A Crónica de Vitória escrita por OlgAusten


Capítulo 1
Cap.1: A Alemanha, o pretendente e o guarda-roupa




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Inglaterra, 1943.
— Pra mim, tanto faz! — ela gritava, debruçando-se à janela do palácio.
Costumava passar horas ali, prostrada em face da paisagem intacta além das cortinas.
Vitória de Bragança, ou simplesmente Vitória, como gostava de ser chamada, gastava longas manhãs à brisa desde que o tamanho de sua família oscilara. Perdera o pai aos dez anos de idade, ganhara outro no mesmo dia em que o primeiro sinal de fogo fora mandado à Inglaterra.
A II Guerra Mundial começara, mas, dentro de si, já se ia pela casa dos milhares a quantidade de batalhas perdidas...
— Vi, você não é mais criança — D. Augusta dizia às suas costas, fazendo uma menção em lhe afagar os cabelos escuros que ali ondulavam. — Vai conosco, sim.
— Mãe, eu não sou mais criança — fez-se entender. — Já tenho idade o bastante pra ir aonde eu bem quiser.
Tinha idade, mas não amadurecimento — pensava a monarca.
“Onde já se viu querer voltar a Portugal?” — “Onde já se viu, querer voltar a um lar em que jamais esteve?”
Portugal não era o seu lar, por mais que esse fosse seu desejo e por mais que o nome da Casa de Bragança dissesse o contrário.
“Posso ir aonde eu quiser” — sua voz contundente repetia.
— Como se realmente pudesse, querida!
— Como se realmente deixassem, não? — rebateu com igual ironia. — Lá temos o Estado. Aqui, tenho minha própria mãe.
D. Augusta poderia ter se calado, mas o sangue germânico que possuía jamais se omitiria... E, encerrando a conversa, falou;
— Por anos estive aqui — disse. — Vejo o seu pai em cada canto desta casa. Tive que lutar muito pelo respeito com que hoje nos tratam. Talvez a sorte me tenha sido dada. Amo alguém novamente, minha filha. — E, antes que as lágrimas lhe fluíssem olhos abaixo, concluiu: — Enfim, com a minha família, encontraremos a felicidade. Seja mais compreensiva, Vi.
Era tão difícil assim de entender?
Não, Vitória entendia perfeitamente. Via uma boa figura no marido de sua mãe, mas sabia que a Alemanha não era um lugar para ela. Portugal sim o era, mas não como naquele momento era visto.
O chamado “ditador” do Estado Novo, António Salazar, pôs-se fora de qualquer disputa ou apoio. Manteve o país e sua economia firme, mas o fato de a nação não tomar “partido das coisas” só fazia o ódio fluir por entre as veias da jovem princesa- -
- - Aliás, nem assim gostava de ser chamada.
— Monarcas não vão à guerra! — bradava. — Se houvesse uma eu iria na linha de frente! —dizia quando menina ao ouvir relatos do próprio pai sobre a primeira das grandes guerras. — Quando reis forem às batalhas serei a primeira a me nomear rainha!
Se o título de nobreza dos Bragança, que morrera em seu pai, não fazia mais a menor diferença num momento como aquele, de que adiantava ser chamada de princesa? Que deixasse isso pr’aqueles britânicos montados em seus respectivos tronos, satisfeitos com o chá das cinco e nada mais!
— Deixe de sonhar, Vitória! — recriminavam-lhe. — Fantasia não sai dos livros que lê, garota. A cada dia se parece mais e mais com Manuel.
Ah, o seu pai! Lembrava-se dele. Lembrava-se muito bem dele. Gostava de mirar a si mesma no espelho e procurar pelos mínimos detalhes que recordava da aparência de D. Manuel. De sua mãe herdara apenas a tez pálida, germânica, mas do Rei os olhos castanhos não lhe escapavam e nem tão pouco o nariz reto, típico dos Bragança, emoldurado pelas madeixas escuras, estas que (quando soltas) já iam a meio caminho das costas.
— Não estou falando de fantasia — era sua resposta. — Estou falando em trazer um pouco da honra perdida. — Acolher refugiados? — Sim, por que não? Se conseguíssemos mudar os valores dessas cabeças o esforço já valeria a pena.


