Miseráveis e Inconstantes escrita por Vulpvelox


Capítulo 4
Ganho mais uma piada para meu arsenal!


Notas iniciais do capítulo

Então, eis aqui um capítulo novo. Esse demorou pra sair, porque faltou um pouco de inspiração durante esses dias, mas é isso aí. Desculpem os erros ortográficos. O capítulo é meio grande, mas eu vou relê-lo no dia seguinte e corrigir o que eu tiver de ortografias erradas e pendentes. Espero que gostem *-*



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Foi uma hora muito trabalhosa para convencer Preston a esperar até o jantar. Quando cheguei a casa com o garoto ao lado, com o estômago roncando audivelmente, ele invocou com a ideia de se dirigir ao armário para comer os biscoitos. Se ele ficasse sem fome por comer porcarias e açúcares, mamãe me mataria, com certeza.

Mas depois de um ótimo jantar, eu estava lavando toda a louça que foi suja durante a refeição, olhando pela janela que havia fronte a pia, observando o jardim que circundava toda a casa. Estava bem iluminada com os refletores que foram colocados no local, iluminando os anões de jardim de minha mãe. Esses retratavam os anões da Branca de Neve, que guardavam lealmente as chuvas de prata que dona Carmen cultivava em várias áreas do gramado. Estava bonito, no entanto nada se comparava ao brilho natural das estrelas e os poucos pontos escassos de iluminação que as lanternas faziam quando eu era menor.

— Como foi o dia, meu amor? — Minha mãe perguntou, bem atrás de mim, enquanto eu enxugava as mãos no guardanapo, mesmo elas estando secas há muito tempo.

Reprimi um pulo com o susto e permaneci com o rosto neutro e um pouco indiferente, enquanto dona Carmen abraçava os meus ombros com um dos braços, beijando o topo de minha cabeça.

— Foi normal, como qualquer outro. — Menti, fingindo um tom desinteressado. — Nem parecia primeiro dia de aula. — Dei de ombros, pendurando o guardanapo ao gancho que ladeava a janela. Mamãe não pareceu se convencer com a minha resposta, mas ela tentou ser o mais discreta possível quando franziu os lábios. Sua voz agora era cheia de significados:

— Nenhum gatinho ou paquera nova?

— Mãe! — exclamei em tom repreendedor, desvencilhando-me do abraço dela e virando-me de costas para a pia, recostando-me na mesma enquanto olhava para Carmen com uma face indignada. Ela apenas ergueu ambas as mãos ao lado do corpo, em sinal de rendição.

— Tudo bem! Tudo bem. Eu só perguntei. — falou, baixando as mãos e evitando olhar para mim. — Mas não tinha mesmo nenhum garoto por quem se interessou?

Suspirei impacientemente e passei uma das mãos pela minha face, como se estivesse medindo palavras antes de responder com azedume para minha mãe e magoá-la. Consegui conter essa vontade e então, soei apenas impacientemente.

— Não, mamãe. Nada de jovens interessantes pra mim. — Cruzei os braços fronte ao peito. — Feliz agora?

— Bem, feliz eu não estou, né? — respondeu ela, olhando para baixo, aparentando estar realmente desapontada, mas logo sua face se metamorfoseou num sorriso relaxado. — Tem um lado bom. Pelo menos minha filha não vai aparecer grávida cedo demais aqui em casa.

— Que ideia, dona Carmen. — reclamei, caminhando até ela e lhe depositando um beijinho leve na testa. — Estou subindo. Estou cansada e amanhã ainda tem aulas. Boa noite!

— Boa noite, filha.

Subi as escadas de dois em dois degraus, ouvindo apenas o som abafado de meus passos, que passavam despercebidos pelo fato de ainda estar calçando as meias e sujando toda a sua superfície branca. Mamãe ficava irada quando eu fazia isso, contudo eu gostava de andar de meias pela casa. Logo que cheguei ao andar dos quartos, escancarei a primeira porta que havia ali, que se encontrava apenas encostada. Daquele cômodo saía um rock leve e inspirador em som baixo. Várias dessas músicas que Shane escutava compunham a minha playlist, várias delas sendo recomendadas pelo próprio. Coloquei a cabeça dentro do recinto e localizei meu irmão mais velho junto a sua escrivaninha, que estava lotada de papéis, anotações, pastas e canetas.

Meu irmão estava com o cotovelo apoiado no móvel, o queixo sendo sustentado pela mão, enquanto a outra segurava frouxamente uma esferográfica azul.

