Helvete escrita por Maxine Evelin


Capítulo 1
Helvete




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/458711/chapter/1

Seu terno estava sujo, manchas vermelhas espirradas em sua camisa branca, a gravata empapada flutuava ao lado de seu rosto com a força do vento. O cabelo desgrenhado, dançava acompanhando a violenta atitude do ar. Tirou os óculos de armação escura Armani e deu duas baforadas na lente suja. Puxou do bolso de seu terno um pequeno tecido, na qual usou para limpar as lentes e amassando-a, jogou ao vento que levou para longe dali. Fechou os olhos, enquanto colocava os óculos de volta ao rosto e sorriu ao poder enxergar perfeitamente.

Os corpos estavam amontoados em uma pilhagem de membros pregados uns aos outros. Homens, mulheres, crianças e animais. Todos dos moradores da pequena vila agora estavam ali, dispostos a sua vontade de criar seu panorama. Começou devagar, pegando os pequenos corpos e membros infantis, e desceu as escadas de pedra que acompanhavam a escarpa até a praia de rochedos, metros e metros dali. A cada degrau analisava a estrutura do rochedo, dando alguns tapas e sentindo a estrutura vibrar em seus dedos. Levava os enormes pregos as superfícies rochosas e dava-lhes tapas com o osso pisiforme da mão, tapas fortes o bastante para estes desaparecerem entrando a fundo nas carnes e ossos que perfuravam e fixando-se na parede. Passou a tarde inteira descendo e subindo as escadarias, a cada corpo que fixava na parede, mais sua alma parecia enfatuar e sua força de vontade inflamar. Não sentia cansaço, não sentia fome, era apenas movido pelo desejo de ter seu panorama infernal completo.

Era madrugada quando descia os últimos degraus da escadaria, carregava em seu ombro o corpo de uma jovem loira, cujo cheiro de seu corpo imaculado fazia sua boca salivar. Olhou para seu corpo desnudo ao prega-lo as rochas com o mesmo desejo de um padre pelo corpo juvenil de uma freira, um desejo proibido, porém compreensível. Afastou-se e sorriu, lambendo o suor misturado com o sangue que escorria em sua face. Estava pronto, finalmente pronto. Sua Magnum Opus. Sua abismal criação. Sua contemplação da vida e morte. Sua Profana Ceia.

Sentou-se no capô de sua Mercedes e assistiu o nascer do sol, uma bola flamejante surgindo no horizonte, entre nuvens e o infinito do mar. Acendeu um cigarro Marlboro de filtro vermelho, sentindo o sabor delicioso da nicotina e do câncer invadindo suas vias respiratórias. Sua existência poderia ser imune a todas essas coisas, mas seu corpo atual não, é aproveitava o gosto da sua própria lâmina açoitando-o, como um ritual masoquista. Mal ouviu o som dos veículos dos outros três chegando e parando próximos ao seu. Fome foi a primeira a aparecer, seu carro era um trailer que cheirava a porco frito e manteiga quente. Seu vestido florido manchado de gordura, caindo feito uma toalha de mesa sobre o corpo anoréxico. E seus braços ossudos abraçando o balde de frituras do KFC. Peste desceu de seu Prius velho, como sempre tossindo e limpando o nariz vermelho de sangue e muco. O carro engasgou e óleo escorria de seu motor como uma menstruação automobilística. Estava vestindo um Johnny de hospital, um macacão frente única azulado, mostrando sua bunda farta e cheia de rashes subcutâneos. Guerra chegou por último, acelerando seu Hummer blindado e dando uma guinada para direita no último instante, estacionando na beirada do precipício.

— É melhor que tenha um bom motivo Soldado! Eu estava no calor da guerra no oriente médio! Bombas Tomahawk iram fazer daquele lugar um inferno! - Guerra fechou a porta de seu Hummer e bateu o quepe contra as vestes militares de deserto, tirando o pó e a areia nela acumuladas.

— Guerra, bom te ver novamente. Disse o homem de terno tragando o cigarro em uma puxada só e soltando a fumaça em forma de esqueleto. - Acalme-se, não chamei vocês a toa.

— Sobre o que seria então Morte? Não nos encontramos assim do nada desde a guerra fria. Pelo que sei, este corpo é enfermo, porém não surdo. Não ouvi nenhuma corneta tocar. - Disse Peste caminhando devagar com os pés desnudos no chão de pedregulhos.

— Exatamente, não ouvimos porque nós iremos tocá-las. - Respondeu Morte dando um sorriso que por um instante trocou seu rosto atraente pelo semblante esquelético de um cadáver.

