Paper Women escrita por MrsHepburn, loliveira


Capítulo 13
Cometas


Notas iniciais do capítulo

hey hey hey então quando vocês estiverem lendo isso eu vou estar na praia aproveitando meus últimos dias antes de mais um ano de escola e me preparando psicologicamente pra exploração mental que vai acontecer nos próximos meses
invejinha
enfim boa leitura



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No dia seguinte, eu passo o dia e estudando. Inglês principalmente. Estudar sempre teve o poder de me acalmar e me distrair, e nunca falha. Estudo francês para a prova de sexta feira, espanhol porque preciso, e matemática para relembrar, mas nenhuma matéria tão fervorosa quando Inglês. O professor Fawkes pede para que nós leiamos um livro, A Complicated Kindness, e façamos a análise dele. Então, quinta feira, todos nós sentamos em um auditório, ouvindo o professor Fawkes falar sobre o livro.

Ele liga o computador, depois o datashow e coloca uma imagem familiar para todos visualizarmos: Christina's World.

Essa pintura se chama Christina's World, do pintor americano Andrew Wyath. Ela está no Museu de Arte Moderna, em Nova York, e todos nós já vimos durante nossa visita ao museu ano passado. É também a pintura de um poster que Nomi Nickel tem no seu quarto. Para mim... esse poster é evidência de que, quando Nomi diz que não há condição humana no vilarejo onde ela mora, ela está errada. Porque como ela diz, eles estão no meio do nada, isolados mas o poster da pintura do museu prova que está errada. E mesmo isolados, o mundo lá fora ainda consegue entrar no vilarejo, através dos jornais da cidade, os rádios americanos, ou pinturas de museus. Eu suspeito que ela colocou o poster no quarto, porque a mulher a lembra dela mesma ou da sua mãe. —O professor Fawkes anda de um lado para o outro, e todos ficamos observando com curiosidade. —Nomi Nickel, dezesseis anos, vive na cidade ficcional de East Village. Sua irmã, Tash, fugiu de casa três anos antes e a mãe delas, Trudy Nickel, desapareceu sete semanas depois de Tash. Tudo que resta na vida de Nomi é o pai, Ray. E até ele está sumindo aos poucos. Em certo ponto do livro, Nomi diz que até os móveis da sua casa estão desaparecendo aos poucos. Nomi Nickel tem uma relação complicada com a sua casa. É o que ela quer, e é também o que causa uma grande dor.

Temos isso em comum então.

—Uma das coisas que ela odeia sobre a sua cidade, é a igreja. Talvez não a igreja em si, mas o fundamentalismo que ela implanta. Aquele entendimento de onde e como pertencer a um certo grupo. É fácil saber quem você é quando alguém diz quem você é. A igreja diz o que é certo e o que é errado. O branco e o preto. O bom e o mau. Nomi sente-se deslocada porque ela não é nenhuma das opções. Ela não é boa, não é ruim, certa ou errada. Ela é o meio termo, ela está entre as opções. E o fundamentalismo não admite que exista esse "entre". Há outra razão para Toews ter implantando essa imagem na obra. Uma razão que nem a própria Nomi tinha consciência, e que está muito relacionada a história da cidade e a história da obra. A história da obra é quase tão conhecida quanto a própria obra. Todos acham que essa é uma jovem adolescente, mas na verdade é uma mulher já era adulta e pobre. Orgulhosa demais, pobre demais, problemática demais e acabou na situação em que se encontra na imagem. Wyath era vizinho da mulher, e ele sentiu a necessidade de transmitir o que ele via, na sua própria forma de mídia, a pintura, o que —em suas próprias palavras —era a extraordinária batalha de uma vida que muitas pessoas considerariam sem esperança. É uma pintura sobre desafios, desafiar.

Sem esperança.

Nomi Nickel, durante a história, desafia várias vezes temas diferentes dos da pintura, mas usando esse mesmo artifício. Ela coloca palavras na boca dessa mulher, faz com que ela fale diretamente para um dos pontos mais dolorosos da sua vida, a casa dela. E é claro que essas palavras eram: vá se foder.

