Entre sem bater - Para Shana Black Rx escrita por Amigo Secreto


Capítulo 6
Capítulo 06 final – Entre sem bater.




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— O Thiago?

A expressão da Laura não foi bem a que eu esperava, a feição de curiosidade dela se desfez e percebi um leve tom de desdenho. Meu sorriso também se desfez.

— Sim, o Thiago — reafirmei, terminando de colocar a caixa de arquivo na prateleira de cima e descendo da escada móvel.

Trabalhar no arquivo da empresa foi a forma mais rápida que encontrei de contar à Laura sobre o Thiago e eu. Além disso, minha ansiedade causaria um buraco no meu estômago se eu esperasse até a hora do almoço.

Parei diante dela e tentei desvendar aquela nova expressão que ela fazia, parecia um mistro entre preocupação e repugnância. Cruzei os braços no peito e a encarei.

— O que foi?

— Nada... — ela respondeu, esquivando-se do meu olhar ao abaixar para apanhar outra caixa de arquivo.

— Nada, Laurinha? Eu conheço essa sua cara. É a mesma quando você encontra cebolas na marmita. O que tem de errado com o Thiago?

Ela largou a caixa.

— Desculpe-me, Caio. Acho que você deve até estar empolgado, mas...

— Mas...? — bati as mãos ao longo do corpo, começando a ficar impaciente. — Desembucha, pelo amor de Deus!

— Ele é esquisito. Pronto. Falei.

— Como assim?

— Ele usa aquelas roupas cafonas, aquela barba sempre por fazer, aquele cabelo sempre oleoso... Pelo amor de Deus, Caio, você não está desesperado. Eu nem imaginava que o Thiago fosse gay, afinal, achei que fosse uma regra da sociedade homossexual: todos gays serem bonitos, malhados, bem cuidados e charmosos. Eu sempre imaginei o Thiago morando em um bairro pobre, em uma casa inacabada e trabalhando no pesado o dia inteiro para sustentar a mulher e três filhos. Você é bonito, baby, apesar da família ter te rejeitado, eles tem status, o que você viu nesse Thiago?

Eu não consegui responder de imediato aquelas observações tão grotescas da Laurinha. Nem sequer acreditei que aquilo estava saindo mesmo da boca dela.

Fiquei estático por um momento encarando o rosto bem maquiado a minha frente, eu achei que muitas pessoas na vida me decepcionariam, mas não uma garota que sempre se mostrou mente aberta como a Laura.

— V- v- você está jugando uma pessoa pela aparência, Laurinha?

A Laura levantou o dedo como se fosse fazer uma observação, mas seja lá o que fosse ela engoliu de volta, abaixou o dedo, pensou por um instante e só então respondeu.

— Desculpe-me, eu não deveria ter falado o que penso assim.

— Não. Se é o que pensa de verdade, fico feliz que tenha exposto.

— É que foi um choque, Caio. Depois que vi o deslumbrante Guilherme, achei que seu interesse fosse em cara como eles.

— Ele é um hipócrita.

— Ele está arrependido do que fez.

— Como você sabe?

Ela franziu as sobrancelhas.

— Ué? Você não viu a declaração que ele fez para você pedindo desculpas? — Ela falou e já foi tirando o celular do bolso da calça social e desbloqueando-o ao tocar na tela, outro toque e ela acessou o meu Face através da página dela, então me mostrou aquele enorme depoimento escrito pelo Guilherme começando com: “O quanto um cara pode ser babaca?”.

Eu li rápido, o Guilherme pedia desculpas pela criancice que fez com a foto no outro dia, dizendo que estava confuso e que queria apenas chamar minha atenção, porque tudo que ele queria era ser meu amigo e um monte de baboseiras mais.

— Viu? Cheguei a pensar que ele estivesse interessado em você. Parece uma mensagem verdadeira.

— Interessado em mim depois da babaquice que ele aprontou, Laura? Poupe-me.

— Tem gente que faz coisas babacas quando está apaixonada, só para chamar atenção da pessoa que gosta, como ele colocou no depoimento.

Eu revirei os olhos.

— Laura, o Guilherme está apaixonado sim, mas não por mim, pelo Thiago, que é ex dele. E aquilo que ele fez ontem e esse falso-depoimento, não passam de uma forma que ele encontrou de me atingir porque ele sabe que o Thiago e eu começamos algo.

