Gaunt escrita por Noah Marmallade


Capítulo 1
O Dia Em Que O Natal Se Perdeu




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/462087/chapter/1

Houve um certo tempo em que criaturas fantásticas e humanos viviam em paz.

Eu lembro esse tempo porque eu estava lá. Estava aqui, na verdade, nos fundos da oficina do Papai Noel, num quartinho de madeira cuja porta está quase sempre trancada do lado de fora, um quartinho ao qual ninguém dá muita atenção, que poderia passar desapercebido ao ser confundido com um vulgar armários de vassouras.

A primeira vez que entrei foi quando o bom velhinho vestiu pela primeira vez seu gorro. Quando eu, Alathea, e onze outros duendes imortalizamos Nicolau de Mira, no ano 342. Todos estavam lá. O rosto peludo e cinzento do Coelho da Páscoa; o velho Ano Velho e o bebê Ano Novo; a Fada do Dente, atarefada e minúscula, mas que mesmo assim arrumara algum tempo para aquela celebração; a personificação do frio e da geada, Jack Frost; o Cupido deus do amor. E também os outros duendes, os quais nunca mais vi, o que é irônico porque eles literalmente trabalham há poucos metros de mim. Duendes normalmente são criaturas enfezadas e irritadas, mas não aqueles.

Já eu e os outros onze duendes que escolheram o quartinho de madeira dos fundos da oficina do Papai Noel somos diferentes. Somos pequenos, menores que os duendes normais, extremamente atarracados, e não falamos. Poucas vezes usamos nossas vozes. Também não comemos nem tomamos luz do sol. Os outros duendes da oficina não lembram que existimos porque apagamos as memórias deles, assim como as das outras criaturas que viram a imortalização de Noel. A dele também. Ninguém sabe mais que existimos, e é exatamente por isso que eu tive que tomar uma decisão que abalou as estruturas do mundo para sempre.

Houve um tempo em que todos os humanos sabiam da existência das criaturas mágicas. Eles certamente não sabiam como o Coelho da Páscoa conseguia atravessar um continente inteiro em apenas um dia, como o Papai Noel o fazia com o mundo todo no mesmo período de tempo ou como suas renas voavam, como a Fada do Dente estava sempre lá para pegar os pequenos incisivos e malares em troca de uma moedinha, mas eles sabiam que isso acontecia. Eles viam Jack Frost deslizar através das geadas todo inverno, viam fadas nos pequenos jardins e semeando campos. A magia estava por toda parte, e o Monstro do Lago Ness e o Yeti não tinham a necessidade de se esconder dos olhares dos humanos. Porque todos sabiam que eles existiam, não apenas as crianças, e assim as fábulas e crenças superavam o tempo e atravessavam gerações e gerações de descendentes como verdades. Isso durou até pouco tempo. Mais especificamente, até o ano de 2014.


A história começa quando eu detectei uma falha na Existência. Havia um desequilíbrio perturbador na magia que fluía no mundo. Através de projeção astral, empurrei meu espírito para fora do corpo e subi ao céu. Cheguei a uma grande teia de fios de prata que se ligam a todas as criaturas mágicas e os analisei. Quando há alguma intranquilidade em uma das criaturas, seu fio treme e escurece.

De fato, havia desequilíbrios, não apenas em alguns fios, mas em vários por toda a teia. O do Cupido zumbia violentamente. Eu sabia que ao final dele, que estava por terminar numa pequena vila do sul da França, uma briga ocorrera por ciúmes. Ela terminou em morte. Um outro fio, ramificado em milhares de outros, cada qual ligando-se às fadas, também tremia, oscilando entre um horrível verde-musgo e um negro pavoroso. A semeadura dos campos de trigo americanos estava perdida. O fio de Jack Frost balançava tanto que eu temia que fosse se romper. Uma terrível onda de frio viria. O Coelho da Páscoa deliberadamente apodreceu todo o estoque de uma lojinha de chocolates na Inglaterra que vinha a ser o único sustento da família. E o Monstro do Lago Ness acabara de devorar uma pessoa viva.

Eu voltei ao quarto, para os outros onze duendes. Sentamos em um círculo perfeito de doze criaturas mágicas, com pernas dobradas e mãos em diferentes posições. Alguns gostam de recostar-se, outros de pousá-las no colo, outros massageiam as têmporas. Todos com os olhinhos enrugados e fechados. Quase nunca abrimos os olhos. Vestimos túnicas negras e grossas. Somos todos anciões.

— Amigos — falei em alto e bom tom para garantir que todos ouvissem. Eu sabia que ninguém do lado de fora seria capaz disso. — Há uma terrível discrepância no mundo.

Um burburinho veio e logo se calou. Oblassë, um duende de cabeça pontuda, tomou a voz de todos:

— Diga-nos, Alathea. O que viste?

— Tremedeiras nos fios da vida. É meia-noite de 23 de dezembro. O mundo espera pelo Papai Noel. No entanto, se concedermos a magia necessária para as renas voarem e a velocidade que Noel precisará, nunca mais ouviremos falar dele. As bruxas reúnem-se secretamente desde fevereiro, e hoje seus fios estão absurdamente unidos. Jack Cabeça de Abóbora quase não apareceu no Halloween. Todos concordamos que foi um triste Halloween. Sabemos o que se passa com os feriados. É uma trapaceira e suja emboscada. Subam, amigos. Subam ao céu e vejam com seus próprios olhos.

Seus olhos embranqueceram. Em transe, com as bocas entreabertas e os corpos tremendo levemente, os onze duendes constataram a desordem. Quando voltaram, Savalee, o duende ao meu lado, baixinho e gorducho, guinchou sobre os próprios joelhos.

— Sim, sim. É verdade. Por que não avisamos a Noel?

— Porque somos lenda — eu falei. — Foi com o que concordamos. Ele não lembra-se de nós. Pensará que somos duendes normais pregando uma peça.

— E por que temos de nos meter? — resmungou Damin. — Não é nossa responsabilidade julgar as ações do livre-arbítrio.

— Não temos como deter as vontades do livre-arbítrio — falou Doore. — Mas isso interfere na relação entre humanos e criaturas mágicas. É perigoso. Humanos são extremamente sensíveis e irritadiços. Temos que consertar essa falha no tecido da Existência ou haverá guerra.