— O que quer dizer? Iremos contradizer as Escrituras Divinas e iniciar nosso próprio Armageddon? - Perguntou Fome levando uma coxa de frango frita a boca.

— Vocês sabem que nós somos mais antigos que elas, nós nos prendemos durante milênios a promessas de reinar nessa terra, de poder usufruir de nossos poderes, de fazer o que podemos fazer sem limites. E o que fizemos no final? Nos contentamos com essas migalhas. Em milênios, destruímos e corrompemos. Hoje não há morte que me satisfaça. E aposto que vocês também sentem isso. - Disse Morte parando em frente a escadaria e abrindo seus braços. Sua silhueta apenas uma cruz negra engolfada pela luz do Sol.

— Eu estou satisfeita Morte, gripes novas surgem na China, uma estirpe do Ebola sumiu de um laboratório nível 4, a radiação de Fukushima chega lentamente a engolfar parte do pacífico. Câncer é a doença da moda. - Disse Peste tossindo e cuspindo um fleuma avermelhado no chão.

— Eu não, tenho fome. - Disse Fome entre mordidas e sujando sua boca de gordura.

— Você sempre tem fome. - Respondeu Peste apontando um dedo carcomido para a anoréxica.
— Estamos chegando a um ponto em que comida vai faltar a todos, daqui dois anos o bacon irá parar de ser fabricado, daqui a dez a carne vai ser insuficiente, em vinte será o arroz.

— Sem bacon? Que coisa horrível! - Disse Fome enfiando mais carne a sua boca.

— Mas esse é seu propósito! Trazer a Fome a Terra! - Retrucou Peste antes de ajoelhar e vomitar uma poça de sangue.

— Entendi o que você quer dizer Morte. Todo esse tempo nos fez amolecer. Eu estou me contentando com algumas mortes, somos hoje meras sombras do que fomos na Idade das Trevas. - Disse Guerra apontando um revólver e atirando contra uma águia que voava por ali. - O que você pretende com isso?

— Liberdade. Mas infelizmente não conseguiria sozinho. Preciso de vocês meus irmãos, para completar o ritual - Morte virou-se para os três ouvintes, seu rosto dissolvendo aos poucos em sua face real cadavérica - Durante séculos visitei vilarejos, cujo povo ainda trazia vestígios de respeito a culturas antigas. Invadi catacumbas tão antigas que o cheiro de morte ainda permeia nas paredes profanadas. Li manuscritos tão antigos que se esfarelavam em minhas mãos, escritos em línguas que somente um imortal poderia reconhecê-las. - Caminhou para mais perto dos três afrouxando a gravata em seu pescoço. - O que quero dizer é que achei uma forma de trazer o Inferno para a Terra, de começar o apocalipse antes da data do julgamento final. Que nós podemos começar o nosso próprio julgamento.

— Certo, e o que isso nos convêm Morte? - perguntou Peste - Todos nós estamos satisfeitos com o que temos agora.

— Não, não estão. - retrucou Morte - Você está com medo de uma retalhação maior. Você está com medo do Senhor das Trevas enfurecer-se, de você estar quebrando a balança. Querida Peste. Minha querida Peste - Morte aproximou-se colocando uma de suas mãos cadavéricas no rosto da doente - Você é um lixo e você sabe disso. Você tem medo de após terminarmos nosso julgamento, de não termos mais nada para fazer, deixarmos de existir. Olhe, isso não acontecerá de forma alguma. Eu prometo. Imagine as possibilidades, demônios rondando a terra deixando um rastro de sangue e violência por onde passarem, doenças por todo lugar comendo a pele e a alma daqueles que rondarão por essas terras, fome castigante punindo a todos aqueles que se aventurarem e quiserem lutar conta a Minha Influência. Imagine... Imagine as possibilidades e acorde. Desperte seu eu verdadeiro. Cumpra o seu destino como cavaleira do Apocalipse. Assim como vocês Fome e Guerra. Onde estão suas dignidades? Onde está aquela força de vontade de destruir?

— Escute aqui seu merda! - Guerra correu para cima de Morte e pegando-o pelo colarinho, levantou-o três palmos do solo, sua face amarelada da luz do sol e os olhos ferventes como lava, davam-lhe uma expressão medonha de fúria. Tal qual um vulcão em erupção. - Espero que você lembre que foi você que propôs um hiato em nossas atividades decadentes, após a frustante expectativa da Guerra Fria ter terminado na queda do Muro de Berlim. Enquanto isso todos nós estivemos ocupados fazendo nosso melhor, cada um plantando e semeando cada fruto da discórdia, sozinhos somos capazes de fazer apenas um quarto do que fazemos juntos. E você sabe muito bem disso. - Guerra deu dois socos no rosto de Morte, sentindo o arco zigomático e o osso temporal rachando sob seu punho cerrado.

