Entre sem bater - Para Shana Black Rx escrita por Amigo Secreto


Capítulo 1
Capítulo 01 – Mesmo se a porta estiver trancada?




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— Não é apenas por 20 centavos!

Não foi bem um grito, mas a exclamação em tom imponente e o barulho de punhos fechados batendo sobre a mesa, fizeram um silêncio sepulcral se instaurar dentro da sala de aula.

Meu sono se esvaiu no mesmo instante. Estava acostumado a cochilar mesmo com todo o barulho de dentro da sala, as conversinhas paralelas e a voz do professor tentando sobressair as pequenas conversas. Levantei a cabeça devagar e direcionei meu olhar ao foco da atenção de todos: a fileira do canto direito da sala. E lá estava o Thiago, de pé, com a cadeira afastada e com as mãos espalmadas em cima da mesa. Seus óculos haviam escorregado para a ponta do nariz, dando a estranha sensação que iriam cair, talvez devido à maneira abrupta com que ele havia se levantado pra fazer aquela exclamação.

Logo com quem ele tinha que se meter? O professor Roberto, disciplina de Legislação Trabalhista e Previdenciária. O cara é do tipo conservador. E olha que nem velho ele é. Talvez esteja beirando os quarenta. O professor Carlos, de Matemática Financeira, um senhorzinho de quase setenta anos, tinha ideias muito mais liberais que o Roberto. O que prova que idade não faz o conservadorismo.

Não demorou para que o professor Roberto replicasse a exclamação do Thiago e recomeçasse a discussão de forma fervorosa, cada um defendendo seus pontos de vista com uma paixão avassaladora. O Thiago falava a favor das passeatas que estavam ocorrendo em São Paulo e no Rio de Janeiro contra o aumento da tarifa de ônibus. Assunto do qual eu tinha conhecimento, não por estar de olho nos noticiários, mas porque aquele era o assunto do momento nas redes sociais, principalmente no Facebook. Já o professor Roberto, que também parecia seguro do seu posicionamento, defendia o ponto de que a segurança e o patrimônio público estavam sendo afetados. Que esse tipo de manifestação era abertura para vândalos destruírem a cidade e saquearem o comércio e os caixas eletrônicos e que o prejuízo não compensava a causa.

Eu vi o rosto moreno do Thiago ser coberto por um vermelho intenso, suas mãos fechadas em punho tremiam sobre a mesa. Então o vi se endireitar, arrumar os óculos no rosto, encarar o professor Roberto e responder com uma calma que ele deve ter buscando no mais profundo do seu íntimo.

— Eu não acredito que o senhor se considera “educador” com uma linha de raciocínio tão limitada.

Não entendi o porquê, mas aquela resposta fez meu estômago comprimir. Parecia que ninguém na sala respirava. Olhei para o lado e vi a Laura com os olhos arregalados na minha direção. Ela parecia dizer com aquele olhar: “agora é que o bicho vai pegar”.

Mas não pegou da forma que imaginávamos. Calmamente o professor Roberto caminhou até a porta da sala e a abriu. E, tentando retomar sua postura de “educador”, pediu calmamente:

— Por favor, Thiago, me espere na coordenação. Vamos continuar essa conversa lá.

Thiago apanhou a mochila e os cadernos em cima da sua carteira, se levantou e, com a cabeça erguida, saiu da sala sem dar uma palavra.

Eu não fazia ideia qual era a matéria que o Roberto estava explicando, também não fazia ideia de como eles haviam chegado naquele assunto, mas sei que a curiosidade estava me consumindo. O professor voltou para o quadro e, como se nada tivesse acontecido, deu continuidade a explicação, provavelmente iniciada antes do estopim daquela discussão. O silêncio que havia se instituído na sala se prorrogou até o Roberto concluir a explicação, olhar no relógio e dar a aula por encerrada cinco minutos antes, nos deixando como tarefa os exercícios da página 166 a 170 da apostila.

Foi o professor desejar “boa noite” e sair da sala, que as conversas retomaram em sua potência total, como se alguém tivesse, de repente, erguido o volume no máximo.