— Isso irá requerer influência externa — declarou Othon, de olhinhos muito azuis. — Teremos que reescrever a própria Existência ou teremos de lidar com uma provável hecatombe mágica universal. Alathea, você sabe o que fazer?

— Eu sempre soube. Mas alguém, por favor, terá de cuidar dos presentes.

Joguei a cabeça para o alto e entrei em transe. Lá estava eu novamente, no céu tempestuoso, cristalino e glacial do belo Polo Norte. A teia erguia-se firme acima de tudo como o céu do próprio céu, muitos e muitos quilômetros acima da terra, interpondo-se entre as realidades. Com minha mente, agarrei um dos fios, um bastante específico, o mais curto de todos. E, respirando fundo, apertei-o com toda a minha força até que se rompesse. E então deixe-me cair, cair e cair em direção à noite sombria.


Gaunt.

Essa voz o acordou. Essa voz feminina, sussurrante e assustadora. Não foi o crepitar da lareira da sala nem a forte nevasca que cobria as ruas lá fora. Mais neve significava menos dias de aula, mas neve demais significava dias inteiros preso dentro de casa sem nada para fazer. Com aquela onda de frio, parecia uma estupidez dormir na sala, mas ele tinha lareira. A lareira de tijolos quente e crepitante que parecia estar especialmente quente àquela noite, tão quente que ele pôde dormir no sofá em frente a ela sem problemas.

Aliás, precisava vê-lo.

As notícias chegaram logo pela manhã do dia 23 de dezembro. O porta-voz da oficina do Papai Noel comunicara-se com todas as agências de notícias do mundo para avisar que o bom velhinho havia desaparecido, e com ele todos os presentes. A oficina tinha uma câmara subterrânea usada para guardá-los, mas no dia 23 ela acordara vazia. A cama do Papai Noel ainda estava desarrumada, e ele não era de sair da oficina sem avisar a ninguém. Autoridades do mundo inteiro estava trabalhando para localizá-lo.

Mas as coisas estavam estranhas. Fadas recusaram a ajudar. Ultimamente, elas vinham recusando-se a fazerem até mesmo o que elas deviam fazer, que era cuidar da semeadura dos campos e do florescer dos jardins. Gaunt nunca mais conseguira achar nenhuma nas praças que costumava ir antes do grande frio. E falando nele, enquanto as fadas não trabalhavam, Jack Frost parecia estar trabalhando demais.

As bruxas também sumiram de suas vilas de Halloween da Inglaterra. Vez ou outra era possível ver uma delas varando o ar em suas vassouras, mas era só. Elas não falavam com mais ninguém. A indústria farmacêutica mundial estava enlouquecendo sem suas poções.

Mas Gaunt não se importava com essas coisas. Deitado no sofá em frente à lareira, tudo o que ele queria era ver Noel. Era claro que ele não havia desaparecido. Depois de tantos anos sendo pego desprevenido por crianças à espreita, o bom velhinho simplesmente decidira pregar uma peça em todas elas: fingindo ter desaparecido, ninguém o esperaria mais e ele poderia entregar todos os presentes em paz. O plano perfeito para enganar todas as crianças do mundo.

Ele não enganaria Gaunt. Para um menino de dez anos, achava-se bem esperto.

Assustado, levantou-se do sofá. Era dia 24 de dezembro, pouco antes da meia-noite. O Papai Noel deveria aparecer a qualquer momento, e na manhã seguinte a árvore de Natal estaria cheio de presentes. Fora um bom menino o ano inteiro. Mas aquela voz… aquela voz terrível que parecia estar dentro de sua cabeça… seria Noel?

— Papai Noel? — perguntou em voz alta à sala vazia.

Não, Gaunt.

Agora começava a ficar com medo. O leite e os biscoitos estavam em cima da mesinha, perto da lareira e da árvore de Natal. Intactos. Ninguém havia pisado ali ainda. E Gaunt não ouvira nenhum resfolegar de renas no telhado. Dizia-se que o Papai Noel conseguia descer pela chaminé mesmo quando a lareira estava acesa. Seria mesmo verdade? Talvez ele tivesse usando tanta mágica para esconder os presentes dos duendes que não tivesse mais nenhuma para proteger-se do fogo. Seria melhor apagá-lo?

Não faça isso, Gaunt.

Curiosamente, dessa vez não se assustou. A voz estava lá, realmente estava, e de repente era uma presença física, e não apenas uma coisa incorpórea.

— Quem é? — perguntou-se baixinho.

Eu sou você. Eu sou ele. Eu sou o tudo e o todo, Gaunt.

— O que… o que deseja?

Você. Eu desejo você, Gaunt.

Sentiu-se sonolento, tão sonolento que caiu no sofá, sem forças. Pensou ter ouvido a voz novamente antes de adormecer, mas foi apenas uma ilusão. Era sua própria voz, perguntando engroladamente o que desejava dele.


Quando acordou na manhã seguinte, o leite e os biscoitos continuavam intactos. A árvore estava vazia. A lareira havia se apagado e a sala estava gelada como uma tumba. Com os dedos tremendo, Gaunt ligou a TV. O mundo acordava sem presentes.

O dia 25 de dezembro de 2013 ficou conhecido O Dia Em Que O Natal Se Perdeu.

Era verdade, Papai Noel não voltara e os duendes estavam desesperados. A CIA e a Interpol vasculharam a oficina de cima a baixo, mas não encontraram nada. Até mesmo os óculos de ouro do Papai Noel, presente da Rainha da Inglaterra, estava intocado em cima de sua escrivaninha, junto a sua grande xícara de café. As roupas de Natal estavam no armário. As renas e o trenó estavam no lugar. Ele não poderia ter ido a lugar nenhum a pé, poderia? Não com toda aquela neve. Era o Polo Norte, afinal!

Havia outros problemas, também. Os campos de trigo de metade dos Estados Unidos haviam estragado. Havia neve no deserto do Saara e seca na Amazônia; furações na Europa e vulcões adormecidos em risco de acordar. A Mãe-Natureza era uma criatura excepcionalmente rara e poderosa que só aparecia aos humanos às vezes, e no momento não havia ninguém vivo que se lembrava da última vez, mas ela estava enlouquecendo.