— Shane. — chamei-o, porém nenhuma reação. — Shane!

Ele deu um pulo no lugar, soltando a caneta e virando-se para a direção da porta, com os olhos pesados e rosto grogue.

— Quê?! Hein?! Onde?!

Franzi a testa e sorri sarcasticamente para ele, arqueando as sobrancelhas logo em seguida quando ele se deu conta de que havia cochilado. Ele soltou um longo bocejo, espreguiçando-se no lugar enquanto perguntava:

— Hein, baixinha? — ele boceja entre sentenças. — O que foi?

— Ah, nada. — falei, dando de ombros. — Só vim dar boa noite.

— Ah. — disse ele, como se isso fosse surpresa. — Boa noite, baixinha.

— Boa noite. Dorme bem. — desejei a ele, encostando a porta outra vez, devagar, enquanto a porta abafava o som da voz dele, que dizia: “Você também.”.

Quando passei pela porta do quarto de Preston, eu abri a porta e sua televisão estava ligada, emitindo uma luz muito forte no quarto inteiro, apesar da lâmpada estar desligada. Meu irmão menor estava no seu centésimo sono há essa hora, alheio ao que passava na tela de sua TV; um programa chamado Regular Show. Dei um risinho e caminhei até o mesmo, dando-lhe um beijo na bochecha e desligando o aparelho televisor antes de sair e caminhar até meu quarto.

***

Ao terminar o meu banho demorado, parecia que meu sono havia ido direto pelo ralo junto com a água do chuveiro. Eu estava com o celular ao meu lado, olhando a cada dois segundos para a tela, esperando uma resposta de “boa noite” por torpedo. Coisa que não vinha há mais de semanas. Toda fonte de luz dentro de meu quarto fora apagada, exceto pela luz dos refletores dos fundos que ainda emitia claridade no jardim da lateral, que era o local onde a janela do meu quarto dava-me uma visão para a árvore mais bonita de todas: a cerejeira.

Permaneci sentada no enorme estofado que havia bem em frente à janela, que antes era apenas uma enorme soleira que virara uma espécie de sofá, onde eu executo as minhas leituras infinitas. Sentei-me encolhida, com os braços pousados acima dos joelhos dobrados, em cima das almofadas. O vento soprava a copa da cerejeira, oferecendo-me muitas lembranças. Principalmente àquelas que relacionavam ao meu pai, quando acampávamos no jardim, bem embaixo da árvore. Shane tinha sete anos, eu tinha cinco e Preston nem era nascido. Sempre fazíamos isso quando mamãe fazia algum tipo de plantão num hospital, por conta de cirurgias complexas de seus pacientes, aos quais necessitavam de suas mãos experientes e formadas.

Lembro que ficávamos conversando até tarde, olhando pras constelações que meu pai gostava de observar nas noites “livres” quando estava em alguma missão de guerra, porém essas expedições mal duravam dois meses ou três. Papai contava as histórias de quando ele era jovem na escola militar, o que tirava de lição em cada punição ou missão que cumpria. Eu contava sobre as inúmeras coisas que eu aprendia na escola — na época em que eu gostava dessa parte de minha educação. Shane já dizia sobre seus sonhos para o futuro. Para um menino de sete anos, ele sabia muito bem o que queria da vida e estava decidido a seguir os passos de mamãe. Papai pareceu surpreso quando Shane não mencionou seguir os seus passos, afinal, como seu primogênito, ele esperava que meu irmão mais velho se tornasse um grande militar de elite como a si próprio.

Contudo, eu lembro que papai ficou orgulhoso, o oposto do que eu imaginara ser a sua reação. Meu pai salvava e ainda salva vidas; e meu irmão também iria salvar quando terminasse sua faculdade de medicina. Ambos iriam preservar várias existências, cada um do seu jeito. Não sabia dizer quem era mais forte, se era papai, por ver tantos de seus companheiros militares terem suas vidas arrancadas barbaramente por um país inimigo, ou se era mamãe e Shane, que possivelmente iriam ver muitas vidas se perderem depois que fossem depositadas em suas mãos, mesmo que tivessem dado tudo de si para salvar aquela pessoa que inevitavelmente iria se perder um dia.