Olhei para Laura desesperado, mas antes que pudesse perguntar para ela o que diabo tinha acontecido, a sirene anunciando o intervalo soou e somou-se com o barulho de conversas e o som de cadeiras e carteiras se arrastando.

— Tá impossível ouvir alguma coisa, Caio. Vamos. A gente conversa lá fora — declarou uma afobada Laura, pendurando a bolsa no ombro, apanhando meu punho e me puxando para fora da sala.

...

Três toques de chamada e mais uma vez a voz anunciando que a ligação estava sendo redirecionada para caixa de mensagem se fez audível, para minha indignação. Desliguei antes que viesse aquela mensagem irritante: “deixe uma mensagem após o sinal”. Certamente essa mensagem havia sido elaborada por alguém que fora rejeitado muitas e muitas vezes ao ponto de fazê-lo criar uma fórmula para que todas as pessoas rejeitadas no mundo passassem por sua mesma dor e angústia.

Aquilo também era um presságio de que eu deveria parar de marcar encontros pela internet e procurar alguém conforme os conselhos da Laura: “Que tal o bom e velho convencional? Já pensou em chamar alguém pra sair?”

Parecia tão simples vindo da boca dela. Mas como?

Nunca tive facilidade em identificar homossexuais apenas com o olhar. E aqueles que ficavam evidentes normalmente não faziam meu tipo.

— E aí, Caio?

Ao ouvir a voz da Laura nas minhas costas eu me apressei em guardar o celular no bolso da calça.

— Oi, Laurinha.

— Trouxe enroladinho de presunto e mozzarella, não tinha mais risole de frango com catupiry — ela disse, sentando-se do meu lado na escada de mármore e estendendo o saquinho branco com os salgados. — O babaca enorme na minha frente pediu seis de uma vez e sobrou só um na estufa. Você acredita que alguém consegue comer seis risoles de uma única vez?

— Ele poderia estar comprando para os amigos como você? — eu sugeri.

— Com aquele tamanho todo? Duvido, meu bem.

— Porque você não trouxe o último então?

— Eu não ia comer sozinha e deixar você passando vontade na minha frente, né, Baby?

Balancei a cabeça negativamente e apanhei o enroladinho no saquinho com o guardanapo.

— A gente poderia dividir, sua boba — eu disse já dando uma boa mordida no salgado, sentindo minha desilusão sendo aplacada junto com a fome.

— Aff! Eu não pensei nisso. Que cabeçuda! — Ouvi a Laurinha se auto-recriminar, dando um tapa na própria testa. Ela deixou a bolsa entre as pernas, no degrau abaixo ao que ela havia sentado e estendeu a lata de Coca-Cola na minha direção. — Abre. Não tô a fim de estragar as unhas que fiz hoje a tanto custo na hora do almoço.

— Foi na Débora? Deixa eu ver.

— Não, foi na Sônia mesmo — ela respondeu, estendendo a mão direita aberta na minha direção. — A Débora estava sem horário. Mas a Sônia não “comeu” tanto minhas cutículas dessa vez.

— E ficaram bem feitas — eu observei e abri a lata de Coca, fiquei segurando enquanto a Laura apanhava o salgado dela dentro do saquinho. Já tinha acabado de detonar o meu. — Gostei da cor também, é verde escuro?

— Isso. É um verde novo da Colorama — ela explicou, mordendo o enroladinho. — A Sônia perguntou de você. Quer saber com quem você está traindo ela, já que faz tempo que você não marca pra fazer a unha.

Tive que rir.

— Se ela soubesse da minha situação financeira...

— Eu que o diga, você tá sempre chorando no meu ombro, né? Mas obviamente que não falei isso para elas. Disse só que você é um boy-magia que sabe se virar muito bem sozinho e só vai ao salão quando tá sem tempo.

— Obrigado por defender minha pele, Laurinha.

Desta vez foi a Laura quem riu.