— É isso o que eu queria, que cada um fizesse o seu melhor mesmo sozinhos. Percebi que juntos não teríamos experiência nem habilidade para realmente fazer o Apocalipse durar. Hoje temos essa capacidade e posso mostrar para vocês o quão certo eu estou. - Morte pôs-se a rir, sua risada ecoava metálica e distante, etérea, uma risada macabra e cheia de malicia. Os ossos de sua face regenerando ao poucos, a alma violeta dentro dos sulcos oculares embora flamejante, fitava Guerra com frieza. Puxou a mão de Guerra para o lado e rasgando sua camisa, apoiou os pés nas pernas de Guerra e saltou para trás, dando um giro em pleno ar e caindo no precipício. Os três cavaleiros entreolharam-se e caminharam para a ponta da escarpa e inclinaram seus corpos para frente afim de olhar o que acontecera.

Morte estava flutuando, seu corpo pairava imóvel com seus membros caídos com a força da gravidade. Um manto negro e violeta emanava de suas costas, passando por entre o corpo esquelético, serpenteando o terno e fazendo a gravata frouxa balançar loucamente. Seus braços abriram e o corpo arqueou para cima, enquanto o mar abaixo, girando em sentido ante horário. Um hino começou a ressoar, enquanto almas emanavam do corpo do Caveira. Um hino triste e agonizante dos gritos de tormenta e medo das almas que estavam pra sempre presas ao corpo do Ceifador. Para sempre presas ao limbo de suas existências, fadas a andar eternamente pelos multiplanos da sempre mutável Morte. Uma luz avermelhada brilhou vindo dos corpos presos a parede da escarpa, os corpos mutilados pareciam cantar juntos uma música profana, cada membro preso a outro em uma ciranda mortal. A luz condensou-se em um pilar maior e subiu lentamente aos céus, infectando as nuvens e fazendo-as precipitar em uma chuva de sangue. No horizonte, uma massa negra parecia sair do centro do Sol, espalhando-se por toda a superfície, escurecendo o dia, tornando a quente luz do Sol em uma esfera negra e fria. O Sol Negro como as profecias ocultistas diziam.

Ao redor da Terra, diversos pilares vermelhos ergueram-se aos céus, transformando as nuvens em um vermelho vivo e castigando os terrenos com sua chuva de sangue. Equipamentos elétricos fritaram, o que acarretou em blecautes e histeria quase imediata quando celas de prisão, indústrias e sistemas de segurança pararam de funcionar. Histeria religiosa e loucura começou a se espalhar como um vírus, o sangue que caia dos céus e transformava a água potável em veneno, manchava agora o mar de seu vermelho intenso e faziam peixes mortos boiarem sobre sua superfície.

Morte flutuou até o topo da escapa e ficou frente a frente aos mensageiros do Apocalipse. Seu semblante mudara completamente. Seu corpo outrora fraco estava gigantesco, feito de várias ossadas, passando por diversas mutações onde ossos mudavam de lugar e adaptavam-se a outros. Crânios circundavam como um colar macabro, seu pescoço feito de diversas vértebras cervicais unidas por cartilagem e pele envelhecida, uma toga negra esfarrapada mantinha parte de seu corpo coberto, runas brancas e amarelas desenhavam padrões vivos em seu tecido, mudando de posição e forma a cada segundo, acompanhando o fluxo de modificação do corpo de Morte. Sua aparência estava chegando o mais próximo de sua verdadeira natureza abstrata, um monte de ossos e carne velha. O Ceifador inclinou seu rosto para frente e abriu a boca, uma energia negra escorreu de suas entranhas ossudas, e, percorrendo o ar como tentáculos, empalou os outros cavaleiros que assistiam a cena.