Foi nesse momento que me dei conta, aos cinco anos de idade, que por mais que eu fosse extremamente nova, ao perguntar o que eu queria ser quando crescesse, meu pai queria saber se eu obtinha uma resposta séria. Percebi que foi por isso que ele rira e balançara a cabeça negativamente, de modo gentil — ou tão gentil quanto um cara muito alto e tatuado poderia parecer — quando eu disse que queria mudar o mundo sendo presidente. Tenho certeza de que você dará uma ótima presidente, Lola. Disse meu pai para mim. Mas vai passar por uma longa batalha, e eu tenho certeza de que você vai estar pronta pra quando esses dias chegarem. Você é brava, igualzinha ao seu pai. Ele afirmou, tirando do pescoço uma corrente de espessura considerável, com pequenas placas de aço, dos tempos em que meu pai entrara para a equipe de elite de atiradores e para as forças armadas americanas. “L. Linsenbröder. 15.01.1975; Forças Armadas Americanas.”

Ele colocou o cordão em volta de meu pescoço, como se guardasse várias expectativas para mim. Tinha certeza de que estava me enxergando como uma atiradora de elite e uma versão miniatura de uma bazuca apoiada no ombro.

Até hoje eu mantinha o colar com as duas placas com os mesmos dizeres. E eu me perguntava mais uma vez, antes de por a cabeça no travesseiro, pensando em mais um dia de aula de amanhã: se ele, meu pai, podia lutar contra milhares pelo seu país sem reclamar um momento sequer da função que lhe foi incumbida, por que eu não poderia encarar mais um ano de Ensino Médio?

Ele esperava que eu tivesse a fibra que ele tinha. E eu tinha certeza de que herdara toda essa resistência dele. Eu ia usufruir dela sem economizar nada.

— Não! — exclamei para Shane, decidida a não sair daquele carro. Era o segundo dia de aula, e eu já não apresentava mais tanta determinação quanto o fim da noite de ontem.

— Vai logo, Lola. — Meu irmão insistia, ajeitando os óculos escuros no rosto. Sua testa estava marcada por uma carranca de impaciência. Ambos estávamos com a face de quem não havia dormido bem, e ele estava marcado pelas olheiras aos quais ele escondia com o par de óculos. Os meus já tinham olheiras naturais, porém a face de mau humor, a maquiagem escassa e os cabelos pingando por não ter tido tempo de secá-los denunciaram o fato de que havia me atrasado, e mesmo assim não havia recuperado o tempo de sono perdido.

— Eu nem ao menos queria levantar da cama hoje. — protestei, gemendo de descontentamento enquanto pressionava o rosto contra o painel do automóvel. — Reclame com a mamãe, pois ela que me obrigou a vir.

Shane passou a mão pelo rosto, deixando os óculos escuros tortos, porém o sono e a irritação eram tantas que ele nem ao menos percebeu e começou a me dirigir uma verdadeira reprimenda, coisa que ele quase não fazia, a não ser que estivesse realmente zangado.

— Eu não tô brincando. Eu preciso chegar à universidade e pegar o local do meu estágio, e se eu me atrasar, a culpa vai ser completamente sua, ouviu?

Geralmente, eu não me rendia a nenhum tipo de ordem do tipo, porém a voz de Shane fora tão caustica que eu acabei ficando magoada, e quando eu fico magoada com alguém eu prefiro não habitar o mesmo ambiente que o dito cujo. Nesse momento, a ideia de ficar no carro com meu irmão era quase intragável.

— Tchau. — reclamei com azedume e deslizei para fora do carro, batendo a porta do mesmo antes de marchar em direção do instituto. Não fiz questão nem de virar para ver Shane partir quando o mesmo buzinou como despedida, já que esse lance de “morde e assopra” nunca foi uma coisa para qual eu tive vocação. Retirei desajeitadamente o papel amarelo com os meus horários de dentro da mochila, apoiando-a sobre um joelho enquanto segurava-a em uma das alças.

O primeiro período, pensei, semicerrando enquanto procurava pelo dia de terça-feira. Não era tão complexo assim de se achar, porém era de manhã. Eu não sou do tipo que gosta de pensar enquanto está acabando de acordar, sem contar que eu ainda estava chateada; e esse tipo de emoção ruim não me deixa pensar exatamente naquilo que estou vendo ou fazendo. Demorei um minuto inteiro para me certificar de que estava interpretando corretamente o horário. Quando constatei mais duas vezes de que não havia visto errado, permiti-me dar um breve sorrisinho.

Aula de artes. O professor que aplicava essa aula era um dos docentes mais legais e autênticos que conheci. Sr. Schultz. Ou Miles Schultz. Ou simplesmente, Miles.