Ver a Laura boquiaberta não teve preço, tanto que não consegui evitar um sorrisinho matreiro que brincou nos meus lábios.

— O que ele tem? Um pinto de ouro?

— Laurinha, meu bem, às vezes você consegue ter um linguajar pior do que pedreiro.

— Só estou tentando entender.

Resolvi por um fim naquela conversa.

— Tá, vamos voltar. Chega de arquivo, já te contei o que queria e sinto por você não estar feliz por mim.

Ela veio atrás de mim.

— Não fique bravo assim. Você sabe que eu te amo, não é?

— Acho que você anda mais apaixonada pela Dafne ultimamente — confessei.

— Larga de ciúmes bestas, Caio. Eu vou te apoiar se é isso que quer. Só que eu tenho direito de achar estranho, ainda mais sobre o que contou sobre a questão do sexo. Eu acompanho seriados gays, assisto filmes gays e até leio revistas sobre vocês, e tudo que resume o relacionamento homossexual é sexo. Eu já acho sexo primordial para um relacionamento hetero, homens heteros já pensam em fazer sexo o tempo todo mesmo sabendo que a mulher não tem a mesma necessidade, imagina um casal composto por dois caras.

Eu cruzei novamente os braços no peito.

— Não sei aonde quer chegar, Laurinha.

— É simples, Caio. Para mim, só existem três motivos plausíveis para o Thiago não querer fazer sexo com você. Primeiro: algum trauma. Segundo: doença. AIDS. Terceiro: ele não é gay de verdade.

Descruzei os braços e os bati ao longo do corpo, mais uma vez.

— Como alguém não é gay de verdade? Para que alguém vai fingir que é gay? Logo com tanta coisa pra se fingir, que é rico, que é inteligente, mas gay??

Ela ergueu os ombros.

— Sei lá! Alguém que ainda não esteja seguro?

— Obrigada por me desiludir.

— Eu só estou sendo sincera como sempre fui com você, Baby. — Ela repousou as mãos no meu ombro. — Pelo menos, tire a dúvida sobre ele ter ou não a doença.

— E como você sugere que eu faça isso, Laura? “Oi, Thiago, eu pensei bem e antes da gente consumar nosso relacionamento, poderia me mostrar seu teste de H.I.V. atualizado”?

— Baby, eu não sei. Isso daí é com você. A única coisa que quero é que tenha cuidado para não se machucar mais tarde. Você é a pessoa mais amável que já conheci, Caio — ela confessou, tocando em meu rosto. — Faz quase três anos que nos conhecemos, e nesse tempo eu já pude perceber que você é do tipo que se entrega muito rápido. Ontem você nem olhava para o Thiago hoje você está perdidamente apaixonado por ele, se você se entregar completamente antes de ter certeza das intenções da outra pessoa a dor será muito maior mais tarde. De verdade, eu me importo com você.

...

A conversa que tive com a Laurinha foi um tapa na minha cara. Mesmo na faculdade, os três motivos que ela enumerou, para o Thiago não querer transar, ficaram pairando sobre minha cabeça como uma nuvem negra de tempestade.

O Thiago não parecia do tipo promíscuo, mas ele ter perguntado sobre as camisinhas no primeiro dia que ele dormiu na minha casa era motivo para eu acreditar no que a Laura havia apontado. Está certo que sexo tem que ser sempre seguro, porém as pessoas não pensam na camisinha em primeiro lugar, pensam no sexo e ao serem levadas pelo embalo acabam se esquecendo do preservativo, só lembrando dele mais tarde, no último momento.

O pior era que estávamos na semana de provas, mas quem disse que tive cabeça para estudar? Mandei uma mensagem para o Thiago informando-o que estava na biblioteca, era costume a Laura e eu, — agora a Dafne —, chegarmos mais cedo na semana de provas para estudar na biblioteca. Ele respondeu a minha SMS bem no momento em que o sinal para o primeiro tempo soou, avisando apenas que chegaria atrasado.

Ainda tinha àquilo, os benditos atrasos. Começava a pensar que a Laura tinha razão sobre o Thiago ter algo a esconder.

