Entre sem bater - Para Shana Black Rx escrita por Amigo Secreto


Capítulo 5
Capítulo 05 – Mesmo se o mundo desabar?




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Saí correndo atrás da Laura, apesar de eu ter sido o prejudicado, era o mundo dela que estava desabando.

— Laurinha, pelo amor de Deus, espera.

— A culpa é minha, Caio. Minha! — ela gritava, intercalando a exposição da sua raiva entre chutes na porta do carro e as mãos que esfregavam o rosto. — Como eu não percebi? Como pude ser tão estúpida?!

— Laurinha, a culpa também foi minha.

— Ele te humilhou, Caio. Como um cara lindo como ele teve a capacidade de ser tão podre? Ele te chamou de garoto de programa! Fui eu quem bati a foto. Vamos a polícia? Vamos agora. Vamos denunciar esse cafajeste — ela decidiu abrindo a porta do carro e se sentando no banco do motorista.

Mas eu tive que ser mais rápido e pegar a chave que ela tentava em vão colocar na ignição.

— E você acha que a polícia dará crédito para dois bêbados? Apesar de que eu estou bem. Mesmo assim, esse é um problema meu. Eu vou resolver depois. Agora passa pro banco de passageiro. Você não vai dirigir desse jeito. Eu só bebi aquele coquetel no começo da noite, estou em melhor estado que você.

Eu respirei fundo, sentindo o vento frio cortar meu rosto. A temperatura havia caído drasticamente. O inverno tinha que mostrar sua cara em uma situação tão crítica como aquela? Mantive-me firme, enquanto a Laurinha me encarava com seu rosto encharcado em lágrimas, a maquiagem borrada e olhos vermelhos arregalados. Mas depois de estremecer os lábios e tentar engolir o choro, ela pulou do banco do motorista para o de passageiro e me deu espaço para entrar.

Eu soltei um suspiro aliviado por não precisar mais argumentar e entrei no carro, batendo a porta. Coloquei o cinto e pedi que ela fizesse o mesmo e partimos. Durante todo o caminho a Laura continuou se lamentando muito pelo ocorrido, querendo saber onde eu havia conhecido o Guilherme e porque ele havia feito algo tão baixo para me machucar. Eu só respondi que explicaria quando ela estivesse em condições de compreender.

Não sei bem o que houve, mas o desespero da Laurinha acabou aplacando o meu próprio.

Deixei-a em casa depois de ajudá-la a trocar de roupa, colocar um pijama e ter certeza que ela havia pegado no sono. Chamei um moto-táxi em seguida. Usei a chave reserva para fechar a casa dela e esperei do lado de fora, tremendo de frio. Estava quase congelando quando o moto-táxi chegou. Andar de moto no frio, só com blazer, foi a pior das ideias que tive, mas eu não estava em condições de pagar um táxi e também não poderia prever que a noite esfriaria tanto.

Quando cheguei em casa dei graças a Deus, eu me sentia um picolé. Desci da moto rápido e retirei a carteira do bolso pra pagar o moto-taxista quando eu o vi franzir o cenho.

— Olha, moço. Não quero te assustar não, mas tem um sujeito suspeito sentado ali na calçada, encostado no muro. Você mora aí atrás?

Senti meu coração vir na boca, mas quando me voltei para trás e vi a moto, deduzi quem era.

— Ah, é o meu irmão. Ele deve ter esquecido a chave — justifiquei rápido, dando a nota de vinte reais para o motoqueiro, que abriu a pochete, guardou a nota de vinte e me devolveu dez de troco.

— Tem certeza? Nem dá pra ver o rosto direito, moço. E se não for? Se quiser, eu ilumino com a moto até você entrar.

— Não precisa — afirmei e peguei o troco e guardei de qualquer jeito no bolso detrás da calça. — Obrigado.

— Tá certo.

Mas eu percebi que o motoqueiro ainda demorou um pouco a sair, ele só funcionou a moto quando me viu falando com a pessoa sentada na calçada.

— Thiago? É você?

— Eu.

— Pega sua moto, vou abrir o portão.

— Tá.