Naquele momento, eu estava tão aérea que acabei esquecendo-me de procurar qualquer um dos meus amigos e ver qual deles iria fazer companhia para mim durante essa aula. Não me lembrava de quem, mas sabia que pelo menos um deles iria estar comigo.

A distribuição dos armários foi feitas no dia anterior, e cada lista de horários preparadas para cada aluno vinha com o número do armário que pertencia a cada um. O meu era o número 79. Eu deixaria uma parte do material que fazia peso demais em minha mochila ali dentro, antes de prosseguir para a sala de artes visuais, que não era assim tão longe do meu armário. Depois de acomodar os livros de química, álgebra e história, bati a porta de metal com tudo e comecei a minha nova marcha até a sala do professor.

Nem Miles havia chegado ao local ainda, e isso me deixou um pouco frustrada. A melhor aula ainda demoraria minutos para começar.

Tirei o celular do bolso de minha jaqueta e examinei a tela para constatar o horário, tentando reprimir um bufo de descontentamento com o relógio. Ainda faltavam dez minutos para que o sinal da primeira aula batesse. Comecei a balançar os joelhos, subindo e descendo o calcanhar em relação ao piso, repetidas vezes numa velocidade grande o suficiente para deixar qualquer um irritado. Era um sinal explícito de impaciência, junto do ato de morder a parte interna das bochechas enquanto olhava para os lados e viajava mentalmente para um mundo paralelo mais legal.

Dois minutos antes de o sinal bater, todos aqueles alunos que faziam parte da aula começaram a adentrar o recinto (inclusive a nojenta da babuína oxigenada, vulgo Leighton), o que me fez parar por um instante de mover meus joelhos irritantemente. Esperava que alguém do meu círculo de amigos adentrasse por aquela porta, porém a última pessoa que deu indícios e o ar da graça ao entrar na sala de aula fora uma garota com traços de uma menininha sino-americana, apesar de aparentar ter a exata faixa etária de dezessete anos.

Ela era possuidora de um porte magro e meigo, e utilizava um par de óculos que obtinha, evidentemente, muitos graus. Não era o tipo de óculos de fundo de garrafa, entrementes dava para ver que ela não conseguiria enxergar sem o mesmo pelo modo como não poderia deixar o mesmo escorregar pela ponte do nariz. Com certeza era nova. Ela ocupou a carteira vaga que estava atrás de mim, e logo quando a mesma sentou-se, o sinal bateu. Chateada, baixei a face e pressionei-a contra o tampo da mesa, reprimindo um gemido novo de desapontamento. Minha franja estava quase se grudando à minha testa por ainda estar pingando água. Quando baixei a cabeça, completamente frustrada com a minha falta de sorte, estava quase determinada a dormir durante a aula de artes visuais, quando a carteira que se encontrava vaga na minha frente arrastou-se bruscamente, parecendo que o causador do som fizera isso propositalmente.

— E aí, anã? — cumprimentou-me Martin.

Instantaneamente ergui a cabeça e fitei o garoto, porém tentei não aparentar alívio, pois não queria aparentar estar tão desesperada por companhia. Apenas lhe dirigi um sorrisinho contido, já que era o máximo de brincadeira que eu poderia fazer num dia tão ruim como aquele.

— E aí? — respondi-o, contendo um suspiro longo.

— Ih. — Martin ergueu as sobrancelhas, soltando um bufo logo em seguida. — Alguém aqui está com raiva de alguma coisa.

— Não estou não.

— Está sim. — insistiu irritantemente o gêmeo — Você está dando frases curtas e diretas demais, e você só faz isso quando está chateada ou brava com alguma coisa.

Conforme ele falava, eu deslizava a mão pelo rosto com a finalidade de arranjar ao menos um pouco e escasso resquício de paciência, bem no fundo em que eu poderia arranjar numa situação desta. Eu estava neutra até ele chegar e começar a indagar que eu estava com raiva.

— Eu vou ficar realmente zangada se você continuar falando que eu estou brava. — retruquei. — Isso sim que me irrita. Irrita muito.

Meu amigo não pareceu se abalar com a minha sentença ameaçadora, então ele apenas voltou a sorrir com aquele seu bom humor que parecia inquebrável, virando-se para frente enquanto ainda se dirigia a mim, com um tom de voz feliz demais para uma manhã de terça-feira:

— Relaxa. Vamos todos achar uma atividade que melhore um pouco o seu ânimo.

Resolvi não rebater mais seus argumentos, ou eu ia acabar ainda mais estressada. Revirei os meus olhos e tombei novamente a cabeça contra a madeira da mesa, soltando um longo suspiro enquanto murmurava, com a carteira abafando o som da minha frase:

— Eu odeio a minha vida.