Já na sala de aula, o Thiago chegou atrasado, como de praxe, o professor tinha acabado de entregar as provas. Ele pediu licença e seguiu direto para a carteira dele, sem desviar minimamente o olhar, nem para saber se eu estava presente, fiquei observando-o até ele se sentar, tirar a caneta da mochila e pegar o caderno de provas que o professor lhe estendia. Voltei a atenção para minha própria prova quando notei de relance que a Laura me encarava. Suspirei fundo e tentei me concentrar o máximo possível na avaliação.

Eu fui o último a entregar a prova. O Thiago havia terminado a dele pouco depois do início do segundo tempo e não estava mais na sala. A Laura tinha saído para comprar lanche com a Dafne e o restante da turma ficou na classe, estudando para a próxima prova. Eu também deveria fazer o mesmo, mas decidi ir ver o Thiago, saber se iríamos embora juntos ou não.

Tentei falar no celular dele, mas estava dando ocupado, franzi o cenho. Eu sabia onde ele fumava, fui até o local. Quando cheguei o vi encostado na parede com a perna direita dobrada, o cigarro na boca e o celular no ouvido. O Thiago não percebeu minha presença, o lugar era mal iluminado por ser na lateral do prédio, ele resmungava para a pessoa do outro lado da ligação, foi quando aquela frase surgiu e me tirou totalmente foco.

— Não, não, você não está dizendo nenhuma inverdade, Luciana. Tem razão sim, sim, eu ainda amo o seu irmão. O problema é que... — Ele foi interrompido e enquanto a pessoa do outro lado provavelmente argumentava, o Thiago suspirou cansado, elevando a mão desocupada à cabeça. — Não, não, aí você está equivocada, eu não estou iludindo ninguém, eu estou apenas tentando seguir em frente e tirar de vez o Guilherme da minha cabeça. Você acha que vou ficar o resto da minha vida remoendo um sentimento que não pode ser vivido? — Houve uma nova pausa, que foi irrompida de forma alterada. — Eu quem não quero, Lu? Eu? E o que a sua família fez? E a opinião do próprio Guilherme? Lu, pelo amor de Deus, para com isso... — ele esfregou a mão no rosto. — Eu sei que você só quer ajudar, mas...

Eu tinha ouvido o suficiente, resolvi voltar para sala. Era dolorido continuar ouvindo aquela conversa, principalmente depois de ter escutado o: “eu ainda amo o seu irmão”. Não que eu não imaginasse algo do tipo, mas depois de tudo que ele havia me contado, eu quis acreditar que o Thiago não amava mais o Guilherme.

Voltei para sala de aula e minha cara de desânimo foi percebida pela Laura e pela Dafne.

— Onde você estava? — a Laurinha quis saber. — E que cara é essa? Alguém morreu?

— Meu relacionamento, antes mesmo de começar.

— Você está namorando? — A Dafne perguntou radiante.

— A pergunta não é mais essa, Dafne, você não ouviu o que ele disse? A pergunta agora é: vocês terminaram? Não me diga que você foi averiguar sobre as minhas suposições e ele te deu um pé na bunda?

Ele é da nossa sala? — continuou a Dafne animada, fazendo perguntas fora do tempo real.

Eu cruzei os braços sobre a carteira e deitei minha cabeça sobre eles.

— Nada disso, nem nos falamos ainda — respondi com a voz abafada.

— Caio, me explica...

Mas não teve como, o sinal tocou e o professor entrou na sala, pedindo que desligássemos os celulares e deixássemos somente canetas sobre a mesa, achei melhor assim, não estava a fim de dar explicações para ninguém. O Thiago entrou alguns minutos depois, mas eu já não estava me importando, desta vez fui quem não quis olhá-lo.

Não foi nenhuma surpresa ele ter sido o primeiro a entregar a prova, estávamos ainda na metade do primeiro tempo. Achei que certamente ele não me esperaria, mas mantive uma pequena esperança. Mas quando terminei a prova e não encontrei nem ele e nem a moto dele no estacionamento, eu não me surpreendi. Fui esperar no carro da Laura e liguei o celular, nenhuma mensagem também.

Novamente senti uma dor latente no peito, o Thiago chegou e foi embora sem me cumprimentar, sem mandar nenhuma mensagem, sem me ligar. Estava me sentindo um trouxa. Aquilo não era namoro, aquilo não era “estar tentando tirar o Guilherme da cabeça”.