Enquanto eu abria o portão meio desajeitado, ele funcionou a moto e a estacionou na varanda. Tranquei o portão e abri a porta da casa.

— Está congelando, vem. Faz tempo que está me esperando? Se tivesse me avisado que... — Eu me paralisei assim que acionei a lâmpada de dentro e olhei para o rosto do Thiago.

Aquilo não era possível. Ele havia sido espancado. Os óculos estavam tortos e haviam várias marcas de hematomas no seu rosto, alguns cortes e ralados, de onde saíam muito sangue.

— O- o q- que houve?

Ele ergueu a cabeça, sorrindo meio sem jeito, mostrando seus dentes também sujos de sangue, então ele me estendeu seu celular.

— Eu o obriguei a tirar aquela merda.

Eu apanhei o celular, estava no perfil do Facebook do Guilherme. A minha foto não estava mais lá. Mas aquilo não me interessava mais, larguei o celular em cima da cama e me aproximei dele.

— Foda-se o Guilherme e suas criancices, Thiago. O que ele fez com você? Você está bem? Vamos a um posto de saúde...

— Eu ‘tô bem... — O Thiago riu. — Como se ele fosse capaz de fazer alguma coisa por ele mesmo. Foram os merdas dos capangas da casa dele. Mas antes deles me pegarem eu dei uns bons sopapos na cara bonitinha do Guilherme, valeu a pena.

— Por que fez isso?

Ele passou por mim e sentou na cama, apoiando os braços no joelho e encarando o carpete.

— Eu acordei atrasado pro trabalho e nem tive tempo de te avisar. Cheguei em casa exausto e desmaiei, dormi até as oito da noite. Só acordei com a minha mãe me chamando pra jantar. Eu tomei banho, jantei e quando decidi te ligar foi que eu descobri as merdas que estava acontecendo. — Eu vi ele fechar as mãos em punho sobre as pernas. — Desculpe-me. A culpa foi minha.

Eu bati as mãos ao longo do corpo, por que todo mundo queria assumir a culpa daquilo? Passei por ele, entrei no banheiro e peguei algodão e o vidro de álcool no armarinho. Sentei ao lado dele e depois de umedecer o algodão em um punhado de chumaço passei a limpar os ferimentos dele. Thiago era forte, não reclamou.

— Você não deveria ter feito isso — eu resmunguei baixinho.

— Eu não admito esse tipo de baixaria, Caio. Eu disse para o Guilherme se ele quisesse me atingir ele poderia vir sem medo, mas eu não vou perdoá-lo se ele ferir as pessoas a minha volta.

— Ele ainda te ama?

Aquela pergunta saiu sem querer, quando dei por mim já havia vocalizado o que me veio à mente. O Thiago ergueu a cabeça e encarou meus olhos. Mas ele não pareceu irritado e sim surpreso. Então o vi desviar o olhar novamente e como se vagasse de encontro ao passado, ele passou a narrar a história do Guilherme com ele.

Toda sexta eu e um grupo de colegas matávamos os últimos tempo de aula, na época que eu fazia o ensino médio no Joaquim Murtinho. Descíamos para a concha acústica do Horto Florestal para curtir a noite do rock. Fumávamos, bebíamos e curtíamos boa música até umas onze da noite. Mas sempre tinha um grupo de skatistas que estavam na área, formado por mauricinhos que estudavam a tarde na Mace e subiam para ficar lá até umas dez horas da noite, quando seus pais ricos vinham pegá-los em seus carrões.

Havia vários grupos de outras escolas particulares e públicas também, por isso não dávamos muita importância para presença desses mauricinhos. Até que as garotas do nosso grupo começaram a ficar alvoroçadas por um loirinho de olhos azuis que era desse grupo de Skatistas da Mace.

O garoto se achava, ele percebia os olhares famintos das garotas sobre ele. Os meus colegas só tiravam sarro das meninas, alegando que elas nunca conseguiriam nada com ele porque ele e o grupo eram um bando de “veadinhos”. Eu não ligava pra nada daquilo. Nunca fui fã nem de ficar tirando sarro, nem de azarações. Na maioria das vezes eu me separava do meu grupo e subia para o último degrau das arquibancadas da concha e ficava deitado lá, ouvindo a banda que tocava enquanto colocava a leitura em dia.