Como se quisesse dar ênfase no palavrão do professor Fawkes, o sinal toca e encerra todas as aulas do dia. Por causa disso, no entanto, a maioria não liga para o que ele acabou de falar, com a atenção voltada para o final da aula.

—Bem, esse não é o melhor jeito de acabar com uma aula, mas continuamos na próxima. Tenham um bom dia.

Becker e eu guardamos nossas coisas. Quando estamos saindo, o professor Fawkes aproxima-se, com ar de descontraído.

—Você já começou a estudar?

—Sim.

—Espero que tenha lido o livro.

—Eu li. —não deixo de evidenciar o tom amargo que uso para responder. Não estou nos meus melhores dias e provocações de um professor são a última coisa que eu quero agora.

—O final é meio triste. —comenta Becker.

—Vamos discutir isso na próxima aula.

—Ótimo. Quero discutir o Travis.

—Bom saber, mas por favor não me venham com cartas de amor para ele. Eu não preciso desse tipo de distração na minha aula —diz ele.

—Alguém já fez isso antes?

—Você nem sabe quantas vezes. A última vez era para Rhett Butler.

—Sério? Se eu fizesse uma carta seria mais para a Scatlett O'hara do que para o Rhett. —opino, meio frustrada.

—Eu faria uma carta para o diretor do filme que fez ele durar quatro horas.

—Pensei que você estava falando do livro.

—Está tudo conectado. —cantarola Becker, puxando-me para fora e revirando os olhos. Os corredores estão cheios e descemos as escadas nos espremendo entre os estudantes. As portas de vidro mostram que está chovendo, o que deixa uma aglomeração de pessoas na entrada, assim como agora, protegendo-se da chuva, como se um segundo de água causasse todas as doenças do mundo.

—Você vem comigo?! —tento gritar para Becker acima da multidão. Só consigo captar o cabelo ruivo dela pulando para encontrar meus olhos. Depois de alguns segundos ela desiste e só estende a mão para o alto, formando um sinal de positivo com os dedos. Nos encontramos novamente lá embaixo, dessa vez com Gordon ao nosso lado. Suas bochechas estão coradas, o moletom desarrumado. Ofegante, como se tivesse corrido uma maratona.

—ANIMAIS! BANDO. DE. ANIMAIS!

Caminhamos até o lado de fora, Becker animada argumentando com Gordon sobre alguma coisa. Quanto a mim, eu fico quieta. Escutando mas ao mesmo tempo não prestando a mínima atenção, com falta de vontade. A verdade é que estou nervosa sobre o karaokê. E eu continuo com medo do confronto, de falar com Ian e perder a cabeça, ou das coisas que eu vou sentir, principalmente agora que vou descobrir o que Vivian deixou para Ariel e ter esperança de saber mais sobre a amizade das duas. Tudo isso me deixa confusa, e é engraçado para alguém que viveu assim a vida toda estar reclamando só agora. Minha teoria é que em St. Mara, naquelas poucas horas de completa solitude eu finalmente descobri como é me sentir bem —voltar para o mundo real é tão doloroso quanto me permitir entrar naquela outra realidade. Agora sei quão bem eu posso me sentir e saber que não estou me sentindo assim provavelmente por causa de alguma coisa que fiz ou falei me deixa atordoada, como se eu estivesse em um tanque cheio de água caindo para baixo com cordas nos braços e uma faca na mão. Eu posso estar tão perto de me sentir bem, mas sempre haverá alguma limitação. Talvez essa seja outra definição de felicidade impossível. Talvez seja tortura. Quando chegamos em casa, meus pais fazem um interrogatório para Becker, focando na sua relação com seu namorado. Minha sorte é que minha amiga é forte e responde todas as perguntas sem hesitar, até as sobre as relações sexuais que meus pais colocam nas entrelinhas de perguntas aparentemente inocentes. Ela se joga na minha cama, suspirando alto quando nos deixam subir.

—Desculpe por isso.

—Quanto será que eles pagam os psicólogos deles? Credo.

Nunca pensei sobre isso.

—Acho que eles não tem tempo pra ir.