Revoltado, mandei uma SMS: “achei que estivéssemos namorando, mas é melhor esquecer, isso não vai dar certo”.

O celular tocou em resposta, eu ponderei por um segundo se aceitava ou não a ligação, respirei fundo e um tanto receoso eu decidi atender.

— Por quê? — foi à pergunta do outro lado da linha assim que acionei a tecla de atendimento do aparelho.

— Pensei melhor, acho que não vai dar — respondi, sério. — Tá na cara que somos incompatíveis, Thiago. Eu sou um puto de um egoísta, não gosto de ser ignorado, não quero esperar para transar com você, não quero dividi-lo com ninguém. Também acho que está me escondendo a verdade, gays curtem transar, homens curtem transar e colocam o sexo em primeiro lugar. Você pode estar escondendo o verdadeiro motivo pra não querer fazer sexo comigo, como um trauma, uma doença...

Ele ficou em silêncio por algum tempo, achei que ele fosse se justificar, dizer que não falou comigo porque chegou atrasado, ou alguma outra desculpa, esfarrapada que fosse, mas ainda assim que demonstrasse que ele se importa e que ele não queria me perder. Também pensei que me chamaria de louco por levantar aquelas suspeitas idiotas sobre sexo e doenças, riria na minha cara, mas não, não foi como pensei, a resposta que obtive foi tão fria quanto o iceberg no qual o Titanic bateu.

Se é o que pensa.

Ele poderia ao menos ter a delicadeza de perguntar: “Você pensa mesmo isso?”.

— Não, não é o que eu penso, Thiago. Mas eu ouvi a droga da sua conversa no telefone com a Luciana, se isso é o que você quer, então pare de mentir para sim mesmo, se você não consegue tirar o Guilherme da cabeça, engula seu orgulho besta e volte para ele, porra! — Gritei e desliguei o telefone.

Então eu chorei, e como chorei.

...

Para não pensar no Thiago e no namoro que terminou sem mal começar, eu enfiei a cara nos estudos. Também evitei entrar no Face, só não tive como fugir do chat do Whatssap.

A Fran e a Jess me bombardearam com perguntas, indignadas com a minha atitude. Já a Luciana até me adicionou no Facebook quando soube que dei o fora no Thiago, me mandando uma MP dizendo que eu tinha tido uma postura louvável. O Guilherme me mandou outra MP, me chamando de trouxa.

Cara, como ele consegue ser tão insuportável?

Eu só respondi que eu era mesmo um trouxa, e que na verdade ele deveria beijar os meus pés por ter saído de livre e espontânea vontade do caminho dele. Então o deixei falando sozinho, não sei porque eu ainda o tinha na lista de amigos, poderia tê-lo bloqueado desde o começo, mas talvez, no fundo, eu achasse divertido bater boca com ele.

Apesar de conseguir evitar o Thiago no mundo virtual, não consegui fazer o mesmo na vida presencial. Eu o via entrando e saindo da sala de aula, sempre com seu jeito indiferente, chegando atrasado, pedindo licença e sentando-se isolado em seu lugar. Era pouco, mas era o que eu conseguia ter.

Pensava que uma hora ou outra chegaria a notícia de que o Guilherme e ele haviam reatado. Mas enquanto aquela notícia não vinha, eu ficava aliviado quando perguntava para as meninas (Fran, Jess e Luciana) e a resposta era sempre negativa.

A semana de prova acabou. Laurinha me avisou que não iria à semana de entrega de notas porque precisava se preparar para a viagem, e que acompanharia o lançamento de notas pela internet. Eu decidi que também não iria, porque estaria sem carona. Ela riu e me chamou de preguiçoso.

No sábado de manhã fui até a casa dela, ajudá-la com os preparativos para viagem.

— Ainda não me sinto bem pelo que aconteceu, Caio — ela disse, dobrando o sexto moletom para colocar na mala. — Eu não pensei que seria tão radical ao ponto de terminar o namoro.

— Eu não te entendo, Laurinha. Você critica o meu namorado, bota mil e um defeitos no cara e agora se sente mal por eu ter terminado? — Tirei o sexto moletom que ela havia colocado na mala e o devolvi para dentro da gaveta do guarda-roupa de onde ela havia retirado. — Além disso, já te contei o motivo verdadeiro.