De repente, a lembrança da voz da noite anterior bateu-lhe na cabeça como um martelo, inchando como uma bolsa cheia de vapor até explodir em pequenas reminiscências. Os arrepios, o seu nome, o eu desejo você

… Gaunt.

Era ela de novo. Gaunt não falou. Desligou a TV e sussurrou:

— O que você quer de mim?

Eu quero o impossível, Gaunt.

A televisão ligou-se sozinha. Os canais começaram a passar em cascata, um por um, cada um cada vez mais rápido, todos mostrando os desastres do mundo. A sequência ficou tão rápida que Gaunt ficou tonto.

— Não posso ajeitar isso. Não é culpa minha.

Venha a mim, Gaunt.

— Onde você está? Não posso ir a você. — Então parou e pensou um pouco. — Não, não irei. Você, venha a mim. Venha a mim agora.

Uma luz apareceu no ar. Uma luz pura, branca, tão forte quanto o sol, mas que não machucava os olhos. Na verdade, ela gostoso olhar para aquela luz, mesmo que Gaunt soubesse que não devia. Era um garoto intrépido e que não pensava muito antes de aceitar uma aventura, e aquela luz parecia aventura o suficiente.

Gaunt.

Uma figura apareceu na luz. Era uma duende. Uma duende pequena, com cabelos louros e espessos, olhos esverdeados e pele enrugada. Muito velha, mas parecia também muito nova, forte, saudável. Ela estava e não estava ali. Era nada mais que sua projeção.

— Quem é você?

Chamo-me Alathea. Sou a Terceira Anciã da Sociedade dos Anciões, que rege a Existência de forma pacífica desde o início dos tempos.

Por algum motivo, Gaunt sentiu que aquela era a primeira vez que algo daquele tipo estava sendo dito. Ela passava uma aura tão poderosa que era impossível não ser notada. Sua voz era forte mesmo que sussurrasse.

Como você vê, o caos a rege agora, e nós não temos poder para deter o livre-arbítrio das criaturas mágicas. Precisamos da sua ajuda para restaurar a paz no planeta.

— Como devo fazer isso?

Da luz, derivou-se uma forma quadrada. A forma escureceu e tomou proporções até que se solidificou no chão, bem em frente aos pés de Gaunt. Era um pequeno baú da madeira com juntas de ferro bem oleadas, como um baú pirata em miniatura. Abaixou-se e manuseou-o. Era leve como uma pena, mas firme como concreto.

— Você disse que as criaturas mágicas são os responsáveis?

Os feriados principalmente. Encheram-se de inveja e ira com o crescimento da importância do Natal. A maioria das crianças parou de dar valor à Fada do Dente ou ao Coelho da Páscoa. Em junho, reuniram-se secretamente para sabotar os feriados subsequentes e pôs a culpa no Papai Noel. O péssimo Halloween trouxe-lhes Jack Cabeça de Abóbora e as bruxas. O Ano Novo também foi influenciado. O tempo está passando mais devagar, o que faz as colheitas não semearem como deveriam, o que irrita a Mãe-Natureza. O Ano Velho não parece querer largar o posto para dar lugar ao Novo. Armaram uma emboscada para o Papai Noel no dia 23 de dezembro, algo tão perigoso que tivemos que intervir. Os seres mágicos mais poderosos do mundo estão abrindo um rasgo enorme no tecido da Existência, e se ele não for reparado logo, as consequências podem ser catastróficas.

— Quão catastróficas?

Nós anciões poderemos ter que recriar o universo do zero.

Gaunt ficou subitamente alarmado. Não sabia que o equilíbrio do mundo era tão delicado, e também nunca ouvira falar na Sociedade dos Anciões.

— Quais seus poderes? O que você pode fazer?

Não há quase nada na Existência que não possamos fazer, indiferente do local ou época que estejamos. Somos oniscientes, onipotentes, onipresentes, onibenevolentes e invencíveis. Dividimos entre nós doze as rédeas do universo, monitoramos toda a realidade física e mística, todo o espaço e tempo. Não há nada que alguém possa fazer que possa nos afetar. Com a força de nosso pensamento coletivo somos capazes de destruir, criar, manipular, transmutar ou recriar qualquer coisa na Existência.

Tudo aquilo só serviu para irritá-lo.

Então por que é que você precisa da minha ajuda?!

Porque existe algo mais poderoso que a onipotência. E esse algo se chama livre-arbítrio.

— Isso não faz sentido.

A onipotência não faz sentido por si só. O livre-arbítrio só pode ser combatido com livre-arbítrio, e isso é uma coisa que nós não temos, pois apesar de controlarmos os destinos de todos os seres do universo, não podemos controlar o nosso próprio. Não podemos interferir dessa forma. Mas você, Gaunt, você pode.

— Eu… eu não entendo. Não sei como posso ajudá-la.

Eu direi. Tudo o que deverá fazer é levar esse baú ao Polo Norte. Preciso que entre na oficina do Papai Noel e deposite o baú em cima da cama de Noel até o dia 14 de janeiro. Quando estiver lá, abra o baú. Se você abrir o baú antes, tudo estará perdido. Será o fim dos tempos.

— Por que até o dia 14 de janeiro?

Porque o equilíbrio mundial chegará a seu limite nesse dia, e é aí que interviremos. As criaturas mágicas perderão o corpo e suas almas voltarão à influência do cosmos. Tudo o que existe ou um dia existiu será apagado. O universo vai voltar aos seus primórdios.

— Como você quer que eu chegue ao Polo Norte?

Isso é com você. Lhe daremos algumas dádivas para ajudá-lo. Você tem 21 dias antes que os anciões decretem o apocalipse. Lembre-se de não abrir o baú, nem deixar que ninguém o faça. E cuidado com as criaturas mágicas. Não confie em nenhuma. O mundo está em caos e elas não têm nada a perder. Boa sorte, Gaunt.


Quando Gaunt pôs o pé para fora de casa, não sentiu frio, mesmo que a neve se acumulasse em mais de cinquenta centímetros sobre o chão. Os galhos das árvores estavam pontiagudos como estalagmites de madeira; o vidro dos carros havia se tornado cristal. Embora o céu estivesse claríssimo e sem nuvem alguma e o sol ardesse como uma moeda brilhante, não havia indício algum de que a neve derreteria. Também não havia ninguém nas ruas.