Em uma dessas sextas, havia chovido o dia todo e a noite ainda continuava garoando, muitos dos nossos colegas tinham ido embora e outros não quiseram ir por causa do mal tempo. Nesse dia só desceu para o horto um casal de amigos (que queriam ir só para ficarem namorando) e eu.

Ao chegar, deixei os dois sozinhos e subi, havia pouquíssimos alunos ali aquela noite, o som do grupo que tocava ecoava dentro da concha. Mas quando cheguei no lugar que costumava ficar eu me surpreendi, o tal loirinho que as garotas idolatravam estava deitado no meu lugar. Fiquei experimentando um conflito interno por alguns segundos, não sabia se eu falava alguma coisa ou deixava quieto, mas quando notei a roupa dele molhada e seu corpo tremendo de frio, eu larguei mão. Pelo jeito ele também estava sozinho e ainda havia se molhado. Tinha espaço de sobra ali, então sentei no degrau abaixo dele e abri a mochila para apanhar meu livro.

Não demorou nem dez minutos e a chuva recomeçou. Curioso, ergui a cabeça para ver se o loirinho havia acordado, mas ele só havia se virado para o outro lado e tremia, abraçado ao próprio corpo. Então retirei um casaco reserva que estava dentro da minha bolsa e joguei em cima dele.

— Por que você não vai embora? — eu perguntei, tendo certeza que ele estava acordado e que sabia da minha presença ali.

Ele ficou em silêncio por algum tempo, então encolheu os ombros e me respondeu.

— Meu pai dá aula em uma universidade. Ele só vai passar para me pegar as dez e meia.

— Tenho certeza que tem dinheiro para pagar um táxi.

— Tenho, mas...

— Já entendi. Você não quer ir para casa — eu meio que afirmei, ele só se virou para o lado que eu estava e mudou de assunto.

— O que você está lendo?

Fechei o livro e ergui a capa para que ele pudesse ler.

— “Histórias Extraordinárias – Edgar Allan Poe”. Uau. Poe? É um autor famoso da literatura internacional, não é? Você parece bem culto para alguém que estuda em uma escola pública.

Eu dei um riso de lado para intenção dele de me diminuir, mas como disse antes, eu não ligo para coisas banais, idiotas, então só ignorei sua arrogância e respondi euforicamente sobre aquela que era uma das minhas paixões.

— Está enganado. Eu não sou nada “culto”. Na verdade eu só gosto de histórias perturbadoras, que nos causam instabilidades, pensamentos insanos e arrepios. Eu amo terror. — E voltei a minha leitura.

Não sei que tipo de sentimento minha resposta causou nele, mas o loirinho não a esboçou. Ele apenas se levantou de onde estava, se sentou ao meu lado, vestindo meu casaco e pediu para que eu emprestasse um livro para ele matar o tempo também.

A partir desse momento, estranhamente, nos tornamos amigos. Ele sempre me cumprimentava quando eu chegava na concha, até pediu meu telefone e começamos a trocar mensagens e telefonemas.

Às vezes ele me ligava tarde da noite, quando eu já estava na cama, só para imitar uma voz assustadora e dizer alguma besteira do tipo: “eu sei que o que você fez no verão passado”. Um dia ele recitou um trecho de um poema famoso do Edgar Allan Poe e eu não consegui segurar a resposta idiota no final.

— Ok. Você conseguiu me deixar de pau duro.

Eu o ouvi respirar pesado e depois de algum tempo, responder.

— Você está me zoando, né?

Algo na vacilo da voz dele me fez querer continuar com aquela brincadeira.

— Como pode saber se não está aqui para conferir? Te garanto que estou excitado, estou até massageando ele agora.

— Seu pervertido, esquisitão... — ele comentou, rindo. — Quer que eu continue até você gozar?

Eu senti meu estômago contrair, a virilha arder e acabei rindo, sem saber como reagir.

— Se quiser...