Alguns segundos depois, o professor adentrou a sala, com suas roupas básicas, barba por fazer e nada além de um copo de cappuccino comprado na Starbucks em mãos; imagem captada durante o breve segundo em que eu mantive o rosto erguido. Miles é um quarentão bem conservado, com um corpo bonito e olhos azuis que fazem qualquer garota soltar suspiros; ou apenas aquelas mais irreais e iludidas. Eu já sou realista o suficiente para saber que o cara é vinte e poucos anos mais velho que eu, e que nada na vida ia ocorrer entre mim e um cara dessa idade.

— Bom dia, classe! — ele deseja cordialmente para todos os alunos, e como estava desprovida de qualquer visão que fosse pelo fato de estar de cabeça baixa; só podia sugerir que, pela sua entonação de voz, Miles estava sorrindo. Todos os respondem com um tom de monotonia. Esse tipo de humor não parece exatamente afetar o docente, e ele mantém a sua voz com a mesma energia com que ele entrou na sala. — Bem-vindos veteranos! E boa sorte aos novos alunos. — Isso conseguiu arrancar alguns risos discretos entre os alunos, principalmente pelo modo teatral como Miles conseguia transmitir as coisas, tanto que sua voz se tornou mais soturna quando ele acrescentou: — Eu estou falando sério, contem com a sorte ou vão enlouquecer aqui dentro.

— Eu adoro esse cara! — murmurou Martin para mim, por cima do ombro. Parecia genuinamente entusiasmado.

— Ah é. — respondi-o, ainda com a face pressionada contra a mesa. Não soei nem um pouco convincente. — Também adoro ele.

— Meu nome é Miles, e eu sou o professor de artes visuais de vocês esse ano. — Prosseguiu o docente, sua voz parecendo um pouco mais distante, talvez no fundo da sala, ao meu lado direito no recinto. — O último ano. Ah, o tão sonhado último ano. — Ele dramatizou a palavra de tal modo que poderia fazer qualquer um sentir um frio na espinha por pensar no futuro como algo tão próximo, quase como o desfecho das provas e listas de chamadas para as universidades saíssem no dia seguinte. Eu estava acostumada a ouvir esse discurso. Todo o dia, desde que havia entrado na St. James. Papai, mamãe, Shane... Até mesmo Preston parecia estar querendo aplicar-me sermões, e dizendo que espera, no mínimo, que eu tenha uma enorme empresa de sucesso. A pressão se iguala a um tamanho tão colossal que eu já nem sentia mais a força que essa exercia acima de minhas costas, como se meu corpo estivesse familiarizado a esse tipo de rupturas.

— O último ano... — Miles devaneou por um longo segundo. — É, o último ano. É só disso que eu queria lembrar vocês. Bora pra aula.

Mais risos, e mais pessoas sendo conquistadas pela índole do professor de artes visuais.

— Então, que tal começarmos com alguns conceitos básicos? Uma revisão simples só para começarmos o ano bem. — O docente sugeriu, e sua voz estava bem mais próxima, e eu poderia supor que ele estava no meio da sala, entre a minha fileira a da minha direita. — Que tal uma perguntinha básica? Martin quer ser o primeiro a se aquecer?

Eu podia sentir a índole do garoto à minha frente, bem do tipo “vou fazer uma piadinha agora”; que estava muito bem escondida em seu risinho discreto.

— Pra você? Não. — Meu amigo respondeu o que arrancou uma risadinha abafada de mim e curtas gargalhadas de outros. A garota que se acomodara na carteira de trás foi a que mais manifestou divertimento.

— Muito engraçadinho. — Miles parecia risonho com a resposta, e para evitar mais constrangimentos, a pergunta agora parecia livre para quem soubesse a resposta. — Ok, alguém então pode me dizem, resumidamente, do que se tratam as artes visuais?

Ninguém pareceu querer se manifestar para responder, ou por vergonha, ou por não saberem a resposta. Não que eu fosse a expert, porém uma prova de recuperação de artes visuais do primeiro ano, ao qual eu tive de estudar para não fechar o período letivo com uma nota ruim fez com que eu nunca mais esquecesse esse dado.