E Gaunt não sentiu frio. Talvez fosse uma das dádivas que os anciões lhe deram. Poderiam terem-lhe dado o poder de voar ou de se teletransportar, mas não. Eles lhe deram a imunidade ao frio. Nada que um casaco não resolvesse. Falando em casaco, o baú que Alathea lhe dera estava bem fechado no bolso interno do seu.

E por onde começar?

Dizia-se que o frio e a neve trazia uma série de espíritos de gelo que ajudavam os humanos, mas a maioria desses espíritos eram ignorados por causa do Natal. Eles provavelmente estavam contra o Papai Noel também e não tinham motivo para ajudá-lo. E a anciã o avisara para não confiar nas criaturas mágicas. Mas como chegar ao Polo Norte sem mágica quando todo o lugar estava cercado por duendes e agentes humanos?

Só havia duas escolhas. Já que por terra era impossível, ele precisaria ou ir pelo ar, ou ir pela água. Pelo ar não era possível sem magia, e apesar de Gaunt estar imune ao frio, não estava ao cansaço, de modo que não podia simplesmente nadar até lá. Tinha apenas 21 dias. O Polo Norte ficava a milhares de quilômetros.

— Preciso voar — falou sonhadoramente. Seguiu caminho abaixo na rua apenas para encontrar as adjacentes vazias. Todas as casas tinham janelas vedadas, algumas até com tábuas. As pessoas estavam deixando indo embora. As criaturas mágicas haviam sumido. O pesadão lençol branco que cobria tudo não parecia maravilhoso e lindo como nos outros invernos, mas malicioso. Eles logo, logo não dariam mais conta de tirá-lo da rua e então tudo estaria coberto.

Gaunt chegou à conclusão de que a raça humana se extinguiria antes que os anciões decretassem o fim do mundo.

Viu uma silhueta no céu, primeiramente pequena, mas depois aumentou à medida que vinha se aproximando. Era um cavalo alado, brilhante como a prata. Pousou pesadamente numa praça ali perto, indo beber água na fonte. Semelhantes a Pégaso, que com uma patada criou a fonte Hipocrene, no Monte Hélicon, há milhares de anos, a maioria dos cavalos alados gostava das fontes. Alguns também falavam e a maioria gostava dos humanos. Os que não gostavam iam viver reclusos nas montanhas. Mas aquele estava no meio de uma cidade.

Gaunt aproximou-se dele a passos leves e cuidadosos. O cavalo tinha uma longa e grossa crina da cor da neve e um par de asas cuja penugem era tão brilhante que quase o cegava quando o sol refletia. O corpo era musculoso como um grande saco de couro cheio de ossos e era grande, gigantesco. Uma de suas pernas tinha quase o tamanho de Gaunt, e só um de seus cascos era maior que seu pé.

— Olá. Você sabe falar? — Apertou o baú mais contra seu peito. Alathea dissera para ter cuidado com as criaturas mágicas.

O cavalo girou sobre o próprio eixo e fitou Gaunt nos olhos. Os seus, escuros e enormes, eram quase ameaçadores, mas havia algo de agradável no fundo. As narinas estavam molhadas e cristalinas pela água da fonte. Dizia-se que eles podiam soltar fogo por elas. Devia ser verdade, uma vez que toda a água havia congelado.

— Sei falar. Meu nome é Grant. Qual o seu?

— Gaunt. — Dizia-se que os cavalos alados simpatizavam com aqueles cujo nome começasse com as mesmas iniciais dos deles. Ou talvez Gaunt estivesse apenas perdendo o juízo. — Meu nome é Gaunt e estou numa missão delegada pela Sociedade dos Anciões.

— Nunca ouvi falar.

Então era verdade. A Sociedade dos Anciões era um mito e Gaunt era a única criatura no planeta que conhecia a verdade! O mundo estava para se acabar e ninguém sabia disso!

— Mas qual é a sua missão, de qualquer forma? — Grant indagou.

— Ir ao Polo Norte — respondeu. — Entrar na oficina do Papai Noel.

— Parece perigoso. E uma aventura. Eu gosto de aventuras.

Os cavalos alados não estão contra Noel, pensou fascinado. Pelo menos não esse.

— Ajude-me nessa, então.

Grant girou novamente sobre o próprio eixo até que Gaunt pudesse ver toda a sua lateral e se abaixou sobre as pernas fortes como madeira, o suficiente para que o menino pudesse subir. Com alguma dificuldade, montou nele e enquanto se perguntava como faria para não escorregar e cair, uma vez que o cavalo não tinha sela, uma maravilhosa sela dourada surgiu do nada, prendendo-o firmemente a ele.

— Segure-se! — ele relinchou e começou a correr. As longuíssimas asas, que deviam ter pelo menos quatro ou cinco metros de envergadura, esticaram-se e começaram a bater como as de um pássaro. O vento gelado devia cortar sua pele como centenas de facas, mas Gaunt não sentia dor. Essa devia ser outra dádiva. Ele era imune à dor!

Logo estavam fora do chão, rumo aos céus.


Durante muito tempo, Gaunt não viu nada além da imensidão azul. Viajavam acima de uma grande colcha de nuvens branquíssimas sob uma abóbada celestial quase divina. Quando o pôr do sol chegou, a aurora de dedos rosados agarrou o horizonte e banhou-o em ouro. Gostaria de ter visto a carruagem de Apolo levando o dia embora, mas não teve tanta sorte. Quando sentiu fome, Grant pediu que arrancasse um único fio de sua crina prateada e o comesse. Quando Gaunt o arrancou, o fio tornou-se róseo e dourado, e quando o engoliu sua fome e sede desapareceram. Por isso que os cavalos alados eram tão admirados e respeitados pela indústria alimentícia mundial.

A lua surgiu como uma bola de cristal, branca e manchada como sempre. Algo na cabeça de Gaunt disse-lhe que ela estava guiando-os pelo caminho com sua luz.

— Onde estamos exatamente? — indagou a Grant. Ele bateu mais uma vez as asas e ergueu-se mais.

— Estamos viajando para a costa leste dos Estados Unidos.

— Nova Iorque? Por quê?

— Há outros cavalos alados lá. Não confiarei em mim mesmo para uma viagem tão longa sozinho, não nesses tempos loucos.