Demoraram alguns segundos, ele parecia folhear o livro de contos, em seguida houve um pigarro para limpar a garganta e no instante seguinte ele voltou a sussurrar um novo conto: “Sombra”.

Como prometido, eu me masturbei.

Achei que aquilo mudaria nossa amizade, que ele se afastaria por ter certeza de que eu era um gay nojento. Até então, nem eu sabia que era gay. A única coisa que sabia é que nunca tive interesse em garotas do tipo gostosonas. Eu sempre preferi as mais discretas, em atributos, no jeito de se vestir e que tivessem pensamentos ideológicos ao invés de se preocupar com sapatos.

Mas eu me enganei, na sexta-feira ele estava lá, sentado do meu lado, arrancando olhares curiosos do grupo dele e do meu por preferir passar mais tempo comigo do que com eles. Para evitar ficar levantando questionamentos estranhos por parte dos nossos colegas, acabamos marcando dias e horários diferentes para nos vermos ali. Sempre no mesmo lugar.

Porém, com a concha acústica vazia, não demorou acontecer o primeiro beijo. Os beijos não demoraram evoluir para amassos e sem nos darmos conta, estávamos tendo um tipo de relacionamento sério.

Eu terminei a escola naquele ano e passei a trabalhar durante o dia e fazer cursinho a noite. Eu queria de qualquer forma entrar na Universidade Federal, só que por duas vezes (no vestibular de verão daquele ano e no de inverno do ano seguinte) eu reprovei. O Guilherme ainda estava terminando o terceiro ano do ensino médio e continuávamos nos encontrando sempre no mesmo lugar.

Começamos então a adentrar mais a vida um do outro, eu passei a frequentar a casa dele, uma baita mansão em um bairro nobre da cidade. Conheci a irmã gêmea dele, a Luciana, o pai, o Sr. Alberto, professor e político, a mãe, a dona Sandra, socialite, e alguns dos seus amigos; os quais você também conheceu.

O Guilherme também quis conhecer o barraco onde eu morava com a minha mãe, a dona Helena, lavadeira, e a minha irmãzinha de três anos, a Vitória. Eu não conheci meu pai, minha mãe não gostava (e ainda não gosta) de falar sobre ele. E as poucas vezes que perguntei ela só me garantiu que era melhor eu não saber. Fazer o quê? Aceitar.

Quanto ao pai da Vitória, bem, quando minha mãe ficou grávida o cara veio morar com a gente. Aceitei numa boa. Até começar a desconfiar dele. O cara ficava agressivo quando bebia e várias vezes eu o peguei gritando com a minha mãe. Um dia eu cheguei do serviço mais cedo e o flagrei batendo na cara dela, minha mãe estava grávida, foi a primeira e a última vez. Eu quase o matei de tanto esmurrá-lo. Demorou minha mãe aceitar que estava sem marido de novo, mas quando a Vitória nasceu ela encontrou na minha irmãzinha uma nova motivação para viver.

E foi a Vitória o grande estopim para muitos problemas, inclusive a decadência do meu namoro. Não por culpa dela, óbvio, minha irmã é apenas um anjinho inocente, porém... descobrimos que minha irmãzinha tinha nascido com sopro no coração e somente uma cirurgia poderia salvá-la. Minha mãe tinha fé, mesmo estando a dois anos na fila do SUS, que conseguiria a cirurgia.

Eu nunca escondi nada da minha mãe, sempre fomos muito amigos, e ela também me conhecia bem. Por isso que, assim que o Guilherme passou a fazer parte das nossas vidas, ela desconfiou. E quando ela quis saber a verdade, eu contei a verdade. Ela não me disse nada na ocasião, não me repreendeu, não ficou feliz, simplesmente não teve reação alguma, só voltou para seus afazeres da casa e cuidar da minha irmã como se nada houvesse acontecido. Os dias se passaram e quando o Guilherme apareceu em casa ela o tratou como sempre fazia. Ofereceu bolo, café, conversou com ele, no fim da visita ele foi embora sem imaginar que ela já sabia sobre nós.