— Mas a minha intenção era que você namorasse o deus nórdico, não que mandasse o ex dele de volta para ele. — Ela apanhou o moletom que eu tinha devolvido, olhando-o com estranheza. — Ué, não eu tinha colocado isso na mala?

— Eu tirei. Você não vai passar as férias inteiras de moletom, né, Laurinha? Por favor.

— Você não sabe o quanto faz frio em Ponta Porã, Caio Henrique.

— Ai. Caio Henrique não, professor Rubens.

Ela riu e voltou a colocar o moletom na mala.

— Além disso, eu te chamei para me ajudar a fazer as malas e não desfazer — ela observou.

— Que horas vocês vão?

— Cinco da manhã — informou e fechou a gaveta, passando a retirar os casacos dos cabides. — Você quer ficar com o uno?

— E vocês vão de quê?

— No Citroen da mãe do Maurício, é bem mais espaçoso e mais confortável para viajar que meu uninho. Não é bom o carro ficar tanto tempo parado.

— Se não tiver problema para você.

Ela pegou a chave e os documentos do carro na bolsa e me entregou.

— Confio em você, bobo. Só acho que você deve sair pra curtir durante esses dias, não fique mofando em casa.

Eu a abracei.

— Ou... convide alguém para ficar com você, mesmo que não façam sexo. — ela opinou em meio ao abraço e rimos.

Não tinha como não gostar da Laura, ela era como a irmã mais velha, apesar dela ser sincera e dizer a verdade mesmo que machuque.

...

Mas eu já tinha destino certo àquela noite de sábado.

As ruas em torno da Avenida Afonso Pena, a maior da cidade, haviam sido bloqueadas pela força policial. As passeatas que estavam ocorrendo desde a quinta-feira não eram mais pela tarifa do ônibus, que havia sido até congelada pelo novo prefeito, mas por várias situações, o desvio de dinheiro público para o Hospital do Câncer ali em Campo Grande. Os gastos excessivos para realização da Copa quando o Brasil não tinha transporte, segurança, saúde e nem educação decentes. Por um país sem corrupção, com punição severa para o crime de corrupção, por igualdade social. Eram várias bandeiras que se levantaram clamando por justiça e direitos.

Como os convites nas redes sociais falavam em manifestação pacífica, as ruas estavam lotadas de jovens, velhos, adultos, profissionais, estudantes e famílias, muitos pais com crianças.

A bandeira que eu ergueria junto com a Jess e a Fran era contra o preconceito com os homossexuais, já que em maio o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aprovou uma resolução que obriga todos os cartórios do país a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Ou seja, o nosso país de complexas desigualdades sociais havia dado um passo à frente no que se diz respeito à igualdade de direitos. Talvez o Brasil ainda tivesse salvação.

Mas o preconceito ainda existia e era contra esse preconceito que eu levantaria minha bandeira, leis mais severas para quem comete crime por homofobia.

Deixei o carro da Laura na Rua 15 de Novembro e subi a pé cinco quadras, até chegar ao ponto marcado pelo pessoal. Admirei a quantidade de manifestantes. A Fran e a Jess estavam lá, vestindo as camisetas customizadas por elas, brancas e cheias de palmas de mãos coloridas. Elas também carregavam cartazes coloridos, usavam fitas coloridas nos punhos, as cores representando o arco-íris, a bandeira LGBT.

Notei que a Luciana também vestia a camiseta da causa, talvez para apoiar o irmão dela, já que ela tinha namorado, o Vinny que estava ali perto dela e carregava uma placa contra a aprovação da PEC 37. E para minha surpresa a Luciana foi a primeira a me cumprimentar com um abraço. Logo veio a Jess e a Fran que me apertaram entre elas.

— Que bom que você veio, gato.

O Heitor e o namorado também estavam lá, e discretos, apenas me acenaram, mas eles também vestiam a camiseta do movimento gay. O Claudio e a Amanda estavam com roupas comuns e carregando cartazes contra corrupção.

Mas aquele que eu mais queria encontrar ali eu não localizei de imediato, e, como se percebesse minha ansiedade, a Jess envolveu meus ombros e de fininho foi me afastando do grupo.

— O que foi? — perguntei quando paramos.

— Acho que quem você está procurando está bem ali — ela apontou com um gesto de cabeça e eu senti um frio intenso se apossar do meu estômago, virei para trás e rapidamente meu olhar o encontrou.