Acho que nossas vidas seriam melhores se eles fossem, mas sei que nada vai mudar. Não vou sugerir isso e eu já ouvi meus pais se referindo a psicólogos e psiquiatras como "médicos de gente louca". E duvido que se acham loucos. Às vezes, quando nosso estilo de vida chega ao extremo —quando nenhum deles está em casa para o almoço nos finais de semana ou no café da manhã com os notebooks ligados sem conversar —eu tenho a certeza da loucura que os envolve, mas eles sabem esconder. Ou talvez, o resto do mundo esteja no mesmo grau de loucura em que eles estão, e seja eu a pessoa deslocada. Lembro da explicação do professor Fawkes sobre o livro que ele nos pediu para ler, e a posição de bem ou mal da igreja.

Baseando-se nisso, cheguei a conclusão de que eu estou no "entre" da história, tentando descobrir que caminho tomar. A única diferença é que ninguém me diz especificamente quem ser, qual rumo escolher —todos me mandam sinais: meus pais, os professores, Ian. Mas eu sempre soube que os sinais são difíceis de se entender, e a interpretação é a coisa mais pessoal e única de uma pessoa, não há como eu captar todos os significados da maneira certa, ser quem todo mundo quer que eu seja.

Talvez eu precise de um psicólogo mais do que os meus pais, para prevenir que eu me torne tão miserável quanto eles.

—Você já falou com aquele garoto?

—David? Ele não me reconheceu. —vou até o closet, separando algumas roupas. Consigo sentir o olhar da reprovação de Becker nas minhas costas.

—Eu não consigo entender como alguém consegue beijar outra pessoa e não achar isso nada demais.

Eu quero explicar para que ela entenda. Que eu não beijei ele por beijar. Não importa se você é a maior megera do mundo, não beija ninguém só por beijar. Tem sempre um motivo, uma história. Que não era eu. Era a Diana Ela, que não sentia nada.

Eu não sou como um garoto.

—Não foi assim que você e Robbie ficaram pela primeira vez? Sem a menor vontade de se ver de novo? —num jogo de Verdade ou Consequência.

—Eu tinha uma quedinha por ele então não vale jogar isso na minha cara. —reviro os olhos, recolhendo as roupas e jogando-as na cama.

—Pode escolher alguma coisa. —ela bate palmas animada.

—Eba. Ei, você falou com o Ian depois daquela festa dos seus pais? Ou o Eric?

—Por que?

—Porque eles pararam de falar comigo. —ISSO é estranho. —Principalmente o Ian.

—O Ian? —Becker, sendo super amigável como sempre é, já criou laços com os garotos.

—Ele diz que "não pode falar agora", mas sempre que eu mando alguma mensagem, ele me responde na hora.

—O que ele responde?

—Que não pode falar agora.

Bem...

—Não, não falei com eles. Talvez eles estejam no karaokê hoje. —ela assente, indo vestir uma saia nova que alguém me deu de aniversário. Provavelmente ela. Depois, é minha vez de me vestir, e quando ambas terminamos já é hora de ir. Vamos com meu carro, e estar no lugar do motorista esconde um pouco meu nervosismo, que consome meu interior até não sobrar mais nada a não ser células tensas e energéticas quando chegamos. O balconista só sorri e nos deixa passar, com cara de quem está drogado.

—Ei, garotas! —Ariel grita. No segundo que eu me viro para a encontrar, porém, sei que há algo errado.

Os meninos não estão aqui. Becker olha para mim, um pouco magoada.

—O que é que está acontecendo?

—Eu não sei. Mas vamos lá. —é tudo que eu digo, mesmo que minha cabeça esteja girando. Becker não sabe que eu e Ian brigamos. Mas desconfia —e com razão —de algo errado. Algo está errado. O mundo inteiro está errado, e escolho ignorar isso hoje.

—Ariel! Bobby! —hoje, o cabelo de Ariel está preso em uma trança enorme, e a maquiagem realça os olhos puxados. Bobby está exatamente como da última vez que eu o vi. Permito-me ficar animada em estar aqui, com eles, absorvendo a felicidade que emana dos dois. Permito-me sentir curiosidade e ansiedade (uma ansiedade boa) esperando pela próxima informação que Vivian vai dar. Não me permito pensar sobre ela em si, apenas no mistério de Ariel e seu cabelo azul.