Quando eu perguntei para a minha mãe o porquê, ela só me respondeu: “Se o Gui te faz tão bem, quem sou eu para ir contra ao que os dois sentem?”.

O ano passou rápido, fazia um ano e meio que o Guilherme e eu estávamos juntos. E no final daquele ano, depois de se formar no ensino médio, no vestibular de verão, o Gui passou para a Federal na sua primeira tentativa: direito. O pai dele queria que ele se formasse na área para alcançar um cargo de juiz no futuro.

Esse não foi só o primeiro motivo, mais foi uma soma de fatores que se uniram para o nosso namoro decair. Eu nunca me vi inferior que o Guilherme na questão de intelecto, mas ele havia passado na sua primeira tentativa e eu havia repetido pela terceira vez no vestibular para o curso de administração. Ele ter passado na Federal em um curso tão concorrido me fez me sentir um lixo, o idiota dos idiotas. Mesmo assim, tentei me convencer que a culpa das nossas diferenças não era dele. Continuei acreditando em um futuro que o ensino público seria tão bom quanto o particular e que a Universidade Pública seria para àqueles que não tivessem condições de pagar uma particular e a particular fosse para aqueles que tivessem condições de pagar.

Eu entrei na Universidade particular no curso de contábeis no primeiro vestibular que fiz. O valor era mais viável que o de administração e ainda consegui um bom desconto nas mensalidades por ter passado em primeiro lugar.

O Guilherme ganhou uma caminhonete do pai por ter passado na Federal e aquele estranho incômodo continuou crescendo dentro de mim de forma desproporcional. Eu estava me matando em dois empregos para poder ajudar em casa, pagar a faculdade e o financiamento da moto, enquanto ele se divertia com seu novo brinquedo.

Além disso, os remédios da Nanda começaram a ficar cada dia que se passava mais caros e o estado dela começou a piorar, minha mãe teve que largar até o emprego de lavadeira para ter mais tempo para cuidar dela.

O Guilherme e eu continuávamos juntos e sempre saímos com os amigos dele nos fins de semanas. Mas chegou um momento que eu já não conseguia separar meus problemas pessoais dos meus sentimentos e passei a recusar os convites para as boates e barzinhos. O Guilherme não aceitou muito bem e queria fazer algo em relação a minha irmã, ao meu serviço.

“Eu vou falar com o meu pai, ele é influente, conseguirá fazer algo por vocês!”, ele disse. Óbvio que meu orgulho não aceitou aquilo.

Então, o Guilherme encontrou uma forma de agir indiretamente, um pessoal que faz caridade começou a visitar nossa casa, nos trazer roupas, mantimentos, remédios, agasalhos. Certo dia cheguei em casa exausto, era o início do semestre na faculdade e eu ainda estava fazendo extras como entregador depois da faculdade, quando a minha mãe veio com aquela notícia: a cirurgia havia saído e seria em São Paulo. Até a passagem e a hospedagem ela havia ganhado. Eu perguntei “como” e ela só me respondeu: “foi Deus”.

Não sei porquê, mas eu não consegui aceitar aquela resposta, mas no fim aceitei. Era pelo bem da minha irmãzinha e da minha mãe. A cirurgia foi bem. Minha irmã se recuperou rapidamente e logo cresceria uma garota normal, eu estava feliz e minha mãe também.

Aquele foi o ano das eleições municipais e comecei a “sentir” algumas mudanças naquele cenário, o povo estava com uma nova opinião, todos a favor de um novo prefeito, um que não estava na panelinha que havia se apossado da prefeitura e do governo há muito tempo. Eu não acreditava que o campo-grandense havia acordado, estava feliz, e eu estava a favor daquelas mudanças.

Mas o Guilherme não, ele ficou irritado quando me ouviu falando aquilo com o nosso grupo em uma discussão calorosa no Copo Sujo.

— Mas e meu pai? — ele falou, chamando atenção de todos a nossa volta. — Ele pertence ao grupo da atual gestão, você esqueceu? Toda nossa família é a favor da reeleição do Geraldo. Se esse cara aí, esse radialista Zé-Ninguém, for eleito, estamos ferrados.