Ele estava com sua habitual camisa preta, por baixo uma de malha fria, boné, calça jeans, tênis e o rosto pintado de verde e amarelo. Ele estava com um megafone, gritando frases de ordem enquanto o punho erguido exibia uma pulseira multicolorida (representando que ele também fazia parte do movimento homossexual). Eu senti algo bom me invadir, uma nostalgia, me lembrei do dia em que eu notei o Thiago pela primeira vez, quando ele bateu na carteira da faculdade e encarou o professor Roberto ao defender aquilo em que ele acreditava, foi aquele Thiago por quem me apaixonei.

Passei pela Jess para ir de encontro à ele quando senti ela segurar meu braço.

— Acho melhor não...

Antes que a Jess concluísse eu mesmo me detive. O outro estava ali, a poucos metros de distância do Thiago, vestido com a mesma camisa do movimento gay das meninas, a mão direita em punho para cima, gritando palavras de ordem, e com uma linda menininha sentada em seus ombros. Ela também estava com a camiseta do movimento e imitava os gestos dele com um sorriso largo que não cabia no rosto.

Quando pensei que aquela era a pior parte, ficou ainda pior, eu vi o Guilherme se voltar para o Thiago, se aproximar dele eufórico, falar algo em seu ouvido e depois dele abaixar o megafone, o beijar na boca.

Tudo que me lembro a seguir é de ter virado as costas e ter saído dali o mais rápido que pude, trompando na multidão de pessoas que carregavam faixas, cartazes e gritavam por um país justo.

Alguém gritou meu nome, depois de algum tempo ela me parou ao me segurar pelo braço.

— Aonde você pensa que vai, Caio? Eu trouxe uma camiseta para você — a Fran me estendeu a camiseta.

— É melhor dar essa daí para o Thiago, Fran. Assim eles vão ficar iguais. Uma linda família feliz! — eu gritei, não conseguia ouvir nem o som da minha própria voz tanto era o barulho a nossa volta.

Eu estava chorando, a Fran me abraçou.

— Você o ama, Caio. Diga isso à ele.

— Nunca!

— Caio? — ela amparou meu rosto com ambas as mãos, me obrigando a encará-la. — O Thiago pode ser tudo. Pode ser batalhador, trabalhador, revolucionário, idealizador, mas algo que ele nunca teve muito controle foi sobre seus próprios sentimentos. Ele pode lutar por qualquer coisa nesse mundo, Caio, mas ele levanta a bandeira branca rapidamente quando se trata dos seus próprios sentimentos. Ao contrário de você. Você não desistiu dele mesmo quando ele tentou te afastar. Você é um garoto que busca lutar por quem ama, não desista dessa batalha dessa forma.

— Mas ele disse que ainda ama o Guilherme.

— Claro que ama, Caio. Como ele ama a mim, a mãe dele, a irmãzinha, a todos que o rodeiam. Ele nunca vai deixar de amar o Guilherme, mas não pense que esse sentimento se compara com o que ele sente por você. Além disso, você acha que o Guilherme o ama? Caio, o Gui só vai brincar com o Thiago. Ele não ama ninguém, nem ele mesmo. Se ele amasse o Thiago de verdade a primeira coisa que ele faria era se assumir e assumi-lo perante a família dele, mas o Gui nunca vai fazer isso, Caio. Nunca. O Guilherme saiu com uma centena de caras e garotas no tempo que eles ficaram separados, o Thiago muitas vezes o viu, o Guilherme fazia questão de esfregar na cara dele todos os caras com quem ele ficava. Mas pergunta quantas vezes o Thiago saiu com alguém? Nenhuma. A primeira vez que ele encontrou alguém especial, que ele encontrou você, o Guilherme fez um inferno. Ele manipulou a irmã para ficar do lado dele, e estava até mesmo manipulando sua amiga com conversinhas pelo Facebook e pelo Whatssapp.

A ficha de repente caiu.

— Foi por isso que a Laura agiu daquele jeito estranho quando contei à ela sobre o Thiago?

— Sim. Mas não a culpe. O Gui é um puto manipulador. Ele tem charme, é um cafajeste, é exatamente o tipo que passa a lábia facilmente nas mulheres.

Eu senti meu coração acelerado.

