Bonecos Quebrados escrita por Jeniffer Viana


Capítulo 1
Capítulo único - "Bonecos Quebrados"




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Existem histórias sobre um erro incorrigível do universo, erro este que faz com que surjam criaturas defeituosas. Essas aberrações têm a inútil capacidade de pensar sobre tudo o que percebem, escutam e sentem.  Diferentes de todos os outros bonecos de carne, dos brinquedos feitos em série.


Por muito tempo eu vivi com a certeza que todos eram iguais, que as histórias não passavam de histórias, lendas. No principio o meu trabalho era simplesmente observá-los em sua mecanicidade.


Até que um dia o Chefão me chamou e disse que meu dever seria outro, foi a partir desse momento que eu comecei levá-los embora. O que foi bom, afinal, confesso que já estava cansado do mesmo trabalho chato e sistemático de tantas eternidades: Ver e anotar. Ver e anotar. Ver e anotar. Ver e anotar os mesmo pensamentos, as mesmas ações. Os humanos sempre agem, trabalham, se divertem, amam, odeiam, esperam, falam e sentem conforme o programado. Passar o tempo vendo isso é extremamente cansativo, portanto, pensei que seria bom começar a levá-los embora.


Não foi.


Tinha esperanças que eles reagissem de uma forma diferente quando eu os tirasse daqui, mas minhas esperanças caíram por terra, bateram forte no chão e me mostraram mais uma vez o vazio de toda essa dança. Eles permaneciam iguais, sempre preocupados com carros importados, um amor encantado e peitos de plástico.


Mas tudo bem, continuei fazendo o meu trabalho sem me perguntar a cada cinco minutos: “o que estou fazendo aqui nesse planeta iluminado?” - os bonecos gostam de luzes coloridas.


À exemplo deles estabeleci meu próprio padrão, minha própria rotina. Eu pegava a lista dos “escolhidos” e os procurava sem me importar com mais nada, quando localizava um, “diminuía meu ritmo”, dizia o nome que estava escrito, abraçava o brinquedo quebradiço e... PUFT!


  Fácil assim.


E os que ficam não percebem nada, nadinha mesmo. Porque como já disse, eles são feitos em série, qualquer um pode ser substituído.


A linda morena que levei semana passada já foi esquecida, existem milhares de morenas lindas pelo mundo. Ela estava beijando o namorado quando eu a peguei. Ele se sentiu meio confuso no início, mas logo ele viu outra bela mulher passando e simplesmente esqueceu.


Aquele senador que levei antes da última eleição, teve seu lugar preenchido por outro tão igual que é como se nunca tivesse deixado seu gabinete.


O contador que peguei no meio de uma atualização de cálculo, foi trocado por uma dúzia de outros contadores que passam os dias trancados em salas excessivamente iluminadas. O escuro faz com que sintam solidão, os humanos não gostam disso. Não gostam de perceber que são mercadorias baratas, uma mistura de água, carbono, amônia, cal, fósforo, sais, nitrogênio, enxofre, flúor, ferro...


Com o tempo me acostumei com o senhor deles.


Tique taque. Tique taque. Tique taque.


Mesmo não tendo passado ou futuro, comecei a ver essas divisões inexistentes como um deles. Faz parte de qualquer trabalho entender aquilo com o qual você lida. Isso me ajudou a suportar o mesmo espetáculo repetitivo.


“Idiotas que sonham em mudar o passado morto e vivem em um futuro inexistente”.


Simples. Simples. Simples.



Vestibulandos querem passar no vestibular. A raiva faz gritar. O medo diz para se esconder. A esperteza ensina a enganar. Não confie em ninguém. FIQUE SEMPRE EM PRIMEIRO LUGAR. Os escritores querem ser lidos. As mulheres precisam ser idolatradas. Não se atrase. Ganhe muito dinheiro. Domine. FIQUE SEMPRE EM PRIMEIRO LUGAR. Acorde cedo. Durma tarde. Coma. Vomite. Compre. Invista. Engane. Se engane. FIQUE SEMPRE EM PRIMEIRO LUGAR.


Junto com as histórias do erro que existia, algumas sombras mais velhas, me contavam lembranças de outras épocas, um tempo no qual os parques eram lotados de árvores, flores e animais, que a primavera era esperada, na qual os bonecos corriam descalços sobre a relva e que algumas criaturas defeituosas (frutos do erro) ainda pensavam nessas coisas inúteis. Mas eu ainda não tinha encontrado alguém que não fosse como dezenas de outros bonecos de carne, que não fosse descartável. E foi assim até aquela tarde escarlate.