— Quem estará ferrado, Gui? Ferrados por quê? — Eu quis saber, franzindo o cenho na hora. — Se seu pai é um político honesto, se ele trabalha a favor da população, ele e sua família não tem o que se preocupar. Além disso, ele tem que ser a favor do povo e das escolhas que o povo faz e não de eleitos, partidos ou bandeiras!

O grupo a nossa volta bateu palmas, bateu na mesa, ergueram seus copos de bebidas em apoio ao meu discurso, mas o Guilherme não, ele continuou me encarando com seu ar ferido. Foi nesse momento que algumas verdades apareceram.

— Tudo é muito simples na sua cabeça, né, Thi? Você acha mesmo que as coisas lá dentro funcionam dessa forma?

Sem entender muito bem o que ele queria dizer, saí da cadeira onde estava, me aproximei dele e o apanhei pela gola da camisa.

— Que merda é essa que você está falando?

— É isso mesmo que você está entendendo. Ninguém fica rico sendo certinho, Thiago. Larga de ser metido a bom moço. Todos nós precisamos de favores. Veja o exemplo da sua irmã, você acha que ela viveria por muito tempo esperando na fila do SUS? Você acha mesmo que se não fosse a ajuda do meu pai ela teria sido salva?

Eu senti como se o tempo tivesse fechado naquele mesmo instante. Nuvens negras e pesadas pairaram sobre minha cabeça e escureceram minha visão. Até hoje não sei descrever exatamente o que senti, nem quão grande foi a minha decepção, raiva, agonia e repugnância.

Verdades foram jogadas na minha cara como lama no ventilador. Eu descobri que a mãe do Guilherme e a irmã dele, a Luciana, visitaram minha mãe várias vezes e, que em troca do “favor” de acelerarem a cirurgia da minha irmã, haviam pegado cópias dos documentos dela e assinatura dela em um monte de papelada, as quais minha mãe continuava assinando todo mês ou sempre que precisavam. Descobri, um tempo depois, que o nome da minha mãe havia sido usado para abertura de uma firma. Ela se tornara laranja deles. Laranja da família do cara que era meu namorado, por quem eu estava apaixonado...

Descobri também que até entrada do Guilherme na Federal havia sido forjada; outro esquema entre poderosos. Para onde eu olhava me deparava com sujeira, corrupção e tudo que eu repudiava de podre no ser humano, na droga do nosso país e em boa parte da classe política brasileira.

Não posso mentir que não fiquei feliz pela recuperação da minha irmã. Mas não precisava ter sido daquela forma, pois, se gente baixa e corrupta não abusasse do poder concedido pelo povo para se beneficiar e tirar os direitos do próprio povo, teríamos escolas de qualidade, saúde de qualidade, segurança de qualidade, sem precisar de “favores” daqueles que deveriam nos representar.

— Agora você entende, Caio? Entende o que aconteceu entre o Guilherme e eu? Eu nunca pude perdoar o Gui. Nunca. Mesmo assim ele e a família ainda acharam que minha mãe e eu éramos dois ingratos, que nos “beneficiamos” do bom coração deles e depois pisamos em seus interesses.

— Que coisa horrível... — foi a única coisa que consegui dizer depois de tudo.

— Horrível ainda é pouco. Eu quis me afastar de todos eles. Mas o Gui não aceitava de forma alguma, principalmente o término do namoro. Continuou agindo infantilmente, como o garoto rico e mimado que era, me chantageando, dizendo que tiraria a própria vida se não voltássemos, fingiu depressão. A família dele não entendia porque o Guilherme ainda queria a “amizade” de alguém que fora tão mal-agradecido depois que sua “humilde” família conseguiu salvar a vida da irmã caçula. E que eu era do tipo oportunista, que só tinha me aproximado para conseguir o que queria e que agora não precisava mais deles.

— Vocês voltaram?