—Olá, olá, olá. —ela beija nossas bochechas, e Bobby nos oferece pizza. —Vocês não vão acreditar no que eu trouxe. —ela puxa uma sacola, e da sacola, fantasias.

Ela não estava brincando mesmo.

—O que —Becker pausa —é isso?

—É uma fantasia. Ou só uma roupa, você que sabe. É Madonna

–anos-70. Uma para cada uma. Hoje é noite de Madonna. Eu já vim caracterizada. —Ela mostra as roupas sem nexo, coloridas e pesadas. A trança não combina, mas o cabelo azul perdoa. Por um momento, Ariel parece confusa.

—Onde estão os outros?

—Vou tentar ligar para eles. —avisa Becker, mas eu a retenho.

—Eles não vem.

Sei com todo meu coração que isso é verdade. Acho que Ian desistiu mesmo. Becker só me encara, com os olhos arregalados, perguntando a si mesma o que eu sei que ela não sabe. Ela não vai querer saber.

Ariel faz uma expressão estranha.

—Como você sabe?

—Eu só sei. —encolho os ombros. Um momento de clareza se passa entre nós, e ela interpreta tudo. Até mais do que eu gostaria, se eu prestar bem atenção ao olhar que ela me dá, algo como eu sei que algo aconteceu mas vou guardar o seu segredo porém só quero que você saiba que eu sei que alguma coisa está acontecendo porque você não pode esconder do seu rosto. Sem vírgulas. Engulo seco e ela me entrega a roupa, demorando-se no ato.

—Vocês meninas querem algo para beber?

—Água. —Qualquer coisa mais forte talvez eu vomite. Sigo Becker para dentro do banheiro e colocamos as roupas. Quando nos encontramos novamente, começamos a rir.

Becker está com luvas de couro, saia curta e jaqueta de couro, e eu estou com um vestido rosa e calça colada por baixo, ambas hilárias.

—Cafona.

—Igualmente.

—Estou com vergonha de sair assim. —engato o braço dela no meu e a puxo para fora, para acabar com isso de uma vez. Encarar de frente é sempre melhor, rápido como arrancar um band-aid. —Eu acho que a Ariel não bate muito bem da cabeça.

—Ela só é diferente. —minha voz não sai tão confiante. Porque parte de mim acha que ela é maluca também, e que Vivian só nos fez encontrá-la para rir um pouco. Não posso me esquecer que estou aqui para encontrar alguma coisa que Vivian deixou para Ariel, mas ela mesma é interessante e ativa o meu lado curioso, que se enche de perguntas que quero perguntar. Duvido que Ariel responda metade delas.

Nós voltamos, e Bobby ajusta a gravata borboleta dele, olhando divertido para Ariel enquanto ela tenta desenhar sobrancelhas mais grossas em si mesma. Volto para o meu lugar nervosa, perguntando-me se essa é a melhor hora de mencionar Vivian.

—Ariel?

—Sim? —olho para Becker, meio que pedindo permissão. Ela assente, me dando confiança.

—Você trouxe aquilo que Vivian te deu? —ela sorri outro daqueles sorrisos secretos para mim. E —sinceramente —começa a me irritar. Eu só quero terminar isso de uma vez. Não quero mais surpresas ou segundos significados, não quero uma aventura que mude minha vida, só quero que isso pare. Descobrir o que tem que ser descoberto e continuar com a minha vida, como Ian conseguiu fazer, como Becker conseguiu fazer. Acabando isso, acaba a dor.

—Sim, sim eu trouxe. Mas primeiro, Madonna. —reprimo a vontade de revirar os olhos para não ser mal educada, e ela se levanta e ajeita o cabelo.

—Querida, acho que a garota quer ver o que você trouxe... —Bobby parece perceber minha impaciência e vem ao meu socorro. Mas assim como acontece com meus pais na maioria das vezes, Ariel não escuta o marido e continua olhando para frente, em seguida vira-se para mim e encosta a mão na minha bochecha. Todos ficam encarando.