— O que há, mãe? — perguntou ao descer a escadaria rumo à sala de estar. — De onde saiu essa mobília?
— Gostou? — a mulher jazia parada em meio aos móveis novos. — Parecem sofisticados, não parecem?
— A mobília antiga também parecia — Vitória lhe disse. — Aliás, parecia mais nova que essa velharia — seguiu mirando os móveis já prontos pra seguirem até o porto.
— Não quero levar nada daqui — sua mãe falou. — Não que eu não goste, mas é que - -
— Lembra-se do papai, eu sei.
Seus olhos castanhos encontraram os claros de Augusta que lhe sorriam em resposta. — Vamos ser felizes, querida. — Os braços da mulher germânica se abriam à espera de um abraço.
— Eu espero, mãe — sua filha respondeu indo ao seu encontro.
Enquanto aninhava-se no único lugar que ainda lhe parecia seguro estar, Vitória deixou-se perder na visão do enorme armário parado à frente da saleta.
— Mãe, o que é aquilo? — perguntou cessando com o abraço. — De onde saiu esse guarda-roupa?
— Robert! Ele comprou de um antiquário... Disse que veio da coleção de um renomado professor, num vilarejo do interior e - -
— Que tipo de intelectual se desfaz de sua coleção? — a jovem a interrompeu. — Um tipo morto, eu presumo. Alguém se livrou por ele, não?
— Assim acredito — sua mãe assentiu. — Enfim, os carros partem às doze horas. Esteja pronta, Vi.
Mas ela nunca estaria. — A quem pertencerá? — a garota voltara ao assunto de repente.
— O quê, Vitória?
— O guarda-roupa, mãe — disse, mirando os detalhes em mogno. — É belíssimo. A quem pertencerá?
— Se você quiser... — Augusta pensava poder comprar a própria paz oferecendo aquele móvel à filha. — É seu.
— Ainda precisa ser devidamente embalado e - -
Depois isso se resolveria. O café da manhã já havia sido posto, e para D. Augusta as refeições eram rituais sacros da família.
— Lá dentro tenho uma surpresa bem maior pra você.
Não era mais estranho ter a presença do Conde Robert Douglas sorridente à cabeceira. Passaram-se quase quatro anos e Vitória nem mais se importava. Ele já era oficialmente da família. A verdadeira “grande surpresa” que sua mãe havia prometido estava ao seu lado, fixando seus imensos olhos verdes em qualquer movimento feito por ela.
— Morton! — D. Augusta exclamara ao lado de sua filha despertando a atenção do homem loiro. — Quando poderá juntar-se a nós na Alemanha?
— Ele virá conosco?! — a mais jovem presente à mesa deixou-se dizer — Digo - - Porquê?
Morton Douglas deixou-se sorrir, estreitando os olhos claros ao encontro dela. Sobrinho de Robert, ele gostava da idéia de viver próximo a ela, admirava a jovialidade da garota e nesses momentos gostava de esquecer os dez anos que lhes separavam em idade. Era um homem vivido e, sinceramente, havia tanto do mundo que gostaria de mostrá-la...
Apesar da mão já lhe ter sido considerada, Vitória ainda relutava a um noivado nunca confirmado.
Morton fingia não saber, mas Vitória de Bragança jamais lhe amaria. Nele, ela pensava ser impossível se encontrar um único filete de magia, fantasia, coragem ou senso político – qualidades pelas quais a garota tanto prezava.
Sim, era belo, ostentando uma vasta cabeleira dourada e, a combinar com o rosado de suas bochechas, uma barba igualmente loura dava-lhe um ar sério e compromissado. E, claro, havia algo em si que jamais passaria batido: seus olhos cintilantes, verdes, fariam derreter o coração de qualquer moça solteira...
Porém, por mais que aqueles orbes esverdeados lhe lembrassem o mar e toda a aventura que dele se podia esperar, à Vitória eles não passavam de qualquer coisa. Além dos olhos de seu pretendente não havia nada... Nada que lhe atraísse. A ela, ele era apenas um homem nórdico, mais velho, vindo de uma linhagem real esquecida, barbudo e louco por descendentes masculinos em pleno século XX.
— Firmaremos nosso compromisso lá, minha princesa - -
Como era duro ser chamada por aquele título!
Como era duro ser chamada daquela forma por aquele homem!
— Chame-me de Vitória, por favor, Conde Morton.
— Chame-me de Morton, por favor, querida Vitória.
Tamanha cordialidade não coincidia com o tempo em que viviam. O cavalheirismo exacerbado do conde só diminuía a possibilidade dela vir a gostar dele. Tudo aquilo lhe parecia tão falso!
— Se não se importam... — ela disse se levantando — quero descansar um pouco antes de partirmos.
Ao seu lado, Morton a cumprimentou, e apesar de ter-lhe dado licença não gostou nada de ser ignorado à mesa. Não gostava nada do modo frio como ela o tratava.
Era impossível não amá-la; uma garota viva, radiante! Por que então era tão difícil sentir pelo menos algum afeto por ele?