Eu gosto muito da Laura. Apesar de parecer ela está longe de ser do tipo de garota patricinha, mas é vaidosa dentro da medida necessária. Duas vezes por mês ela troca o horário de almoço por uma manicure e a depiladora. Eu sei disso, porque além de frequentarmos a mesma faculdade e a mesma sala de aula, nós dois trabalhamos no mesmo escritório de contabilidade.

Considero a Laura muito bonita, mesmo sendo gordinha. Ela sempre atrai olhares masculinos por onde anda. Morena clara, busto volumoso, cabelos longos e ondulados — que graças aos reflexos lhe rende o adjetivo de “loira” — são alguns dos atrativos que chamam atenção dos homens para ela.

Além disso, a Laurinha é do tipo de mulher segura, bem humorada, inteligente, gosta de ler e navegar na internet, tem uma boa postura por ser alta e estar sempre de social. Se eu fosse hetero, e se a Laura não fosse comprometida, quem sabe até rolaria algo entre a gente.

— E aí, quem foi o escroto da vez? — ela interrompeu meus pensamentos ao terminar de comer, me fazendo desistir do nosso relacionamento imaginário.

Fora que, ouvir aquela pergunta, feita daquela forma pejorativa, me fez encolher os ombros.

— Do que você tá falando, Laurinha?

— Não tente me enganar, Sr. Caio — ela já foi me repreendendo, enquanto retirava a lata de Coca da minha mão. — Eu sei que você está tentando me despistar. Mas eu sou viva, Baby. Vamos, desembucha. O que aconteceu no encontro de ontem? Percebi você meio amuado o dia inteiro. Não me diga que o cara foi um babaca?

Confessar que meus meios não davam resultados era bem mais difícil do que alegar que o cara havia sido um babaca. Porém, o olhar vivo da minha amiga sobre mim, enquanto ela sugava a coca pelo canudinho que ela havia apanhado de dentro sacola de salgados, me fez suspirar fundo e admitir de uma vez por todas.

— Não posso nem dizer se ele é um babaca ou não, ele simplesmente me deu um bolo.

A Laura parou de sugar o refrigerante de repente e o canudinho escapou da sua boca. A reação dela não me ajudou. Estava preparado para ouvir um belo sermão do tipo: “já disse que encontros marcados pela internet é idiotice!”. Mas desta vez a Laurinha só largou o refrigerante de lado, enfiou a mão dentro do saquinho e buscou o outro salgado o qual apanhou sem guardanapo mesmo e o abocanhou.

— Sinto muito — murmurou, depois de um tempo mastigando.

Aquele “sinto muito” foi difícil pra mim. Ele deixava entender que, mesmo que a Laura não botasse fé nos meus encontros marcados virtualmente, ela carregava a esperança de ouvir algum dia uma reposta positiva vinda deles.

— Não faz essa cara. Fui eu quem levou o bolo — tentei animá-la, pedindo a latinha de refrigerante. Tomei um gole grande, usando o mesmo canudo dela, queria empurrar aquele nó estranho que estava se fazendo na minha garganta.

— Mas as férias do meio do ano ta chegando de novo. Eu não gosto da ideia de você passando as férias sozinho, Caio. Pelo menos aceita viajar comigo.

— Não.

— Que resposta rápida foi essa?

— Não me dou bem com fazendas, Laura. Acho monótono. Ainda por cima, é a sua família e não a minha.

— Então vá passar com a sua — ela rebateu.

— Nem pensar. Eu já te expliquei como é a minha família. Não tem como eu passar férias agradáveis ao lado deles. E são apenas duas semanas, não vou morrer se ficar sozinho. Além disso, eu não vou tirar férias do serviço agora em julho como você.

— Eu tinha me esquecido desse detalhe.

— E olha que nem é loira de verdade!

Rimos e eu aproveitei o momento de descontração para mudar de assunto.

— E aquela do Thiago dentro da sala de aula, hein? Ele é sempre tão comportadinho, nunca imaginei que ele fosse peitar o Roberto daquele jeito.

— Isso por que você não viu o começo da discussão, eu estou com o Thiago e não abro mão. Aquele professor é um babaca. Se ele receber alguma punição e precisar que alguém interceda por ele na Coordenação, eu vou.

