Paper Women escrita por MrsHepburn, loliveira


Capítulo 14
Santa Filomena


Notas iniciais do capítulo

hello hello hello então eu não tive muita inspiração nem tempo pra revisar esse cap então se alguma palavra estiver errada não me matem
ps eu fiz um pinterest board pra essa fic desde o começo, só que ele é privado. No momento, tem mais de quinhentos pins sobre praticamente tudo da fic, inclusive spoilers então não vou colocar como um board publico. porém, eu fiz dois boards publicos chamados Gwen e o outro Vivian onde eu coloquei as fotos que eu achei mais importante pra mim sobre a gwen e a vivian. se vocês quiserem dar uma olhada. Não é tanto pela aparência, mas acho que da pra sacar um pouco da personalidade das duas nas fotos. Não são muitas, mas são importantes. Acho que depois vou fazer isso com os pins dos outros personagens, o que acham?
Os boards estão aqui www.pinterest.com/wohotobias/vivian/ e www.pinterest.com/wohotobias/gwen/



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Há duas maneiras de fazer isso: eu posso procurar por Santa Filomena, ou posso rezar para ela.

Realmente, são as minhas únicas opções. Há uma loja de artesanato e um restaurante com esse nome. Há também um daqueles grupos de missionários que se encontram para rezar para ela e esse grupo tem mais de cem pessoas, então acho que a probabilidade de eu encontrar alguém que conheceu Vivian é mínima. Principalmente porque o grupo reveza e nem todos se encontram nos mesmos dias. Sei disso porque quando compartilhei a informação com Becker, sua primeira ideia foi contatar o grupo, já que uma tia dela participava. Ela ficou bem decepcionada quando tivemos que descartar a ideia.

—Somos obrigadas a ver a loja e o restaurante. —ela me disse, quando saímos da escola. Eu não queria. Parecia uma piada pior do que a da última vez.

Sério? eu perguntei para ela.

Seríssimo, argumentou Vivian. Então eu fui. A única razão de eu ter continuado é que um karaokê não parecia tão interessante até Ariel Fieldman aparecer. O que faz um lugar interessante muitas vezes são as pessoas, e não o lugar em si. Mesmo que depois —por experiência própria —eu saiba que um restaurante e uma loja são muito mais desinteressantes que um karaokê, não custa tentar.

O restaurante Santa Filomena é um cantinho decadente no fim da avenida Richmond, perto da estrada que leva até Nova York. A Richmond é a rua mais pobre da cidade inteira, onde o governo se esqueceu de fazer qualquer coisa. O restaurante fica em uma casa normal, só que maior e com letras pintadas em azul em toda a extensão da parede branca, anunciando RESTAURANTE SANTA FILOMENA: ONDE A COMIDA É ABENÇOADA.

—Não foi o melhor trocadilho. —comenta Becker.

—Nenhum trocadilho combina com nomes de santos. —faço a observação. Dos lados do restaurante, há areia e galinhas, cercadas por arame enfarpado e cacarejando toda hora. Minha amiga me lança um olhar desconfiado, ou talvez perguntando por que tem galinhas ali. Nunca vi galinhas na cidade. Nunca. Dou de ombros, incapaz de respondê-la. É hora do almoço, há três carros estacionados e o meu se junta a coleção. Saímos do carro sentindo o aroma da comida e aquele ar de almoço, quando todos param de trabalhar para descansar. Fico cansada só de pensar nisso. E eu me arrependo de tudo que cheguei a pensar sobre esse lugar, porque o cheiro é incrível e estou com fome. Apresso Becker para dentro, onde somos encontrados por uma recepcionista de no máximo sete anos. Com o cabelo em uma trança, shorts e uma blusa maior do que o seu corpo, ela sorri com a boca e os olhos, brilhando para nós. Reconheço o brilho porque Claire tem também, e talvez seja esse o encanto das crianças.

—Bom dia. —cumprimenta-nos. Becker, enfeitiçada, abre um sorriso do tamanho do sol, combinando com seu cabelo da mesma cor.

—Oi, fofinha, o que tem pra comer aqui? —reviro os olhos ao escutar a pergunta. Na parede onde o bufê se encontra, uma grande placa feita com chapas de plástico mostra as variedades, e a menina aponta para meu foco de visão, indicando a resposta. Becker aquiesce. —Obrigada.