O coração de Gaunt pareceu explodir dentro de seu coração. Outros cavalos alados significava outras criaturas mágicas, e outras criaturas mágicas significava que havia uma possibilidade absurdamente grande de Gaunt encontrar alguma que estivesse contra o Papai Noel e quisesse roubar-lhe o baú.

Em outras palavras, se fosse até Nova Iorque, o mundo acabaria. Mas não teve tempo de pensar num plano. A noite traz muitas criaturas terríveis, e embora as criaturas mágicas e a humanidade tivessem um tipo de acordo pacífico implícito em relação ao convívio mútuo, como Grant e Alathea disseram, não se poderia confiar em nada nesses tempos loucos.

Elas surgiram como pontinhos negros na noite ainda mais negra, mas quando se aproximaram tornaram-se visíveis e terríveis. Usavam túnicas negras esvoaçantes e chapéus pontudos da mesma cor que de alguma forma não voavam de suas cabeças. As vassouras eram rápidas como as asas de Grant. Era de conhecimento geral que bruxas e cavalos alados não tinham uma boa relação. Gaunt achava isso uma ironia porque o ascendente de todos os cavalos alados, Pégaso, era filho de Medusa, mas não era uma boa ideia falar aquilo quando se estava a milhares de quilômetros do chão montado em um.

As bruxas circundaram Grant por cima e por baixo. O cavalo começou a ficar irrequieto tentando achar uma forma de sair dali, mas era impossível. Gaunt não tinha dúvida nenhuma de que se alguma delas mandasse-o entregá-lo em troca de ser deixado em paz, Grant o faria sem pensar. Apertou mais o baú contra o peito.

Um clarão vermelho surgiu de algum lugar debaixo deles e foi subindo em direção a Grant, que desviou-se no último segundo. Gaunt quase caiu de cima.

Outro clarão surgiu da esquerda e mais um da direita. Desviando-se de todos e sem nenhuma perspectiva de se salvar, Grant fez a única coisa que parecia sensata: parou de bater as asas e passou só a planar, e em seguida virou-as contra a direção que iam. Foi como se tivessem se chocado contra um paredão de ar. Grant parou no ar como se houvesse aberto um paraquedas em direção contrária enquanto as bruxas continuaram, sem poderem frear tão rápido. Gaunt quase foi atirado para fora de suas costas, mas as rédeas o seguraram no lugar. Uma das bruxas soltou um último feitiço para trás.

Em seguida estavam descendo, mergulhando nas nuvens. Gaunt sentiu respingos de água no rosto e constatou que as nuvens estavam despejando-se. Estava chovendo.

Aportaram numa pequena ilha no meio do mar. Não deviam estar muito longe de Manhattan. Gaunt gostaria que continuasse assim.

— Estou ferido — disse Grant.

Ele estava deitado na grama, sob a chuva, e uma grande e pegajosa mancha de sangue perto de seu flanco traseiro estava em carne viva. Um dos feitiços o acertara. Era veneno. Um trovão ressoou no horizonte. Estavam perto do topo de um precipício, e lá em baixo as águas turvas chocavam-se violentamente contra as rochas. Gaunt ficaria preso ali se Grant morresse.

Ele relinchou de dor.

— Menino, escute. — Resfolegava rapidamente, os olhos começando a ficar envidraçados. — Arranque minha crina antes que eu morra. Cada fio de transformará em alimento para um dia. Quando eu morrer, a magia se perde. Essa ilha é a Ilha das Nereides, ninfas do mar. Elas vivem nos rochedos contra o penhasco. Quando a tempestade passar, aproxime-se anunciando sua chegada. Procure por Toe, Ploto e Dinamene e peça-lhes para ajudarem-lhe a seguir até o Polo Norte. Dê um fio da crina da minha cauda a cada uma delas como oferta, e quando o fizer elas o usarão como colar. Preste atenção. Uma vez que elas vestirem o fio, não deves jamais olhar em seus olhos novamente. Cuidado com elas. Não ofenda nenhuma, jamais. E cuidado com as sereias.

Grant gemeu e Gaunt soube que sua hora estava para chegar. As bruxas perderam-nos de vista, mas a tempestade ainda rugia.

Com dificuldade, arrancou cada fio da crina de Grant que conseguiu, o que não foi fácil porque ele relinchava de dor toda hora. Quando conseguiu vinte fios — o mundo não duraria tempo o suficiente para ele precisar de mais, de qualquer forma —, arrancou três da cauda. E então, e só então, Grant deu seu último suspiro.


O baú estava seguro. E era Natal. 25 de dezembro.

O ridiculamente pequeno e estúpido baú estava perfeitamente seguro, como Gaunt conseguiu perceber dentro da caverna que achou no sopé do morro. Estava seca e havia restos de uma fogueira lá, de modo que não foi difícil fazer uma nova. Não era uma surpresa. Exploradores iam àquela ilha o tempo todo para admirarem as nereides, as criaturas mais narcisistas do mundo. Mas isso não importava porque o baú estava seguro. Grant estava morto, mas o baú estava seguro.

Um cavalo alado morreu por minha causa, pensou enquanto se aconchegava dentro de seu casaco. Obviamente não sentia frio, mas não era frio que Gaunt estava sentindo. Era um sentimento primordial e horrendo que vinha do fundo de seu coração. Algumas pessoas que presenciavam a morte de criaturas mágicas afirmavam que o sentiam também. Parecia mandado por Gaia, a Mãe-Terra, para avisar da morte da magia.

Porque era isso que estava acontecendo. A magia estava morrendo. Gaunt sentiu isso com o passar dos dias que passou naquela caverna. A tempestade durou uma eternidade. Quanto mais o sol vinha e ia, mais tempo ele perdia, e mais destruída a humanidade ficava. Pensou nos milhões de mortos. O mundo estava em guerra com as criaturas mágicas e ninguém sabia disso, nem mesmo as criaturas mágicas!

Quando o sol decidiu dar as caras novamente, já haviam se passado oito dias. Oito fios da crina de Grant haviam-se ido. Era engraçado que a vida de Gaunt estivesse sendo determinado por fios, como se fosse uma Parca prevendo a própria morte. Era dia 2 de janeiro. Só tinha mais 12 dias antes do fim do mundo.