— Ouçam meus irmãos, a hora chegou, eu percorri esses anos esperando para que esse dia chegasse, esperei que cada um de vocês fizesse sua parte. Sim, controlei vocês, controlei suas expectativas, controlei suas ações. Mas entendam que tudo isso foi para chegarmos a esse dia. Mala tempora currunt! Venham, mostrarei-lhes o que pretendo. -

Os cavaleiros agora passavam pela mesma mudança. Seus corpos era agora um amálgama de suas próprias existências, cada um deles pertencendo ao verdadeiro propósito abstrato. Guerra era um corpo humanoide cheio de veias e adrenalina, músculos fortes e titânicos, exalando testosterona e ódio pelos poros, espadas encravadas em suas costas e buracos de bala em seu dorso. Já Peste era uma massa disforme de pústulas purulentas, sulcos esguichantes de chorume e tumores halitosos, apenas uma fenda cheia de dentes cobertos por tártaro, mostrava algum resquício de humanidade. Fome mudara para um ser humanoide gordo, de vários membros que eram reconstituídos, após os originais serem arrancados para satisfazer a fome da cabeça de diversas bocas e dentes amarelados de gordura. Todos eles representavam a essência do Apocalipse. Do final de tudo. Do reinado da Morte e seus Irmãos.

— Contemplem minha obra. Nossa chave de Salomão. - Os cavaleiros ascenderam juntos a Morte até o meio do mar. Morte apontou a escarpa e continuou seu discurso insandecido de loucura e hedonismo. - Demorei anos, décadas, indo por lugares mais obscuros e esquecidos, após estudar muito, descobri que nesses vilarejos antigos, formavam um padrão, cada um, mesmo estando em lugares extremos da terra, possuiam uma ligação. Uma conexão que ia além do natural. Ali... - apontou para as pessoas pregadas aos rochedos, seus rostos e o que sobrara deles, presos em uma expressão de agonia eterna. Corpos brutalizados que brilhavam um vermelho intenso, tendo de suas extremidades uma energia quase líquida vazando de seus interiores e subindo aos céus, infectando as nuvens. Infectando com o seu horror. Seu destino. - ali está um dos seus rituais mais complexos. Estes noruegueses de tempos em tempos, escolhiam uma pessoa, e esta era pregada a estes rochedos. Deixavam-lhe sofrer durante dias, sobre o castigo do mar, das chuvas e dos pássaros que comiam suas carnes apodrecidas. Tudo isso para que seu sangue, seu sacrificio conseguisse manter as portas do Helvete fechadas. E agora com todos mortos...

— Helvete... Você quer dizer que a porta do Inferno se encontra aqui? - perguntou Peste por entre flatulências e barulhos de seus cistos estourando.

— Não só aqui, existem diversas portas neste mundo, mas a principal encontra-se aqui. - Morte virou-se e olhou para os cavaleiros, de suas fossas oculares, chamas negras de insanidade e de malicia eclodiam cada vez mais frenéticas. - Mas eu não conseguiria abri-la se o céu estivesse ocupado nos observando. Por isso vocês seguiram seu caminho, cada um de vocês, especializando, crescendo, agindo separadamente. O celestiais não teriam tempo de observar tanta catástrofe. Nunca perceberam essas pequenas chacinas, e se perceberam, com certeza pensaram que era loucura minha. E era. Entendem isso? Nós ganhamos!

— A guerra nunca acaba, enquanto houver sangue para ser derramado Morte. Você sabe disso. - respondeu Guerra entre bufadas e apertando sua mão contra a palma da outra, estalando os dedos grossos como metal rangendo.

Morte acenou com a cabeça e apontou para o mar, que começava a girar em sentido antihorário, levantou os enormes braços ossudos e com uma chacoalhada derrubou ossadas no mar, sua voz de um sussurro de um cântico tornava-se um mesclado de vozes, misturado a canção daqueles que estavam pregados. - Ouçam. Aqui começa uma nova fase. Sintam a inquietação do Inferno, através desse Maelstrom, as portas de nosso Império irão se abrir.

O Maelstrom girava freneticamente e seu interior começava a afundar como um redemoinho, vapor ascendia conforme a água avermelhada esquentava e um cheiro de enxofre e frutos do mar subia quase como uma camada pegajosa.

— E o Lorde das Trevas, Morte? Ele não vai ficar feliz com essa intervenção. - perguntou Fome em meio a sua auto mutilação.

— Eu sei. Eu sei - respondeu Morte, e virando mostrou a verdadeira face da insanidade e o significado de seu nome com um olhar - Isso não importa. Ele está morto. Eu tomei conta disso. - Morte levantou o crânio exibindo o sorriso cefador e abrindo os braços e entregando uma corneta feita de ossos a Guerra, disse - Toque a corneta Guerra, dê início a nosso governo. Nós, nós vamos para casa agora. O futuro somente a nós pertence...

E ninguém mais.

—--Arth, Jan/2014


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Helvete" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.