— Você o ama?

— Nunca pensei que amaria alguém tão facilmente na minha vida, Fran. — Eu desabafei e a Fran me amparou novamente em seus braços, arrancando olhares curiosos de todos que passavam por nós.

Parecíamos até um casal, se ambos fossemos heteros, é claro.

Ficamos assim por um tempo, até que ela me afastou e entregou para mim a camiseta.

— Então, tome. Pare de ficar na porta, Caio. Se o Thiago não abre o coração para você entrar, é hora de invadir essa porra. Entre sem bater! Você vai se surpreender ao perceber que já estava lá dentro há muito tempo. Olha essa multidão de gente, não podemos ficar parados esperando as coisas acontecerem, precisamos levantar e ir atrás do que queremos. Se o Gui fosse um cara digno do amor do Thiago, eu juro que não estaria me manifestando agora.

Eu sorri, limpei o rosto e assenti com um balançar firme de cabeça.

— Eu vou falar com ele.

A Fran apanhou a minha mão e ambos corremos desviando dos manifestantes, tirei minha camisa, amarrei na cabeça e vesti a que a Fran tinha me dado. Ela tirou o celular do bolso e me informou a localização que o grupo estava.

— Eles pararam em frente a prefeitura, vamos, rápido!

Enquanto corríamos, meu peito se enchia de coragem. Porém, a minha euforia foi se diluindo conforme fomos nos aproximamos, percebemos um princípio de tumulto, tinha gente correndo na direção oposta a que íamos, ouvimos duas explosões, uma seguida da outra, parecia barulho de bomba de efeito moral. Senti um calafrio. A Fran pegou no meu braço, mas alguém atravessou entra a gente e fomos arrastados para lados opostos.

— Caiooooo!! ­— eu ainda ouvi o grito dela se afastando.

Mas algo me dizia que eu precisava chegar na prefeitura. Lembrei do que o Thiago havia dito aquele dia no Copo Sujo e parei uma pessoa que vinha correndo para perguntar.

— O que está acontecendo?!

— Chegou uns malucos erguendo bandeira de partidos políticos e um pessoal começou agredir eles, o choque interveio, tá a maior bagunça, melhor não ir para lá.

Eu nem tive tempo de agradecer, o cara já estava longe. Então corri, corri como se minha vida dependesse disso. Ouvi gritos, novos estrondos e explosões.

— Isso é mesmo Campo Grande? Tá parecendo o que aconteceu em São Paulo, só falta aparecer carro pegando...

— Fogooo!

Quando dei por mim estava no chão, o cara que gritou “fogo” trompou em mim e eu caí, fui pisoteado e não consegui mais levantar, haviam pisado no meu tornozelo, só percebi onde estava quando um espaço foi aberto, logo pude ver o motivo: um grupo de vândalos depredavam a agência bancária onde algum idiota havia estourado a porta de vidro, provavelmente com bomba caseira.

Tentei me arrastar no asfalto ao ouvir o barulho das sirenes se aproximando, os marginais que depredaram a agência saíram correndo. Se eu ficasse ali seria confundido com os vândalos, me desesperei.

— Droga!

Foi quando senti alguém me apanhando pelas costas e logo surgiu outra pessoa na frente e me pegou pelas pernas.

— Vinny! Roberto!

— O que está fazendo no meio dessa bagunça? Por isso que eu digo que não devemos desconfiar nos santinhos.

Senti um alívio imenso, fui levado para onde estava o restante do grupo.

— Achamos ele! — Gritou o Roberto.

Assim que fui colocado no chão, a Fran e as demais meninas me rodearam, fazendo um milhão de perguntas ao mesmo tempo. A Amanda segurava a irmãzinha do Thiago no colo, que apontava para a minha perna e gritava assustada: “dodói, dodói”. Mas foi na direção de um “me solta” que minha atenção se voltou. O Guilherme tentou impedir o Thiago de vir na minha direção, mas ele se desvencilhou do agarro dele e o grupo abriu espaço, então ele se ajoelhou para me alcançar e enfim me abraçou.

— Droga, droga! O que pensa que estava fazendo lá, seu idiota! Idiota!

De fininho a Laura foi afastando o pessoal de perto da gente.

— Vamos para o hospital... — ele se ergueu e viu que estávamos sozinhos. — Mas para onde foi todo...