O caminho até o rochedo das ninfas era perigoso mesmo em mar calmo. Gaunt teve que atravessar metade da ilha e então dar uma volta quase completa para chegar à pequena praia através de uma trilha abandonada. As nereides estavam se banhando nas águas do mar divertidamente quando ele chegou. A maioria estava nua. Gaunt virou o rosto rapidamente, consciente de que ficara vermelho de vergonha.

— Meu nome é Gaunt — falou em voz alta olhando para o horizonte. — Procuro Toe, Ploto e Dinamene. — Toe era conhecida por se mover depressa, Ploto por ser nadadora e Dinamene por ser impetuosa e ligada à força das ondas do oceano.

Ouviu os gritinhos delas. Felizmente não era por terem sido apanhadas nuas, já que o fato de Gaunt ter dez anos parecia compensar isso, mas de excitação. Devia fazer tempo que não viam algum humano. Quem diriam que sentiriam falta do assédio.

Uma das nereides aproximou-se dele e se ajoelhou. Tinha espessos cabelos louros e lindos olhos verdes. Seu rosto foi a única coisa para a qual Gaunt olhou, porque o resto estava completamente despido e ele achava que já estava vermelho o suficiente.

— Eu sou Toe. — Outra delas, que surgia das ondas e mantinha longos cabelos claros, aproximou-se e apresentou-se como Ploto. Por fim, uma ruiva com ardentes olhos avermelhados disse ser Dinamene.

Gaunt tirou os fios da cauda de Grant do bolso da calça e os ofereceu às nereides. Cada uma pegou-o e envolveu o pescoço com eles, que apertaram-se e mudaram de cor. Antes prateados, agora eram vermelhos. Não olhava mais para elas. Se olhasse para seus olhos, a morte o envolveria e o levaria para o além.

— Preciso de ajuda para chegar ao Polo Norte. — Sabia que elas não estavam contra o Papai Noel porque nereides não se importavam muito com o que acontecia a sua volta se não tivesse a ver com elas.

Acompanhou-as para dentro do mar. Quando a água bateu mais ou menos em sua cintura, começou a modificar-se e a se solidificar. Logo Gaunt estava dentro de uma carruagem cristalina guiada por Dinamene e empurrada por Toe. Ploto ia na frente para garantir que não colidiriam com nada.

Gaunt não via Toe ou Ploto e fitava apenas a cabeleira ruiva de Dinamene. Pensou que tudo ficaria bem. Eles ainda tinham um longo caminho até o Polo Norte, mas se nada mais o atrasasse poderia cumprir sua missão em paz. Como entraria na oficina do Papai Noel eram outros quinhentos, mas deixaria para pensar nisso depois.


Por muito e muito tempo, eles remaram. O grandioso mar logo virou um grandioso tédio ao ponto de que os melhores momentos de Gaunt eram quando ia dormir. Houve um momento em que passaram perto da costa leste do Canadá; o céu estava negro de fumaça e a água estava pegajosa.

— Gaia está reclamando seu petróleo — disse Dinamene, virando-se para trás. Gaunt virou os olhos antes que pudessem se chocar com os dela. As nereides não dormiam e não comiam, mas dia após dia os fios de Gaunt diminuíam, e com eles o tempo da humanidade. Já estavam no dia 9 de janeiro e ainda não haviam chegado. Uma vez que aportassem na costa da Groenlândia, Gaunt teria que arrumar outro modo de atravessar o gelo e a neve até a oficina, uma vez que o mar acabava ali.

O baú continuava seguro. Várias vezes sentira vontade de abri-lo, só um pouquinho, e dar uma espiadinha no que havia lá dentro. Achava que Alathea nunca descobriria se ele fizesse isso quando lembrou-se que ela teoricamente sabia de tudo. Se isso era verdade… ela também sabia se ele teria sucesso ou não.

10 de janeiro. Faltavam quatro dias. Bandos de harpias, criaturas metade mulheres e metade aves de rapina, atravessaram o céu, rápidas como bruxas, grasnando horrivelmente. Não se viam mais pássaros. Gaia havia matado todas as criaturas marinhas cobrindo a superfície do mar de petróleo e impedindo a passagem de luz. A aurora de dedos rosados havia perdido sua cor. Os pores-do-sol estavam acinzentados e horríveis, as nuvens negras, embora não chovessem. A Mãe-Natureza parecia ter se aposentado. Em breve a humanidade morreria de fome.

Foi no início do dia 11 de janeiro que chegaram à Groenlândia. Um imenso paredão de gelo dominava o mar, isento das desgraças mágicas que vinham assolando o mundo. As nereides ergueram as águas o suficiente para Gaunt pular no gelo. Graças ao anciões não sentiu frio. O mar negro e gelado agora estava no fim do precipício.

— Aqui é o mais longe onde poderemos levá-lo — disse Toe. Um turbilhão de água giratória empurrava-a para cima do mar, como um grande vestido molhado. Momentaneamente deslumbrado pela perfeição dos movimentos da água, belos demais para os olhos humanos, Gaunt esqueceu-se do aviso de Grant e levantou os olhos para os rostos das nereides.

Era verdade que ele nunca dissera que se fizesse isso a morte o envolveria, mas o que aconteceu em seguida não foi muito diferente. As nereides gritaram quando os fios vermelhos em volta de seus pescoços apertaram-se ainda mais. Tentaram arrancá-los das gargantas, enfiaram as unhas na pele do pescoço, mas de nada adiantou. Os fios eram indestrutíveis. Os corpos pararam de lutar. Decapitadas e mortas, e mágica se desfez. O turbilhão de água sumiu e os corpos sangrentos despencaram rumo ao mar para nunca mais serem achados.

— Oh, não — Gaunt murmurou. Seu coração encheu-se de medo. Quase tirou a mão de dentro do casaco, largando o baú. No entanto, no último segundo, recobrou a consciência e correu da costa em direção ao gelo branco e ao nada. Porque morrer naquele local estéril e desolado seria melhor do que enfrentar o que estava por vir. Havia um motivo para ser mundialmente proibido caçar animais marinhos perto dos polos.

Um rugido monumental encheu os céus. Não apenas um rugido, mas um berro, um estampido, alto como uma bomba explodindo, como um terremoto abrindo a terra, como um vulcão entrando em erupção, como uma montanha erodindo. Um grito tão alto que imediatamente quebrou toda a monotonia da paisagem congelada.