—Diana, se eu mostrar a você agora, vai perder todo o significado. Mais tarde, quando estivermos acabados por hoje, então poderei explicar da melhor maneira possível o que precisa ser explicado. Nem todas as perguntas precisam ser respondidas para que isso valha a pena e o mistério não precisa ser solucionado pra que essa noite seja perfeita, então desligue o seu cérebro um pouquinho e deixe a sua mente ser intoxicada pela magia da Madonna.

Eu só fico ali, encarando ela, perguntando-me como ela consegue. Ser tão confiante de si, tão complicada e falando da maneira mais simples possível, complexa e fascinante que chega a doer, causar inveja. Ariel é aquele tipo de pessoa que assiste um filme inteiro apenas por uma cena de três minutos, ou que toma sorvete no inverno só porque gosta, ou uma daquelas mulheres adultas que dançam ao som de Frank Sinatra tomando vinho no final da tarde mesmo depois de ter tido um dia horrível. Ela é como Bukowski disse certa vez: louca, mas é mágica. Eu quero ser como ela, e sou completamente diferente.

—Posso ir primeiro? —indaga ela. —Eu quero muito ir primeiro.

—Claro. —responde Becker

—Pode ir —é tudo que consigo proferir.

Ela sobe no palco, e desliga a luz, deixando apenas um fio de luz caindo em sua direção, iluminando seu cabelo azul. Todo o drama que a envolve, o charme enfeitiçador se quebra quando as batidas de Like A Virgin começam a tocar, e todos reprimem uma risada enquanto Becker engasga de choque. Ariel começa a cantar e por um segundo, acho que se imagina em um show, com dançarinos a sua volta e ela sendo a estrela principal, pois começa a dançar também. Com passos complicados, imitando Michael Jackson, fazendo a maior confusão de todos os tempos, completamente focada. No momento seguinte, algo acontece. Acho que ela perde o equilíbrio ou tropeça nos próprios pés, mas vejo seu corpo cair para frente, saindo do palco e indo direto para o chão.

O mundo inteiro para, congela e silencia na expectativa dos segundos seguintes. Posso jurar que todo mundo para de respirar, até os outros grupos dos outros palcos.

Escutamos um grito. Depois palavras.

—EU QUEBREI A —pausa dramática— PORRA DO MEU NARIZ! MEEEEEERDAAAAAAA. —Ariel começa a gritar e gritar e gritar e chorar e eu não sei o que fazer até que Bobby vai ao seu socorro. Se abaixa junto a ela e o resto passa em um borrão. A próxima coisa que eu estou fazendo é entrar no carro e seguir a toda velocidade o carro de Bobby até o hospital.

—Ai meu Deus, ai meu Deus. —Becker repete várias vezes.

—Ela só bateu o nariz. —tento acalmá-la, mas estou tremendo. Os carros passam por um borrão entre a estrada e minha sorte é que Becker me diz quando estamos em um sinal vermelho. Entrando no hospital, saímos do carro a tempo de ver Bobby e Ariel seguindo para dentro, e uma enfermeira se aproxima. Ficamos a alguns metros de distância, deixando que eles resolvam a situação e a enfermeira guia Ariel para uma sala, enquanto Bobby vem até nos, meio vermelho e com gotas de suor na testa.

—A enfermeira disse que vão dar uma olhada. Ariel começou a reclamar do pescoço também então acho que deu um mal jeito. Nada sério.

—Graças à Deus. —uma mulher passa por nós e fica encarando. Depois, o filho nos encara por ainda mais tempo, como se fôssemos loucas. Olho para as minhas roupas e as de Becker: ainda estamos vestidas de Madonnas.

Uma mulher mais velha passa e sorri para nós. Sinto-me no holofote, mas ficando completamente corada.

—Vamos sair daqui? —consigo pronunciar, antes que fique tomada pelo desconforto da atenção desnecessária.

—Vamos para o corredor. —Bobby nos leva até o corredor do hospital, e Becker e eu sentamos no chão.