— Mas, Laura, esse assunto nem diz respeito a nossa cidade. É coisa que ta acontecendo em São Paulo e no Rio.

— Larga de ser tapado, Caio! Tem a ver com a gente sim. Tem a ver com o Brasil. Com a corrupção brasileira. Do povo cansado de ser explorado. Eu estou compartilhando tudo que está rolando. Você não está lendo?

— Sim, mas... — a verdade é que eu nem estava lendo nada daquilo.

O sinal terminando o intervalo soou e dei graças a Deus que eu não precisava mais me explicar.

— Temos questionário valendo ponto hoje! — a Laura anunciou de repente.

— Que questionário?

— Você foi embora antes da aula acabar ontem. Esqueci de te avisar que o professor Rubens vai dar um questionário valendo ponto hoje. E agora? — ela elevou as mãos na cabeça, fazendo a situação parecer mais desesperadora do que realmente era.

— Tá. Tudo bem. É de consulta, não é? — eu levantei primeiro e estendi a mão para ajudá-la a se levantar.

— Mas será em dupla. — Ela aceitou minha mão e eu a puxei, assim que a Laura ficou de pé ela apanhou a bolsa no chão e voltou a se explicar, enquanto subíamos a escadaria. — Ele pediu para definirmos ontem mesmo as duplas e que não poderia ser com quem não estava presente, acabei aceitando fazer com a Dafne.

Eu revirei os olhos, sabia que ela estava preocupada comigo. Medo de que eu a culpasse por ter que fazer o trabalho sozinho. Como se eu fosse capaz de fazer isso. Mas esse era um dos motivos que me fazia gostar tanto da Laura: seu jeito estranho de mostrar que se preocupava.

— Relaxa, Baby! — Joguei o braço esquerdo por cima dos ombros dela e sorri. — Eu dou conta.

— Como? Você é péssimo em Legislação Tributária.

— Na verdade, a Lei tributária do nosso país que é uma merda — continuamos discutindo, com os ânimos menos exaltados.

...

Mas foi entrar na sala para perceber que eu estava mesmo encrencado: as duplas haviam se formado rapidamente. E, obviamente, os que tinham faltado, não demoraram arrumar seus pares. Sentei na cadeira enquanto a Laura me seguia com seu olhar de cachorrinho morto.

— Nós vamos soprar as respostas pra você, tá, Caio? — ela cochichou e eu fingi que não a ouvi, porque o professor Rubens estava olhando as duplas e por algum motivo seu olhar havia se detido em mim.

— Está sem par, Caio Henrique?

Odeio quando me chamam assim, me faz lembrar a minha mãe e quando ela me chamava pra me dar bronca.

— Estou, senhor — respondi, o que já era bem óbvio, só faltava ele perguntar se eu iria fazer sozinho.

— Vai fazer o teste sozinho?

Não, professor, eu vou fazer com a Britney Spears. Eu tenho outra opção?

— É, né, professor. Se não tem mais ninguém sem par... — Tentei soar de uma maneira não grosseira, mesmo assim os meus colegas riram.

O professor só me olhou por cima dos óculos de aro fino e antes de me dar uma réplica ferina, ele, eu e todo restante da sala, se voltou para porta e para o rapaz que entrava.

O clima antes descontraído ganhou certa tensão, era o Thiago. Obviamente o maldito do meu estômago apertou. Não entendi bem o sentido daquela sensação, mas só me veio algo em mente. E em seguida esse ‘algo’ se concretizou.

Movendo somente a cabeça para direção do aluno, ainda segurando o maço de questionários em um dos braços, o professor perguntou:

— Está atrasado, Thiago César?

A sala inteira caiu na gargalhada pelo professor novamente estar perguntando uma pergunta cuja resposta era óbvia. Claro que o Thiago não entendeu e não achou graça. Ele continuou sério, parado na frente da sala, ainda perto da porta, encarando somente o professor.

— Desculpa aí, professor. Estava resolvendo um problema na coordenação. Posso?