O sol se escondia lentamente enquanto pessoas corriam de volta para casa com fones presos ao ouvido. Eu Deslizava entre prédios de tons cinzentos, corria procurando pelo nome que estava escrito em uma folhinha de papel que estava presa entre as minhas mãos. Até aquele momento, era apenas mais um trabalho. Um como qualquer outro.


Eu a encontrei em um parque de concreto. Ela estava fitando chão com grandes olhos castanhos opacos, sem se preocupar com o dia que acabava ou com a voz da mãe que a mandava ver algum programa em um telão público.


–Carolina? – perguntei me aproximando. Todos olhavam quando chamava. A menina não olhou. Aproximei-me com passos firmes e a toquei. – Temos que ir.


Abracei.


Esperei.


Nada aconteceu.


– Quem é você? – ela me perguntou enquanto eu percebia que todos os outros bonecos estavam desligados.


Pela pergunta percebi que estava na frente de uma das aberrações, pela primeira vez, um daqueles inúteis seres pensantes.


– Isso não importa.


A menina sorriu.


–Tudo importa cada ato, palavra, sentimento e principalmente procurar saber que é você e o seu lugar nisso tudo. – respondeu dando um passo para trás.


–Nada importa - respondi secamente. – tudo o que você pensa amar hoje não vai existir amanhã, as pessoas para qual você jura lealdade são esquecidas, trocadas. A roupa que você tanto deseja no agora, amanhã vai fazer parte de uma coleção de moda ultrapassada. Tudo é oco, vazio e passageiro. Sem explicação. Não vale a pena ficar fazendo perguntas que não possuem respostas, passar a vida toda montando um quebra-cabeça incompleto.


A garota revirou os olhos.


–Você sabia que viver dói? – perguntou a garota com uma voz suave – É muito difícil viver, o tempo todo se vê coisas lindas, deliciosas. É doloroso prestar atenção em outra coisa que não seja a beleza do mundo. Tudo importa até as coisas que não existem.


–Eu faço pessoas desaparecerem a meses e ninguém percebeu isso até agora. Todos que levei deixaram esse planeta sem causar dano algum. Não tinham nada de importante.  Ninguém tem. Ninguém é.


–Ah! Entendi. Você se esqueceu. – ela me disse levantando os olhos pela primeira vez.


–Me esqueci? – perguntei confuso, nunca me esquecia de nada.


– É às vezes as pessoas se esquecem. – disse ela com uma voz distante.


–Se esquecem?


–De quem elas são. – respondeu solene.



–Eu sou uma sombra, vivo para servir o chefe, para fazer as coisas que ele manda. Não devo perguntar quem ele é ou há quanto tempo existimos. Somos o que somos e ponto.


–Como os humanos, eles pensam que vivem para ter dinheiro e serem melhores que os outros, seguem essas leis que foram estabelecidas antes que tivessem nascido. Confiam cegamente que sabem o que estão fazendo.  Fingem ser o que pensam ser, mas eles não são e você não pode culpá-los, você é como eles: tem medo da dor. Mas, sabe, até as sombras deveriam aprender.


–Você é estranha.


–Singular e única? –perguntou sorrindo.


Não respondi.


– Mamãe não vai sentir falta de mim – disse ela após alguns instantes olhando para a boneca caída que estava próxima de nós – e nem um dos meus amigos vai. Eles podem me substituir com facilidade. Mas, mesmo que eles não se lembrem você não pode me dizer que o tempo que passei com eles foi inútil e comum. Aproveitei cada segundo ao lado deles.


–Como estava fazendo agora pouco? – perguntei com sarcasmo – Olhando o chão enquanto sua mãe mal percebia que estava do lado dela?


–Talvez isso tenha sido vazio pra ela, não posso negar. Mas, te garanto que não foi pra mim, captei em cada momento algo exclusivo. Pena, que você não seja capaz de ver isso. Poderia se divertir muito.


– Você precisa ir. – disse sério - Esse planeta não tem mais lugar para você.


–Então vou para um lugar que tenha, não é? – indagou ela sorrindo.


–Acho que sim.


Então sem que esperasse fui abraçado.



PUFT!



Os outros bonecos acordaram, a mãe de Carolina se levantou e seguiu seu caminho sem perceber o que havia perdido, sem ter sua vida afetada.


Respirei fundo, as história são diferentes quando são vividas. Ter escutado por tanto tempo sobre os erros que inevitavelmente surgem no universo não me preparou para o encontro que tive com Carolina.


De qualquer forma isso foi uma exceção, e torço para que isso não se repita mais. Nunca mais.



Tique taque. Tique taque. Tique taque.










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