—Você está mais calma? —pergunto a ela, porque quando fica nervosa, Becker costuma pirar tanto quanto eu. Ela assente, depois olha para as minhas roupas e reprime uma risada que acaba escapando com mais força ainda, virando uma gargalhada.

—Aquilo foi meio engraçado. —refaço a cena na minha mente, Ariel dançando, caindo e gritando e começo a rir também.

—Me sinto mal por estar rindo. —mas não consigo parar. Uma enfermeira quase idosa passa por nós e olha feio, como se sentisse ofendida pela nossa risada, mas não há ninguém por perto além de Bobby para observar, e nem ele está prestando atenção. Ficamos rindo sozinhas, parecendo idiotas, mas com toda a razão do mundo depois de olhar novamente nossas roupas.

Uma porta se abre, e a enfermeira chama Bobby. Ele entra, mas avisa que vai voltar logo. Nesse meio tempo, minha irmã me liga. Ficamos conversando por alguns segundos, mas Claire chora ruidosamente no fundo, e Gwen suspira, indo direto ao ponto.

—Você sempre acalma ela, Diana. Cante alguma coisa. —diz ela, perdendo a paciência.

—Está falando sério? —a ideia de cantar para alguém logo depois de sair de um karaokê é meio surreal, como se isso fosse um sonho cômico que eu ainda não tenho consciência. Não parece verdade.

—Eu não sei mais o que fazer!

—Eu não sei cantar!

—Você canta pra ela toda hora quando vamos te visitar, sua idiota. É minha última esperança.

—O que você vai fazer se ela não parar? —questiono, alarmada.

—Deixar ela chorar e rezar pra que pare logo. Nem Irmão Urso consegue fazê-la parar. —suspiro.

Quão ruim pode ser? Uma hora ou outra nessa noite eu teria que fazer. Não é grande coisa. Gwen bota Claire no telefone, e só escuto o choro de bebê dela, que mesmo ao telefone é irritante.

—Ei, Claire. —Continua chorando. —Claire. —cantarolo, sem sucesso. Olho para Becker e coloco no viva-voz. Ela faz uma careta quando escuta o choro. —Vamos cantar. —sussurro. Becker ergue uma sobrancelha.

—Não. —sussurra de volta. Nos comunicamos pelo olhar, travando uma batalha até que ela perde. —Tá. O que a gente canta?

Só consigo pensar em músicas da Madonna. Falo isso para Becker, ignorando o choro de Claire e seu rosto se ilumina. Ela conta um, dois, três nos dedos e começa a cantar True Blue, e eu acompanho, me segurando para não rir ou parar, porque é meio ridículo.

Fazemos um coro na hora do refrão e Claire começa a rir. É aquele risinho de bebê que você não quer mais que pare. Repetimos o refrão e Becker faz uma dancinha —sentada — e eu estralo os dedos, marcando o ritmo, entrando na música. Bobby sai do quarto e faz um movimento de quem quer falar alguma coisa, mas para quando nos vê.

—Vocês levaram esse negócio de Madonna bem a sério. —aponto para meu celular sem parar de cantar. —Ariel quer falar com você. —Viro-me para Becker, e ela acena, me dispensando. Bobby balança a cabeça, como se não acreditasse no que estamos fazendo e me deixa entrar, fechando a porta quando estou cara-a-cara com Ariel, em uma cama. Com um imobilizador de espuma envolta do pescoço e uma faixa no nariz com uma mancha de sangue. A enfermeira começa um processo de limpeza. Tenho que me segurar para não rir.

—Pode rir, é engraçado.

—Desculpe. —a enfermeira tira a faixa, e aplica um tipo de gel na área vermelha do nariz dela.

—A sua sorte é que não quebrou o nariz, só sofreu uma batida.

—A minha sorte. —Ariel comenta, revirando os olhos. Depois me olha. —Venha até aqui. —hesitante, caminho até o pé da cama, mas ela indica para que eu chegue mais perto e eu sento na beirada da sua cama. Quando a enfermeira termina o seu trabalho, avisa que Ariel vai poder sair assim que o médico der alta, e que não aconteceu nada grave.