— Não exatamente. Mas eu comecei a ficar com medo. Eu posso ser alguém cheio de ideais e princípios, mas não sou burro. Eu sei que nesse mundo pode mais quem tem dinheiro, quem tem poder. Fiquei com medo de que o Guilherme viesse a prejudicar sua saúde e comecei a temer pelo bem estar da minha mãe e da minha irmã caso isso acontecesse. Então eu fui fraco, covarde e recuei. Fui até a mansão deles e pedi perdão. Fingi que era ignorante suficiente para não ter compreendido bem o tamanho da “benevolência” que fizeram pela minha irmã. Permitiram que eu me reaproximasse do Guilherme, com inúmeras ressalvas.

— E o Guilherme?

— Não me queria daquele jeito, foi a resposta que ele me deu. Ele não queria alguém inferior sendo “obrigado” a ficar com ele; sentindo pena dele. E, aos poucos, ele foi recuperando a saúde, o orgulho e o egocentrismo. Mas não deixamos de nos falar. Ainda temos amigos em comum e por isso é inevitável nos esbarrarmos de vez em quando. Mas eu sempre evito estar no mesmo lugar que ele.

— Como aconteceu no Copo Sujo...

— Isso. A irmã dele tem o mesmo sentimento que a família e o Gui, que somos pobres orgulhosos e mal-agradecidos, por isso ela foi tão rude comigo e com você ontem à noite. Ver que eu havia “superado” o Guilherme e arrumado alguém foi a gota d’água para ela. A Luciana ainda acreditava que eu me rastejaria aos pés do irmão dela, porque eu sou um mero mortal perto deles que são deuses.

Eu ri e o Thiago me olhou com uma sobrancelha arqueada. A história havia sido muito dramática, mas aquele finalzinho com sua pitada de ironia me fez rir. Ele havia passado por maus bocados e eu acreditava que a minha história com meus pais era um drama maior, digno de se tornar um roteiro de filme, como eu era ingênuo.

Então eu fiz aquilo, eu levantei, o apanhei pela mão e o ajudei a ficar de pé, então o beijei delicadamente na face. Em cada ferimento que eu havia esterilizado com álcool enquanto ele narrava a história. Avancei um pouco mais e beijei seu queixo, o pescoço, o canto dos lábios. Parei e espalmei minhas mãos sobre seu peito. Ele me encarava fixamente através dos óculos tortos. Eu sorri mais uma vez. Eu sabia exatamente o que dizer, mas não encontrava as palavras certas, queria que ele sentisse meu coração batendo e o desejo ardente que me consumia e me fazia desejar estar com ele, cuidar dele, pela vida toda.

Eu não sei...

Mas a única coisa que consegui foram lágrimas, em meio ao meu sorriso congelado na face elas vieram e eu não soube o que fazer. Ele não iria me entender, ia me achar louco. Mas, diferente do que imaginei, o Thiago passou os dedos pelo meu rosto e tentou limpar as minhas lágrimas, então ele me envolveu pela cintura e me abraçou. Foi um abraço forte, caloroso, cheio de esperanças no futuro. Não sei como uma abraço podia transmitir tanta coisa, mas foi o que senti. Foi maravilhoso sentir as mãos firmes dele nas minhas costas, seu hálito quente roçando minha nuca, o cheiro bom de desodorante, o coração que batia descompassado. Achei que o mundo poderia parar de girar naquele instante.

Eu o correspondi. Evidentemente me senti um fracasso, acho que não consegui impor um terço das sensações que ele me proporcionava, entretanto, retribuí de forma sincera. Estava aconchegado naquele abraço, quando aquele pedido irrompeu o silêncio como se fosse fogos de artifícios.

— Quer namorar comigo, Caio?

Eu fiquei um tempo estagnado, me aproveitando ao máximo daquele abraço e daquele pedido repentino. Aquela pergunta tinha uma resposta tão óbvia que parecia ter sido feita pelo professor Rubens. Só faltou ele acrescentar o “Henrique” no meu nome.

— Quer um tempo para pensar? — ele quis saber, talvez por eu ter demorado a dar a resposta.

— Isso é algo que não se ouve mais nos dias de hoje, Thiago...

Ele riu.

— Desculpe-me por ser antiquado.

Eu ri.

— Tá, e a sua resposta?

— Preciso mesmo dizer?