— A arte geralmente é entendida como a atividade humana ligada a manifestações de ordem estética ou comunicativa, realizada a partir da percepção, das emoções e das ideias, com o objetivo de estimular essas instâncias da consciência e dando um significado único e diferente para cada obra. — falei quase como uma enciclopédia ambulante no que a matéria se resumia, sendo abafada pela madeira do móvel ao qual eu insistia em ser a única coisa dentro de meu campo de visão. Obrigada, obrigada! Primeiramente eu gostaria de agradecer à Academia e também ao Wikipédia.

— Muito bem... Ern... — Começou Miles, com a congratulação, porém sem saber de onde vinha. Ou fingia não saber, pois ele estava praticamente ao meu lado, e poderia facilmente detectar a fonte da voz. — Quem foi que disse isso?

Ergui a face, deixando a bochecha pressionada contra o antebraço pousado na mesa, usando a outra mão para acenar para Miles.

— Eu aqui, ó.

— Oh, Lola! — O aplicador de artes fingiu surpresa, apesar de não estar nada surpreendido com a minha atitude. — Você está aqui. Que bom vê-la novamente esse ano.

Ergui um pouco mais o rosto, dessa vez levando a mão à testa, fingindo bater continência ao senhor professor, que parecia estar realmente feliz pelo fato de eu estar em sua turma de artes.

— Eu sei. — O comentário rendeu em alguns risos nervosos e um revirar de olhos da babuína loira, vulgo O’Donnell. — É bom vê-lo também, Miles.

— Como começou o ano? — O docente deu aquele prosseguimento de diálogo curto e casual com os alunos antigos, como se fingisse que não está no meio de uma aula. Coisa bem normal.

— Ah, uma beleza. Não ateei fogo no cabelo de ninguém nos últimos dois dias. — falei como se estivesse muito feliz com o meu esforço. É claro que havia resquícios de ironia e teatro na minha sentença e na minha atitude.

— Estou orgulhoso de você. — assinalou, antes de voltar com o seu tour pela sala. — Continuando, alguns de vocês podem de dizer quais os tópicos que estão ligados a essa área de artes?

Um silêncio se estendeu pela sala, até que uma alma corajosa se manifestou. Não era uma voz exatamente familiar, por isso a curiosidade se manifestou quando ela pronunciou parcialmente a resposta da pergunta do professor. O som soara um pouco agudo, muito embora fosse carregada de inteligência e enorme maturidade:

— A parte do design, da literatura e as artes plásticas fazem parte da área de artes. — disse a garota de óculos da carteira de trás, que quando eu virei-me para observar, estava ajeitando os óculos na ponte do nariz. Ela tinha trejeitos bem discretos. Miles estancou o passo, apontou para a garota com o dedo médio e o indicador, imitando a um rifle enquanto fingia atirar na direção da mesma (porque é supernormal um professor fazer isso também, não é?).

— Bingo! Muito bem, jovem. — exclamou o docente. — Você parece ser nova. Qual é seu nome, novata?

— Jessaminne. — A garota respondeu contidamente, parecendo esconder um sorrisinho, talvez com o jeito cômico do professor. Eu não sei, mas muito provavelmente era isso.

— Seja bem-vinda, Jess. — Miles retornou com a sua caminhada, estalando os dedos enquanto pedia prosseguimento às respostas. — Vamos, alguém mais? Alguém mais?

— Temos artes cênicas, paisagismo e dança. — Martin ergueu a mão enquanto assinalava os pontos, mais certo sobre a área de artes cênicas e dança, e meio oscilante perante sua segunda sugestão.

— Certo. — Miles fazia uma cara de pensativo, apontando com o dedo indicador em seu queixo. — Alguma coisa a mais para acrescentar?

Silêncio na sala. Parecia que ninguém mais demonstrava algum tipo de interesse em dizer algo. Os CDFs, aos quais pareciam não saber nada exatamente sobre a prática das artes, deviam ter sabido diferenciar os componentes curriculares “artes” e “história da arte”, pois agora anotavam coisas, surpresos por não saberem de algo. Os mais populares e os palhaços desinteressados mexiam nos celulares por debaixo dos livros e outros equilibravam o lápis no nariz, como focas amestradas.

— Pelo amor de Deus. — murmurei, passando a mão pela face antes de erguê-la no ar, enquanto dizia com mais impaciência do que queria aparentar, a sonoridade uma oitava mais alta do que o murmúrio. — Cinema, música e arquitetura.

— Touché, para vocês três. — Miles parou novamente na frente da sala, apontando novamente com o seu copo de cappuccino para mim, Martin e Jessaminne. Ele deixou o objeto descansando na mesa e juntou as duas mãos. Era o que ele fazia quando queria ser mais direto na aplicação de alguma atividade. — A questão é que eu quero que vocês vejam bem as áreas em que a arte se divide, porque esse ano, vocês vão fazer um projeto em trio. Vocês vão dedicar boa parte de suas aulas nisso, então... Se dividam! E nada de trabalhos individuais ou em duplas. Eu quero trios.