Eu toquei o rosto dele.

— Eu estou bem.

— Claro que não está! Sua perna está machucada, seu rosto está arranhado e... — Eu o interrompi.

Ter a boca dele se movendo tão perto da minha foi tentador. Não sei bem como a minha boca foi parar junto a dele, mas foi. O Thiago correspondeu ao meu beijo, e ficamos assim, nos beijando, acho que por quase meia hora. Quando finalmente nossas bocas se afastaram, eu fiz aquele comentário idiota.

— Não era mesmo por 20 centavos, afinal...

Ele riu.

— Thi, eu...

— Eu sei — ele impediu que eu continuasse colocando um dedo sobre meus lábios. — Eu quase enlouqueci quando a Fran apareceu dizendo que você estava indo na direção do tumulto, só me impediram de ir junto com o Vinny e o Roberto porque a Nanda não parava de chorar.

— Eu também, meu coração quase parou quando imaginei você quebrando e queimando as bandeiras dos partidos e os caras pirando e tentando te bater.

— Nem tive tempo de fazer isso, assim que a discussão começou os vândalos apareceram aumentando o tumulto, estavam apenas esperando um estopim. Acabou que o Roberto tinha razão...

— O professor Roberto é um babaca, Thi. A merda de uma agência com portas quebradas não cobre os quinhentos anos que o povo brasileiro vem sendo estuprado pelo governo. Essas vozes que gritaram hoje e ecoaram pelos quatro cantos do nosso país valeram muito mais que isso. Foi você quem me ensinou isso.

— Eu? Quando?

— Quando você me acordou no meio da aula, depois de ter peitado o professor Roberto gritando e batendo na mesa: “Não é só por 20 centavos!” — eu ri, ao tentar imitar a voz dele, então voltei a ficar sério. — Aquele momento eu senti algo revirando no meu estômago, eu havia me apaixonado por você.

O Thiago segurou meu rosto e estava se aproximando da minha boca quando uma mão em seu ombro o impediu de continuar, era o Gui. Franzi o cenho na direção dele. Pelo jeito, ele não iria mesmo desistir.

— Será que podem deixar a lua de mel pra depois do casamento? Essa perna vai apodrecer se não levarmos a noiva para o hospital agora.

— Não seja tão dramático, Gui — resmungou o Thiago. — Vem, me ajuda a erguer ele.

— E por que eu tenho que ajudar o meu rival? Eu quero mais é que a perna dele infeccione e ele morra com tétano.

— Tá, e você veio nos chamar porquê?

— Para interromper outro beijo de meia hora?

— Isso aqui não é novela, e você não é o Félix Bicha Má, então vai, mexa-se.

— Sabia que você é extremamente chato quando começa a mandar nas pessoas, Thi?

Dei uma alta gargalhada e estranhamente eu me vi naquela posição: entre dois amores do passado.

Não tenho a mínima ideia do que me reserva o futuro e se no final haverá “felizes para sempre”. Aliás, tenho uma única previsão, e essa eu sei que será certeira: terminarei a noite com uma bela bota de gesso.

Fora isso, a única certeza que quero ter é de continuar morando por muito tempo dentro daquele amplo e espaçoso coração o qual eu havia invadido sem bater. Cansei, não quero ser só mais um invasor, um visitante, estabelecerei residência fixa. Também não vou mais me incomodar ou me intimidar com os antigos moradores. Observei de soslaio o loiro que continuava resmungando. Eles chegaram primeiro, têm seus direitos, mas na realidade eu também tenho os meus e lutarei por eles. Sorri.

No fim, não sei como será...

Fim.


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Notas finais do capítulo

Olá, Shana Black! Bom início de ano para nós e muito obrigada por me presentear com temas originais tão maravilhosos! Sim, eu me senti a presenteada desta vez. Isso me obrigou a trabalhar originais, sendo que muitas vezes eu me esquivo do gênero. :P

Entre seus temas, fiquei balançada entre o do Pirata e esse, mas acabei optando por um tema mais cotidiano onde é minha zona de conforto, afinal, tive um fim de ano bem tumultuado. Espero que tenha gostado. A história não terminou bem do jeito que eu queria por falta de tempo, mas enfim! Espero que gostei.

Grande beijo e bom 2014 para nós /o !! 



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