— Sim — ele afirmou e me afastou do abraço, para olhar nos meus olhos. — Não consigo mais esperar pra te beijar.

Ele realmente tinha o dom de me constranger com coisas idiotas! Senti minhas bochechas e até as orelhas queimarem, enquanto meu estômago se contraía e aquele formigar atingia minha virilha com força. Mas decidi não prolongar mais aquela tortura e me aproximei dos lábios dele.

— A resposta é sim, bobo. Bem antes de você imaginar fazer essa pergunta ela já era sim.

Então eu o vi ficar sério, retirar os óculos, esticar o braço pra deixá-los sobre a cama, amparar o meu rosto com ambas as mãos e finalmente seguir na direção da minha boca.

Nunca. Simplesmente nunca. Gestos que antecedem um beijo me deixaram tão ansioso. Nunca, senti o emaranhado de sensações adversas somente com o unir dos lábios. O Thiago beijava delicadamente, como se saboreasse minha boca. Aos poucos foi aprofundando o beijo, tornando-o mais intenso, fazendo sua língua adentrar a minha boca e quando isso aconteceu e o beijo se tornou mais erótico com o sugar desesperado e quase claustrofóbico de nossas línguas, nosso corpos estavam tão prensados e roçavam tanto um no outro, que pressenti que o pior iria acontecer. E eu não consegui evitar. Quando ele sentiu a humidade vinda do meu ventre ele apartou o beijo e me encarou. Eu estava arfante e envergonhado. Como eu tinha gozado somente com um beijo? Somente de sentir o corpo dele se resfolegando ao meu? Como eu podia ser tão patético?

— Merda... Desculpe... — pedi, mantendo a cabeça baixa, não tendo coragem de encará-lo. — Você deve estar pensando que sou um adolescente de quinze anos agora...

Ele riu mais uma vez e alto.

— Você é tão honesto, Caio. Tão bonitinho — ele disse em um tom de exclamação, meio eufórico, enquanto beijava minha testa e voltava a me abraçar, o que me deixou ainda mais envergonhado.

— Bonitinho... — eu arremedei, fazendo um bico com os lábios, encolhido nos braços dele.

Foi aí que percebi, no meio daquela madrugada fria, que ainda não transaríamos. Porque aquela seria a deixa perfeita para que o Thiago me puxasse para cama e simplesmente deixasse acontecer. Mas não aconteceu. Quando a ansiedade do meu corpo simplesmente esfriou ele me afastou dos seus braços e tocou no meu rosto.

— Eu sei que quer isso. Eu também e muito. Mas eu quero fazer as coisas diferentes dessa vez. Diria que, da forma mais correta. Um passo de cada vez. Sei que vai soar estranho, afinal, somos dois caras e ambos entendemos a necessidade dos nossos corpos. Mas... será que você se importaria da gente esperar mais um pouco antes de irmos para o próximo passo?

O Thiago realmente tinha o dom de me deixar constrangido. Só neguei com a cabeça. Não, eu não me importava de adiar nossa primeira vez para o próximo dia, para a próxima semana ou o próximo ano. Não, depois daquele pequeno vexame, onde meu corpo tomou a liderança e assanhado reagiu antes mesmo das preliminares. Tudo que eu queria naquele momento era poder esconder a minha cara, dormir e esquecer aquele momento vergonhoso.

Ele falou que eu poderia me trocar se eu quisesse e apenas me deixei levar. Troquei de roupa, coloquei um short curto, desses do tipo de jogador de futebol e uma camisa regata. Ele tinha trazido uma calça de moletom, colocou meias e uma camisa regata preta também. Não sabia exatamente o que se passava pela cabeça do Thiago, ou o que ele pensava em relação ao sexo. Apenas percebi que ele não seria como os caras normais, cujo o sexo vem em primeiro lugar. E eu não estava decepcionado com aquilo.

Escovamos os dentes juntos, empurrando um ao outro para usar o espaço da pia. Depois deitamos juntos. Ficamos abraçados, nos beijando, só ouvindo ele falar que queria me levar para conhecer sua mãe e sua irmã, eu concordei. O sono veio e nos levou por completo.

Continua...


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