Alguns empregados já desciam as ultimas bagagens quando Vitória decidira despedir-se do cômodo que mais lhe agradava naquele palácio: o escritório do seu pai. Vi podia jurar que o cheiro do charuto ainda pairava por ali – entre as centenas de livros, em meio à tapeçaria estrangeira.
Deixar Twickenham não seria fácil, principalmente se o lugar que lhe esperava chamava-se Alemanha. Esse era o último lugar do mundo em que gostaria de estar em plena II Guerra... Porém, em meio ao saudosismo em que a jovem monarca havia se mergulhado, uma outra presença se fez discreta naquela saleta.
— Vitória? — Uma voz a interrompera.
— Morton? — O descontentamento se fez claro em sua voz. — Ainda está por aqui?!
— Sua mãe pediu para que alguém viesse chamá-la. — Ele sorriu displicente. — Então eu me candidatei a essa triste despedida, não?
A jovem princesa assentiu com a cabeça agradecendo a gentileza do Conde. No entanto, já se imaginando fora do escritório, ao passar por ele a caminho da porta sentiu-se puxada pelo braço. — Ahn?! Pois não, Morton? — perguntou sem mirá-lo.
— Sentirei sua falta.
— Também sentirei — Vitória mentia. — Espero que não demore a nos visitar - -
A jovem portuguesa planejava continuar com aquele jogo falso, fazendo-o crer que realmente sentiria sua falta, mas o loiro de pronto puxou-a para si, prendendo sua atenção.
— Eu a amo — ele disse encarando-a duramente. — Espero que entenda.
O punho fechado em seu braço não a impedia de partir. Não doía, mas soltar-se bruscamente de seu futuro noivo não lhe parecia a melhor coisa a se fazer... Que ele a soltasse primeiro, então!
— Eu tenho que ir. Espero que entenda, Conde Morton. — Vi seguiu, focando-se na mão que ainda não havia lhe soltado. — Por favor, meu querido.
— Vitória... — ele lhe falou, aproximando o rosto do dela.
Ao sentir o hálito quente do homem aquecer-lhe a face, Vitória moveu o rosto quase que instantaneamente em direção contrária. Até o presente momento não tinha se dado conta, mas Conde Morton era capaz de lhe despertar um profundo asco.
— Preciso - -hm! — ela tentou lhe dizer, mas a mão livre do Conde atraiu seu rosto de volta, roubando-lhe um beijo difícil.
A barba espessa lhe arranhava a pele do rosto, os lábios finos do homem forçados contra os seus de uma maneira tão desleal que, por mais que dissesse amá-la, aquela atitude não se parecia em nada com o modo cordial e gentil com que ele sempre se portava à frente de D. Augusta.
Antes que os lábios crispados de Vitória fossem partidos pelos de Morton, ela conseguiu se soltar, escapando de seu pretendente e, só depois de passados alguns segundos, ele se dera conta da tamanha besteira que havia feito.
Quando a garota deu por si, já estava na sala de estar, com o rosto lavado em lágrimas, desnorteada em meio à mobília empacotada, perdida na correria dos últimos momentos da mudança. — Vitória, seja rápida! — a voz de D. Augusta lhe chamava.
Sua mãe era a última pessoa com quem gostaria de falar naquele momento. Principalmente estando aos prantos, correndo da vergonha que certamente lhe abateria caso se deparasse com um Morton arrependido, saindo do escritório.