É só isso? Ele manda nos juntarmos pra um projeto que desenvolveremos pelo ano? De artes? Vai ser moleza.

— Acho que eu já tenho uma parceira. — disse Martin para mim, com um sorriso divertido na face enquanto todos os alunos arrastavam as carteiras e começavam a fazer seus grupos. Ergui a mão para que ele me devolvesse o cumprimento e ri, olhando para todos os garotos idiotas que pareciam disparar para um único lugar. O ponto de magnetismo tinha apenas um nome: Leighton.

Gesticulei na direção os babacas e bajuladores que corriam atrás da loira indiferente que lixava suas unhas com cara de tédio, fazendo toda aquela ceninha e posando de indiferente.

— Isso aí é ridículo. Um bando de nerds e nenhum deles sabe que o valor de trio é três e não trinta. — Bufei. — Não sabem contar?

Martin pareceu pensar por um instante, apontou para ele e em seguida para mim. Ela a mesma cara que ele fazia nas aulas de pré-cálculo. Logo disse o que estava pensando:

— Nós também não sabemos. — Ele faz uma careta que eu não consigo interpretar. Ele revira um pouco os olhos e aponta novamente para nós dois. — Somos uma dupla, Lola. O professor quer trio por trabalho.

Arqueei as sobrancelhas e arquejei. Foi como se eu tivesse levado uma bofetada da notícia que meu amigo acabara de me dar. Meus olhos correram pela sala, passando pelo caos que o professor tentava conter na hora de divisão de grupos de Leighton, babacas e CDFs e parando numa garota perplexa com a atitude dos meninos da classe.

— Se liga aí, Martin. — Chamei-o enquanto ele parecia buscar alguma coisa, igual a mim. Gesticulei em direção de Jessaminne e murmurei para ele, tentando ser o mais discreta possível. Não sabia qual era a da garota, e qualquer espécie nova que entrasse na St. James poderia ser suspeita. — Pisa onde eu piso, falou?

— Ah, tá. — respondeu meu amigo, andando até a menina que ajeitava os óculos, analisando a cena, como se ainda estivesse digerindo a ideia de tantos meninos babarem ovo para uma menina tão sem sal. Ou pelo menos, era isso que eu pensava.

Quando chegamos há um metro da garota, freei o passo e acotovelei Martin, fazendo-o tomar a frente.

— Vai, você fala com ela.

— Por que eu? — ele questiona, olhando-me como se eu tivesse falado em outra língua, me acotovelando de volta.

— Porque eu tô mandando. — Argumento muito convincente, porém acotovelei-o mais uma vez, só para garantir. — Vai. Deixa de ser frouxo, homem.

— Tá bom. — Ele reclama, porém dá um passo a frente e solta um pigarro para chamar a atenção da menina nova. — Ern... Jessaminne?

A expressão da menina mesclou-se de uma expressão pensativa para uma mais casual com aquele resquício de surpresa. Ela é nova, não me surpreende o fato de que ela deve estar um pouco chocada por alguém chama-la. Lembro-me até hoje do meu primeiro dia de aula. Uma escola de elite, vários veteranos, e eu nesse meio, sendo tão pequena e custando a conquistar o meu espaço. Até hoje eu passo por isso, mas não quer dizer que eu não possa me unir a esses deslocados.

— Hum? — Jessaminne arqueia as sobrancelhas e se vira até nós. Antes eu não percebi, porém ela estava com caderno de capa dura pressionado contra o peito, protegido por seus dois braços.

— Eu sou Martin. — ele estende a mão para a garota em forma de saudação, a qual ela aceita de muito bom grado. — Ela é a Lola.

— Oi! — Acenei, um pouco atrás do garoto, sorrindo para ela e observando o tempo todo. Até então não achei nenhum resquício de maldade ou desprezo por parte da garota. Isso era um sinal verde para prosseguir, por mais relutante que eu estivesse. — Sabe, é que... Nós somos em dois, e precisamos de mais uma pessoa pra fechar o trio.

— Jura? Aprendeu a contar, é Lola? — brincou Martin, ao qual lhe rendeu uma nova cotovelada em suas costelas, de minha parte, dessa vez mais forte e para que ele realmente sentisse dor. — Ouch!