Um gigantesco tentáculo surgiu da água negra, e então mais outro e outro. Dezenas deles. As ventosas tinham o tamanho de pequenos carros, a pele era esponjosa e esverdeada e pingava sangue. O Kraken era atraído por sangue, e aquelas nereides acabavam de se derramar inteiras dentro do estômago dele. Gaunt sentiu vontade de vomitar. Tantas mortes aconteceram para conseguirem prender aquela criatura monstruosa naquele lugar desolado e para quê? Para que fosse acordado por um garoto de dez anos!

Gaunt correu, mesmo sabendo o que provavelmente aconteceria. Não demorou para sentir suas duas pernas agarradas de uma única vez. O Kraken agarrou-o e lançou-o no ar para então agarrá-lo de novo. Quase perdeu o baú. Não havia o que fazer. Faltavam 3 dias para o fim do mundo e a única esperança da humanidade estava nas mãos de alguém prestes a ser devorado.

A criatura abriu sua bocarra cheia de dentes triangulares e afiados, mas não o engoliu de vez. Agarrado pelo tentáculo, Gaunt desceu, desceu e desceu até sentir-se afundando nas águas negras da Groenlândia. Não sentiu o frio… parecia um delicioso mar de leite quente. Não podia respirar em baixo d’água, de qualquer jeito. Pelo menos era um jeito glorioso de morrer. Devorado por um Kraken!

Houve um momento em que não conseguiu mais segurar a respiração. Não podia mais aguentar, simplesmente tinha que respirar. Então Gaunt inspirou. Inspirou, inspirou, inspirou, inspirou e inspirou mais um pouco. Santa mãe de Deus, era maravilhoso. Era com aquilo que a morte se parecia? Parecia legítimo. A total ausência de dor.

Mas ainda estava no fundo do mar. A água entrava e saía de seu nariz, e o Kraken estava em todo lugar, tamanha era sua massa. Tudo o que podia ver eram seus tentáculos espalhando-se por todas as direções, até por debaixo do paredão de gelo, que não era nada além de um grande iceberg.

Posso respirar em baixo da água, percebeu. É outra dádiva.

Havia outra coisa. O Kraken havia lhe soltado.

Ele deve pensar que sou um deus. Um humano jamais conseguiria respirar em baixo da água como estou fazendo. Já sei o que fazer.

— Kraken! — gritou, e mesmo que pensasse que não seria ouvido, sua voz ressoou alta e clara, como se não estivesse ali na água e sim dentro de uma grande igreja. — Ordeno que me leve à oficina de Papai Noel. Sofrerá sérias penas dos deuses do mar se desobedecer. O mundo está em mudanças.

Os amarelados e cegos olhos do Kraken seguiram em direção a sua voz. Gaunt foi novamente enlaçado por um tentáculo e levado para baixo, mais para baixo ainda, para debaixo do paredão, para debaixo da Groenlândia até chegar ao coração do Ártico, onde a escuridão reinava sobre tudo e todas as coisas.


Por horas, o Kraken nadou por ele. Por horas que pareceram anos, Gaunt esteve imerso na completa e devastadora escuridão glacial preso nas ventosas de um polvo gigante devorador de homens. O gelo formava um imenso labirinto ali em baixo, uma maravilha tão grande que tornava o Kraken do tamanho de um homem. Pareciam estar recriando o mito do minotauro. Mas Gaunt pretendia ter um destino melhor que o de Teseu.

Houve um momento, quando engoliu o último fio que tinha, que pensou que o tempo se acabara. Não fazia ideia de quanto tempo demoraria para atingir a meia-noite do dia 13 para 14 de janeiro e o apocalipse ser decretado. Gostaria de saber onde os anciões se escondiam. Se fosse perto da oficina do Papai Noel, poderia falar com eles para lhe dar mais tempo. Eles eram onipotentes, afinal.

Sua mão parecia que se fundira ao baú. Apesar de poder respirar em baixo da água e de não sentir o frio, seus dedos enrugaram-se tanto que pareciam passas já fora da validade. Não sentia mais o toque cortante da água contra seu rosto, já que o Kraken se movia ora rápido como só uma criatura de seu tamanho poderia, ora devagar quase parando. Era praticamente impossível achar o começo e o fim de seu corpo. Gaunt já se acostumara com a pele pegajosa e esverdeada, principalmente porque estava escuro demais para vê-la, mas quando passavam por uma placa de gelo especialmente fina onde o sol poderia passar e ele a via de relance, sentia todo o nojo que há pouco esquecera.

Houve um momento em que o sentiu parar de se mover. De fato, em pouco tempo toda a sua gigantesca e complexa estrutura ficou imóvel como uma estátua, como Cetus quando foi petrificado pela cabeça decepada da Medusa sob ato de Perseu. Mas ele não virara estátua. Gaunt só percebera o que estava para acontecer quando aconteceu.

Com um só golpe de um de seus tentáculos, ele rompeu a grossa barreira de gelo que os protegia da luz do sol. O barulho foi ensurdecedor, nem o grito que Gaunt deu pôde ser ouvido. Toneladas e toneladas de gelo duro como aço despencaram despedaçadas em direção às profundezas do mar. O Kraken abrira um buraco no teto grande o suficiente para passar seu tentáculo inteiro. Lá em cima daquele túnel vertical, o céu tinha o tamanho de uma moeda, e estava vermelho e terrível.

Foi erguido. Lentamente, Gaunt viu-se subindo pelo grande túnel metros e metros até finalmente chegar à superfície. Esperava encontrar um rebuliço tremendo por causa da indiscrição do Kraken, mas estava tudo silencioso, pois todos estavam mortos.


A Morte, uma figura encapuzada e sinistra estava debruçada sobre o corpo de um ser humano envolvo num grosso casaco manchado de vermelho, apenas um dos muitos espalhados sobre a neve. Ela ergueu a gigantesca foice com seus braços de esqueleto e o acertou no peito. A barreira que separava corpo e alma foi destruída e com isso a Ceifadora recolheu mais uma alma, guardando-a os fundos de seu manto negro.

Ninguém havia notado a cratera porque não havia ninguém para notar. O ar estava difícil de respirar e tinha cheiro de enxofre. O dia e a noite haviam desaparecido, e em seu lugar uma tonalidade sanguinolenta dominara os céus.