—Tudo que fizemos foi por precaução, caso ocorra alguma sequela.

—Obrigada.—Ariel diz. A enfermeira sorri e sai do quarto, então ela se vira para mim, me olhando como se soubesse de algo que não sei.

—Diana, Diana, Diana... pegue a minha bolsa ali no sofá. —faço o que ela me pede. Com dificuldade, ela consegue olhar para baixo por tempo o suficiente para tirar um pedaço de papel de dentro da bolsa e me entrega. Rapidamente, sentindo meu coração voar pela janela, abro para encontrar um poema. No canto de cima, o título: A VIAGEM. E embaixo, o nome da poetisa: MARY OLIVER. Não é uma página de um livro —é impresso, mas não no formato de poemas publicados— porém contém uma informação, assim como aconteceu comigo e Anne Sexton, na casa de Bridgette Kowki. A letra de Vivian é inconfundível. Duas palavras: Santa Filomena.

Santa Filomena? O que isso quer dizer?

—Você vai descobrir. Se eu consegui, você consegue.

—Isso quer dizer que ela deu lugares pra você ir também? —ela sorri, um sorriso brilhante e misterioso como a lua. De repente, levanta-se da cama e vai até a janela. Só então percebo quão alto estamos no prédio do hospital. As luzes dos prédios parecem mais fortes na escuridão da noite. Lembro que alguns dias antes, eu estava andando por essas ruas sozinha e desconsolada, irritada e magoada e tento me lembrar de como era me sentir daquele jeito. Mas é como se a altura impedisse aqueles sentimentos de me alcançarem, e tudo que eu tenho são duas palavras e esperança.

—Bem vinda ao mundo, Diana. Coisas lindas e coisas terríveis vão acontecer, estão acontecendo e já aconteceram. Muitas delas nós não temos consciência. Nem sabemos que estão acontecendo. Mas algumas vezes, algum cometa se choca com o nosso, e experienciamos essas coisas lindas e terríveis. Algumas vezes são terríveis ou lindas. às vezes, as duas coisas juntas. —Como Vivian. —Mas esses cometas nunca se chocam por chocar. Isso vem de direções que eles tomaram e escolhas que fizeram, tudo que os levou até aquele momento. Não desperdice nenhum cometa. Um dia, todos eles vão embora. Vivian me deu isso e eu segui seu rastro. Eu conheci pessoas. Mais cometas para a minha coleção, sim. Todos nós estamos conectados, querida. O mundo só é grande quando a gente sonha. Mas de verdade, ele é minúsculo.

Vivian sempre me disse a mesma coisa. Acho que ela significou tanto para Ariel quanto para mim.

—Obrigada.

—O prazer é meu.

—Quando isso... termina?

—Você vai saber. —reviro os olhos do seu tom misterioso.

—Eu não consigo imaginar você e ela se conhecendo em um karaokê.

—É porque a gente não se conheceu em um karaokê. Nem chega perto disso. —A encaro, curiosa. Eu quero muito saber. Ela balança a cabeça e tenho que controlar minha impaciência e meu humor. —Eu sei, querida. Eu sei. —Ela dá batidinhas no meu ombro. Alguém bate na porta, depois Bobby abre minimamente.

—Já deram alta. —avisa. Ariel pega sua bolsa e assente. Bobby fecha a porta. Ariel olha para mim com a charme de sempre.

—Ei, não esqueça, tá bom? E permita que seu coração e seu corpo se choquem com esses cometas, mesmo que às vezes eles brilhem forte demais. E não se esqueça de brilhar. Se não me entendeu, você também é um cometa também.

—Obrigada. —digo, enquanto observo ela sair. Talvez seja o encanto da noite, mas não parece que estou agradecendo apenas Ariel. Estou agradecendo aos cometas, e a Sylvia Plath e Anne Sexton e St. Mara, e Shakespeare e todas essas pessoas que me trouxeram para esse exato lugar.

Me chocando com um universo inteiro com o coração....

obrigada.


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Notas finais do capítulo

espero que tenham gostado??????



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