Os lábios de Jessaminne franziram-se nos cantos, em função da mesma reprimir um possível riso.

— É. Eu aprendi a contar! — Continuei ainda me dirigindo para a garota nova, tentando fazer um pouco de graça. — Quando eu finalmente descobri que para formar um trio, precisávamos de três pessoas e não duas, eu decidi vir perguntar se você queria saber se você queria fazer parte do nosso grupo para o trabalho.

— E aí? Aceita? — perguntou Martin.

Ela pareceu parar para pensar por alguns segundos, porém nem demorou muito até que um sorriso genuíno brotou dos lábios dela antes da mesma responder:

— Vai ser legal!

Então estava formado. Concordamos em juntar as nossas carteiras e começar a conversar, mais para conhecer a garota do que sobre o projeto que iríamos fazer.

— Então... — Começou a garota, ajeitando sua mochila nas costas da carteira e voltando a apoiar ambas as mãos no caderno, que descansava acima de sua carteira — Podem me chamar de Jess, eu prefiro.

— Ok, então. — Martin tomou a iniciativa, sorrindo para a menina enquanto mostrava mais interesse em diálogo do que eu. Querendo ou não, o garoto sempre foi mais sociável do que o restante do nosso círculo de amizade. Acho que a única coisa que o impedia de fazer mais amizades era o fato de que ele era, primeiramente, nosso amigo. Fora isso ele é engraçado, é inteligente, um ótimo jogador de beisebol e extremamente talentoso. E ótimo em prosseguir assunto. — Você é nova aqui, então de onde você veio?

— Nossa, do jeito que você falou, parece que a menina foi transferida de outro planeta e não de outra escola, Martin. — Comentei, arqueando uma sobrancelha e rindo da possível gafe que ele cometera. Isso arrancou o riso dos dois. Era bom ver que eu não perdia os meus ares de comediante, independente de meu humor soturno ou não.

— Eu sou transferida de uma escola de New York. — Jess ajeitou novamente os óculos na ponte do nariz. — Eu era do Instituto St. M...

A garota foi cortada no meio da frase com uma batida brusca na porta. Miles atendeu a porta e quem se encontrava atrás dela era um diretor muito, mais muito zangado. Sr. O’Mailley mantinha uma carranca que parecia de pedra por estar tão rígida.

— Bom dia, estudantes. — Ele se pronunciou, metade de seu corpo para fora do recinto, com a voz extremamente direta e autoritária. — Eu gostaria apenas de dar um recado, já que achar um responsável pela falta da manhã seria praticamente impossível. Gostaria de pedir que parassem de pregar peças de tamanha vergonha e infantilidade com os seus colegas de colégio.

Ele adentrou completamente a sala de aula, expondo um punhado de preservativos cheios de ar e pendurados por vários cordões de barbante nas pontas.

— Pendurar isso no armário alheio não é nem um pouco engraçado! Estão me entendendo?! — A visão pareceu arrancar várias gargalhadas da sala, as quais não seriam refreadas apenas pela autoridade do diretor. A imbecilidade de alguns, às vezes, é incontrolável até na presença dos níveis mais altos da hierarquia escolar. — Isso não tem graça, alunos!

Com a voz uma oitava mais aula do diretor (Hitler), a sala embarcou gradativamente no silêncio. A face de Sr. O’Mailley não se suavizou.

— Vocês não tem vergonha de rirem na cara do seu diretor? — questionou o próprio, com verdadeira indignação em suas palavras. — Onde, por um acaso, foi parar o respeito de vocês? Onde ficou a minha voz de autoridade?!

A sentença que se seguiu me deixou completamente surpresa, principalmente vindo de Jess.

— No bidê do vestiário masculino talvez?

Isso sim arrancou mais risos dos que ainda tinham um pouco de cérebro para entender as piadas inteligentes e irônicas, ainda mais do que as camisinhas cheias de ar que estavam pendendo na mão do diretor, que lançara um olhar venenoso em direção de uma Jess, que parecia não ter tido a intenção de ser ouvida por tantos. Ela tampara a boca com as mãos, talvez arrependida de ter ousado tanto. Martin e eu rimos da espontaneidade da novata. Eu havia adorado a brincadeira.

— Meu Deus, garota! — exclamei em aprovação, enquanto o diretor saía da sala e a divisão de grupos prosseguia como se nada tivesse ocorrido e ninguém houvesse levado uma chamada do “Hitler”. — Você é das minhas.


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Notas finais do capítulo

Reviews? *-*



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