Foi nesse instante que meu estômago apertou pra valer, o professor apontou a cabeça na minha direção e respondeu:

— Sim. Teremos um questionário valendo nota. Sente-se com o Caio Henrique. Ele é o único sem par. Vou distribuir os questionários.

Depois de dizer isso o professor Rubens seguiu para a primeira dupla da primeira fileira da sala e passou a distribuir o caderno de questões, totalmente alheio a minha tensão e a contorção desordenada dentro do meu estômago.

Estávamos no quarto semestre de Contabilidade, muitos colegas já haviam desistido e por isso a sala não estava em sua lotação completa. Sempre sobravam carteiras em alguns cantos e, por sorte, tinha uma na fileira ao lado da minha. Por isso o Thiago nem passou pela sua carteira, a segunda do canto esquerdo da sala, entrou direto na fileira do meio, onde estava a carteira que eu mencionei, e despejou a mochila sobre ela. Depois empurrou a mesa para o lado da minha, sentou-se e me cumprimentou com um chocho: “e, aí?”, sem sequer olhar nos meus olhos, enquanto abria o zíper da mochila.

— Beleza, e você? — minha resposta saiu no automático, um reflexo do cumprimento desinteressado dele.

No entanto, o Thiago ficou em silêncio por um instante, enquanto retirava a apostila e o caderno de dentro da mochila. Depois desse instante, ele se voltou para mim e respondeu, com um grande sorriso no rosto.

— Agora estou melhor — afirmou.

Eu não sei exatamente o que aconteceu, mas meu coração acelerou. Acredito que ele havia entendido que eu estava perguntando sobre a confusão que rolou mais cedo. De qualquer forma, não importava o mal entendido, a única coisa que eu soube naquele momento, é que fiquei perdido naquele sorriso. Puta merda! Como ele tinha um sorriso perfeito. Os lábios do Thiago eram lindos, carnudos, rosados, bem desenhados. Os dentes eram bem cuidados, os caninos salientes. Ele estava com uma barba por fazer e aquilo que mais me encantou e, que eu não havia notado antes, eram os olhos por trás das lentes dos óculos. Verdes. Os olhos do Thiago eram verdes.

— Você tem uma caneta aí, cara? Eu acho que larguei meu estojo em casa.

— C- claro.

Apanhei o estojo embaixo da carteira, tirei uma Bic preta e entreguei para ele.

— Valeu — agradeceu e sorriu novamente, o que fez o meu coração assanhado disparar mais uma vez.

Eu não conseguia entender.

Realmente não conseguia entender como eu nunca havia reparado nele antes. Tá. Na verdade eu sei. O Thiago se veste mal pra burro. Normalmente calça jeans surrada, tênis All Star, uma camisa de malha fria, manga-longa (cores sóbrias) por debaixo de outra camisa de manga-curta (sempre na cor preta) e de estampas diversas, nas quais nunca reparei bem o desenho, mas imagino ser de bandas de rock, como aquela que ele estava vestindo no momento e estava escrito: “Ledd Zeppelin”.

Eu acho que o Thiago tem moto, já o vi entrando na sala de capacete, normalmente quando chega atrasado, talvez por não encontrar vaga no estacionamento interno da universidade e ter que deixar a moto na rua. O que justifica também o uso de manga longa, andar de moto a noite em Campo Grande sem agasalho era pedir pra pegar um resfriado na certa.

De restante, o cabelo do Thiago era o que mais estragava sua aparência. Deus do céu! O homem dessa era não usa mais cabelo comprido, mas acho que alguém se esqueceu de avisá-lo. Além de comprido, o cabelo dele deve medir até os ombros, — não dá pra ter certeza do comprimento por que eu nunca vi o Thiago de cabelo solto antes, só amarrado com um elástico rente a nuca — mas era notável que seu cabelo não era bem cuidado, pois quando não estava brilhando de oleosidade, os fios quebrados surgiam exibidos, espetados para cima. Acho que se ele usasse um cabelo com um corte curto, roupa menos folgada no corpo, ele ficaria até atraente.