Olhou desesperada ao redor e só pôde focar-se no que mais lhe enchia a vista. — “A relíquia do tal professor!”
A voz de sua mãe tornava-se cada vez mais próxima, vinda dos jardins e só havia um meio de sumir. — Raios de lágrimas que não cessam! — esbravejou consigo mesma, pousando a mão na maçaneta do móvel. Esconder-se ali era o meio mais ridículo que havia de “sumir”. Quando criança, gostava de se esconder em armários e pregar peças nas camareiras distraídas, mas naquele momento fora o destino que lhe pregara uma grande peça.
Sem mais pensar, entrou no guarda-roupa, trancando-se por dentro.
Maldito Morton! — pensou, esfregando os próprios lábios. — Jamais me casarei com ele! — deixou-se dizer, pisando em falso sobre o assoalho de madeira do móvel.
O cubículo era escuro, mas ainda assim mais confortável do que qualquer outro guarda-roupa em que ela já estivera... Não que Vitória já tivesse estado em muitos guarda-roupas, mas é que aquele era- - diferente?
Estranhamente, uma brisa fria surgira dentro do móvel, fazendo os casacos ali pendurados esvoaçarem. O mesmo aconteceu com os cabelos e o vestido da garota que se assustara com tal acontecimento. — Corrente de ar aqui dentro? — perguntou-se antes de acordar para outra coisa: havia um cheiro também. — Terra molhada? — Era o mais agradável de todos os cheiros, invadindo-lhe as narinas, fazendo-lhe sonhar. Um cheiro que jamais sentira. Um cheiro que não pertencia a Twickenham, nem tão pouco à Alemanha, casacos de pele ou a um guarda-roupa velho.
Ah! Se Portugal tivesse um cheiro, Vitória poderia jurar que este seria o de terra molhada.
E, na escuridão, pôs-se a andar em meio à inacabável cortina de casacos, até que - - — O que há com esse guarda-roupa? Não tem fundo? — perguntou-se.
Ah, Vitória!
Quantos passos teria que dar até descobrir que seu desejo de sumir havia, finalmente, sido atendido?
Talvez até o momento em que se deparou com um pinheiro florido – uma floresta, na verdade – sobre o chão que dera lugar a uma grama verdejante. A princesa nem ao menos percebeu o momento em que o grande guarda-roupa havia ficado pra trás, e um lindo bosque primaveril havia-se feito ao seu redor.
♦♦♦Continua♦♦♦


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Notas finais do capítulo

A CRÔNICA DE VITÓRIA é uma fanfic da obra As Crônicas de Nárnia de CS Lewis. A história foi escrita há dois anos pela autora, então ficwriter, Olg'Austen. Essa fanfic passa-se no contexto da Segunda Guerra Mundial, inicía-se antes de A Viagem do Peregrino da Alvorada, passando também pelos acontecimentos do mesmo livro.

Esta fanfic está disponível na íntegra no fórum Need for Fic e está sendo postada atualmente no meu blog conjunto com a escritora Jodivise, onde continuará a ser regularmente. Irei disponibilizar depois deste capítulo 1, o índice de capítulos da história no blog. Para quem quiser continuar a ler, convido a visitar: http://storieswithouttitle.blogspot.pt/2013/12/a-cronica-de-vitoria.html

A quem gostar e seguir a história no blog, não se sintam envergonhados e comentem também!
Espero que gostem e comentem! =)
Olg'Austen



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