A oficina do Papai Noel, antes um complexo de vários prédios de madeira vermelhos e brancos unidos que comportava toda a fábrica de brinquedos do bom velhinho e era a morada de centenas de duendes, estava despedaçada. Janelas quebradas, paredes derrubadas; o curral das renas estava demolido. Elas haviam sumido.

Gaunt olhou na face da Morte, mas ela decidiu que ainda não estava na sua hora.

Tirou o baú de madeira de dentro do casaco. O longo período dentro da água havia enrugado a madeira, mas ele continuava firmemente fechado. Sem perder mais tempo com os mortos, correu para dentro dos escombros da oficina. Atravessou corredores e salas administrativas, entrando cada vez mais no coração do lugar, encantado com as belíssimas decorações de Natal que mesmo depois daquela hecatombe haviam sobrevivido. Em que dia estavam, pelo amor de Deus?

Foi subindo os andares que ele encontrou o quarto do Papai Noel. Onde Alathea pedira para que colocasse o baú mesmo? Na escrivaninha…? Não, na cama! Isso!

Sem fôlego algum, subiu na enorme cama. Ajoelhado, fitou o baú uma última vez antes de finalmente abri-lo. Aquela era a hora. Se acontecesse alguma coisa, ele teria salvo o mundo. Se não, chegara tarde demais.

A voz o pegou de súbito, primeiro em sua cabeça, depois ela se repetiu, mas vinha de trás de si.

— Gaunt. — Ele olhou para trás e foi o rosto de Alathea que viu. — Fico feliz que tenha chegado. Sabia que conseguiria. Não abra o baú agora.


Quando Gaunt me olhou pela primeira vez, arregalou os grandes olhos azul-claros e jogou-se para trás. De certa forma, não me surpreendi, pois eu não era uma criatura muito agradável de se ver. Aquela era a primeira vez que eu deixava o quartinho em mais de mil e seiscentos anos. Apesar de poder saber tudo, eu preferia deixar que as coisas me surpreendessem.

Seus cabelos loiros ainda estavam molhados quando ele recompôs a compostura. Ainda de olhos arregalados, perguntou-me:

— Você é Alathea? — Eu assenti. — Eu consegui. Cheguei aqui antes do fim do mundo. Acho que foi antes do fim do mundo porque ainda estou vivo. E o baú está fechado. O que houve por aqui?

— Uma revolta de duendes — respondi calmamente. — Eu devo admitir que acho absolutamente genial o modo como você manipulou o Kraken para satisfazê-lo.

— As criaturas mágicas sempre disseram aos humanos como o Kraken era extremamente poderoso e que tudo o que elas poderiam fazer era enfurná-lo no Ártico, mas ele parece ter medo dos deuses e ser obediente a eles. Por que então nunca ordenaram que se destruísse se seria bom para a humanidade?

— Os deuses não são bons, Gaunt, mas também não são maus. Eles agem baseados no que é bom para si próprios, ou no que futuramente pode ser bom. O Kraken seria uma grande arma contra a humanidade, então por que não mantê-lo guardado e mentir aos humanos sobre a quantidade de seu poder?

— Que horrível. O que houve com o Papai Noel?

— Eu cortei o fio de sua existência. Ou melhor, cortei o fio que o ligava à Existência. Uma vez que o Noel era a criatura mágica mais admirada e amada pela humanidade, sua morte resultaria numa grande guerra entre nós e os humanos. Isso destruiria o mundo e não haveria esperança. Quando esmaguei aquele fio prateado, limpei a Existência de Papai Noel.

Gaunt parecia seriamente incrédulo.

— Você o matou para que ninguém o matasse? Onde ele está?

— Noel não está em lugar algum. Quando ele desapareceu, simplesmente deixou de existir. Sua mancha na Terra fora apagada, ele simplesmente se foi. Fizemos a mesma coisa com os presentes. Mas é possível, sim, que ele volte. Mas isso depende de você.

— Como?

— Eu guardei uma única molécula de Noel dentro desse baú. Se ele fosse aberto antes do tempo, a molécula se perderia e Noel também. Mas ele está fechado, o que é bom. Gaunt, preste atenção. Já é 14 de janeiro. O fim do mundo já aconteceu. Você é o único humano vivo. Se abrir essa caixa, nós reescreveremos toda a Existência. Os humanos renascerão no dia 14 de janeiro de 2014, mas não terão consciência alguma de que a magia existe e se esquecerão de que um dia existiu. Para eles, tudo não passará de lendas, mitos, fábulas, contos de ninar. Vocês nunca mais verão as criaturas mágicas, porque nós as esconderemos para sempre. Você esquecerá tudo o que passou. No entanto, se você decidir não abrir, nós destruiremos esse universo e começaremos outro idêntico do zero. Magia e humanos coexistirão como sempre, mas a história terá que recomeçar. Será como a Terra de bilhões de anos atrás. Você, Gaunt, terá suas memórias mantidas e será imortalizado como ancião. Verá todo o ressurgimento da humanidade novamente junto com a magia.

— Viver milhares de vidas, nunca morrer, saber tudo e poder tudo — sussurrou, momentaneamente deslumbrado. Então sorriu. — Isso não é certo. O que ocorreu só pode ocorrer uma vez. Seria errado reiniciar a humanidade e vê-la cometer os mesmos erros, mesmo que isso signifique sacrificar a magia. O que acontecerá comigo se eu abrir?

— Você desmaiará e acordará novamente no sofá de casa no dia 14 de janeiro. O Natal ainda terá como símbolo o Papai Noel e ele continuará a entregar presentes, mas ninguém saberá que ele faz isso. Apenas as crianças, e quando elas crescem ensinam a suas crianças, mas param de acreditar.

— Parece triste. Mas é verdadeiro. — Ele olhou para o baú e então novamente para mim. — Adeus, Alathea.

— Adeus, Gaunt, meu bom menino. Vamos, você abriu o baú. Agora você sente sono… durma e quando acordar o mundo ainda será mágico…

… só que ninguém saberá disso…


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Apesar de poder não parecer, Alathea narra a história inteira, mesmo a parte sob a visão de Gaunt. Ela não fez muito diferente de Lestat em A Rainha dos Condenados. Espero que tenham gostado. Bjs!