De repente o professor depositou o caderno de questões em cima da nossa mesa, fazendo com que eu me sobressaltasse e só então reparasse que estava mordendo a tampa da caneta que estava na minha boca. Aliás, “depositou” foi um termo delicado, na verdade o professor Rubens jogou o caderno do alto e nos olhou desconfiado, por cima dos óculos. Então, sem dizer nada, passou por nós e continuou a distribuição.

Eu olhei para o Thiago e ele só ergueu os ombros, riu novamente e balançou a cabeça negativamente, como se dissesse “não ligue, ele é louco”.

Assim que o professor terminou a distribuição pediu que começássemos e não nos esquecêssemos de colocar o nome.

O Thiago sugeriu que dividíssemos as páginas, eram doze questões, seis para cada. Eu não gostei muito da ideia, já que sou péssimo na matéria, mas aceitei, óbvio, não estava a fim que ele me achasse burro.

Mas foi em vão, logo de cara eu pulei a primeira questão, não conseguia achar a resposta de maneira alguma. Fui para próxima pergunta, a qual dei uma resposta meia boca e congelei na terceira. Olhei o Thiago de soslaio e o notei muito empenhado no questionário. Exatamente como ele era nas aulas: calado, sério e concentrado. Ele já havia virado a primeira página com as duas primeiras questões do exercício e iniciava a resposta da terceira. Foi então que notei o fio preto vindo de dentro da blusa dele e o zumbido discreto que vinha do outro lado do seu ouvido. Ele conseguia ouvir música e estudar ao mesmo tempo?

Fiquei um pouco impressionado e voltei para minha parte da tarefa, apaguei o que tinha escrito na segunda questão e comecei de novo. Mas por mais que eu tentasse, eu não conseguia achar nenhuma resposta digna. Virei para o lado e procurei pela Laura. Ela estava conversando animadamente com a Dafne, apesar de que o assunto parecia ser algo paralelo a matéria. Dei uma sondada ao redor e notei que as duplas folheavam a apostila juntos, discutiam. Esse era o sentido de se fazer trabalho em dupla: a cooperação entre colegas. Seria assim se eu tivesse fazendo o trabalho com a Laura-traidora que disse que me sopraria as questões e agora estava tão entretida com a Dafne que havia esquecido que eu existo.

E eu aqui, sem saber o que fazer — ou responder no questionário — com o esquisito de sorriso mais bonito do mundo, bem no seu dia de fúria.

Não vou mentir. Apesar de o Thiago fazer o tipo “bad-boy” e “antissocial”, seu belo sorriso me fez acreditar, por um instante, que ele seria um cara mais acessível. Mas acho que me enganei. A divisão da tarefa e os fones em seus ouvidos me faziam acreditar que ele não queria muita conversa comigo.

— Terminei — ele anunciou de repente, se voltando para mim, mas não me dando tempo nem de admirar sua agilidade, direcionou um olhar desconfiado para a minha parte da tarefa.

— Tá tendo dificuldade?

Eu não queria confessar, mas o olhar dele era penetrante, então soltei os ombros e confessei.

— Desculpa, cara. Sou péssimo nessa matéria.

— Então dá aqui.

— Não — a resposta saiu da minha boca rapidamente, sem quem eu percebesse. — Eu vou conseguir. Não seria justo.

O Thiago me encarou em silêncio, mas depois de algum tempo ele respondeu:

— Você quem sabe.

Eu sou um babaca. É claro que eu não iria conseguir. Aquela bendita matéria não me entrava na cabeça. Mesmo assim deixei meu orgulho idiota falar mais alto e iria colocar a perder a minha nota e a dele. De qualquer forma, tentei. Tentei de verdade. Mas quando percebi que não iria sair do lugar, voltei atrás.

— Não dá. Me ajuda.

— Me dá aqui.

— Não desse jeito. Me ajude a entender, eu vou respondendo.

Novamente o Thiago me encarou. Eu gelei. Mas não demorou e ele fez que sim com a cabeça e em seguida pediu para que eu lesse a pergunta.

Em vários momentos eu me distraí ao tirar os olhos do que ele explicava para observar seus lábios se movendo perto de mim, e quando eu disse “hã?” pela terceira vez e ele riu.

