uma vida inteira, mas todas as coisas ruins pareciam desaparecer quando ele tocava alguma música em meus aposentos privados. Costumava gostar tanto daqueles concertos particulares que, mesmo nos momentos em que ele se deitava sobre meus lençóis, tirando a minha roupa com agilidade e deixando que seu corpo aquecesse o meu, cada melodia continuava tão viva em minha mente que ele me flagrava cantarolando em seu ouvido. Sara teria rido de mim; tinha o prazer de ridicularizar tudo ao seu redor, com aquele antipático riso sarcástico. Céus, porque ela, tão perversa, e não alguém doce e querido como Iohannes? Por que meu coração pertencia à mais cruel das criaturas, enquanto havia alguém disposto a entregar seu corpo e sua alma a mim, junto com as notas de suas canções?

Talvez fosse eu, afinal, a mais cruel das criaturas.

Parei de murmurar a melodia da canção e aproximei meus lábios do ouvido de Iohannes, sussurrando.

– Desculpe-me.

Ele não compreendeu. Estávamos envolvidos demais. Nossas mãos estavam entrelaçadas, e o meu suor gotejava em seu rosto.

– Desculpar, Tom? - ele franziu as sobrancelhas, com ar cansado - por que?

Por Sara, eu devia ter dito. Mas aquele não era o momento. Não em meu leito, em meus aposentos privados, depois do meu concerto particular. Talvez um dia, quando estivéssemos discutindo, eu confessaria a ele, com raiva na voz, que era Sara que eu amava. Naquele momento, porém, limitei-me a responder.

– Desculpe-me por estar sendo um idiota com você.

Ele ergueu a cabeça do travesseiro, apenas o suficiente para que seus lábios tocassem os meus.

Eu estava perdoado.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler! Espero que tenha gostado e que continue curtindo as minhas histórias!