— Qual é a graça? — eu ainda quis saber.

— Sua dificuldade é sua falta de atenção. Você de repente está concentrado, mas no segundo seguinte parece que sua cabeça está fora de órbita.

Aquela observação me deixou tão, tão sem graça, que devo ter ficado vermelho.

— Foi mal.

— Não precisa fazer bico — ele brincou. — Você me lembrou minha irmã de quatro anos agora. — ele riu e eu ri bobamente por ter sido comparado com uma fofa garotinha de quatro anos. Então o Thiago retomou o semblante sério e a explicação. — Vamos tentar de novo, está vendo esse trecho... — ele me mostrou na apostila dele e quando me aproximei para olhar de perto, acabei me encostando ao braço dele.

Foi nesse instante que eu consegui estragar o princípio do que poderia ter sido “algo”. O Thiago segurou no meu ombro e me empurrou de volta para onde eu estava.

— Não encosta, cara — ele pediu. — Melhor manter distância. Olha aí na sua apostila — ele complementou, apontando para a minha mesa.

— Foi mal — repeti, querendo de verdade voltar para o momento anterior a esse.

Sem responder meu pedido de desculpas, o Thiago voltou à explicação. Mas eu não ouvia mais. Depois daquele momento constrangedor a única coisa que eu queria era terminar aquela maldita tarefa o mais rápido possível e ir embora. Fiquei sério. Assentindo para tudo que ele falava, me esforçando para entender. Mas quando o professor recebeu os primeiros exercícios prontos, dizendo que quem havia terminado poderia ir embora, eu me rendi, entreguei as questões que faltavam e permiti que ele as respondesse. O Thiago concordou e foi rápido, só faltavam duas. Ao concluir, eu fui o primeiro a levantar.

— Pode entregar — avisei, apanhando minhas coisas.

— Falta seu nome.

— Não precisa, você respondeu tudo sozinho — eu disse aquilo com um engasgo querendo embargar minha voz, então saí da carteira.

— Caio, me espera no estacionamento — ouvi o pedido da Laura quando estava ultrapassando a porta.

Respondi com um sinal de joia e saí da sala o mais rápido que pude, antes que as lágrimas descessem.

Fazia muito tempo que eu não chorava, desde quando decidi que não iria mais sofrer por ser estranho e sentir atração por garotos ao invés das garotas. Nem quando meus pais, da maneira pior que pode existir, descobriram que eu era gay.

Fiquei com raiva de mim mesmo. Daquele sentimento de frustração que se apossou do meu interior sem pedir permissão. Raiva principalmente de não entender porque as lágrimas simplesmente vieram. Afinal, eu sequer havia sido rejeitado por alguém que eu estava a fim.

Cheguei ao estacionamento em poucos minutos. Encontrei o uno branco da Laura com um pouco de dificuldade, depois de identificar o adesivo de “Baileiros a bordo”. Diferente de quando normalmente saímos no fim da aula, o estacionamento ainda estava abarrotado de carros e uma caminhonete daquelas gigantescas havia encoberto o uno. Talvez fosse o nervosismo, mas graças a essa confusão, consegui cessar o choro.

Daquele buraco que chamavam de estacionamento, fiquei olhando para cima, o estacionamento de motos ficava perto da guarita principal. Dois motoqueiros saíram quase ao mesmo tempo, imaginei que um deles fosse o Thiago. Mas não queria mais saber dele. Joguei meus cadernos em cima do capô do carro e cruzei os braços, sentindo um friozinho chato.

“De moto deve ser bem mais frio” eu pensei e quis me espancar por isso. O que eu queria? Estar na garupa dele? Eu ainda estava pensando no maldito que não gosta que outros caras encostem nele? Bati com a testa na lataria de tanta raiva. Raiva não só do babaca do Thiago, mas por eu ter sido idiota suficiente e não ter pegado a chave do carro com a Laura e agora estar atormentado, frustrado e com frio!

— Por que está demorando tanto, Laurinha?!

Continua...


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