—Bom apetite.

Assentimos, adentrando o restaurante. Um homem atrás de nós entra pela mesma porta e ouvimos a menina repetir o bom dia.

—Obrigado. —diz ele.

—Bom apetite. —remenda a menina.

Acho que está programada para dizer essas duas frasezinhas, mas admiro a habilidade de fazer isso com um sorriso, como se amasse estar ali. As mesas são de madeira, com uma toalha de mesa em xadrez em cima, e uma garrafa de vinho vazia, que guarda uma flor branca dentro. Deixamos as nossas bolsas nas cadeiras, e Becker vai até o bufê. Eu vou até o balcão do caixa, onde uma mulher loira, parecida com a menina da entrada, guarda repetidamente dinheiro com precaução e olhando para a quantidade não muito grande de gente almoçando, para ter certeza de que ninguém quer roubar o estabelecimento.

Olha para mim com certa desconfiança.

—Posso ajudar? —com um relance, percebo que guarda um maço de dinheiro no caixa com a maior velocidade, disfarçando para que eu não perceba. Finjo que não aconteceu nada.

—Você é a dona daqui? —ela assente.

—Eu e meu pai. —sua voz sai mal humorada, cuidadosa. Faço que sim, levando a conversa adiante.

—Por um acaso, você conheceu uma mulher chamada Vivian Winter?

—Por que? Ela matou alguém?

—Então você conhece ela?

—Não sei se você percebeu, moça, mas está no fim da Richmond. Aqui quando procuram por gente ou morreu ou matou. —fico com pena pela garotinha, mas não deixo-me abalar.

—Ela morreu. Mas não é por isso que estou aqui.

—Bem, eu não conheço essa tal Vivian.

—Alguma chance do seu pai conhecer? —ela bufa.

—Meu pai é casado há vinte anos com a mesma mulher que o impede de sair até pra jogar no bingo de tão invejosa. Sinto muito, mas ele não deve conhecer, não.

—Tem certeza? ·—posso sentir sua ira enquanto me encara sem dizer nada, mas não posso arriscar deixar qualquer informação escapar. Permaneço firme por fora e derretendo por dentro.

—Eu conheço meu pai, sim?

—Claro... uh, mais alguém trabalha aqui? —ela balança a cabeça.

—Só eu e ele. Todo dia de manhã, preparando comida. —vencida, assinto um pouco menos entusiasmada. De alguma maneira, eu sabia que não iria conseguir tão fácil. Minha sorte não é tão grande assim. Na verdade, é até zero considerando os acontecimentos recentes.

—Tudo bem. Mas obrigada. E a comida parece deliciosa. —mas a moça não escuta o elogio, porque se vira numa tentativa de recontar o dinheiro sem meus olhos testemunhando tudo. Então faço meu caminho de volta e começo a pegar comida. Na nossa mesa, conto para Becker o que a mulher me falou.

—Droga, ia ser legal fazer amizade com um dono de restaurante. Principalmente com a comida tão boa.

Ela deve estar certa, mas mal toco na minha comida. Na minha cabeça, tento montar o quebra cabeça que se desenrola na nossa frente. Não tenho todas as peças, mas talvez Becker consiga encaixar algumas que não consigo encontrar, para dar uma visão melhor a situação.

Penso no que Becker disse, sobre fazer amizade com o dono do restaurante se ele conhecesse Vivian. É esse o motivo que ela está nos levando nisso? O "por quê"? Eu costumava pensar que era uma jornada para conhecermos um lado dela que nunca havíamos visto antes, mas Ariel não é exatamente a melhor pessoa para se dar informação. Tudo que resultou dela foi algumas risadas, bons amigos e mais perguntas. Mas ignorando essa parte da incógnita, volto a pergunta. Amizade? Conhecimento? Diversão?

—Nós vamos saber no final, provavelmente. É como um livro. —Becker sugere quando digo o que estou pensando. Mas eu não gosto desse desfecho. Como um livro. Algo me incomoda, mas não sei dizer o quê.

Passo para Ariel:

(1) como ela e Vivian se conheceram? (2) por que não podemos saber disso? (3) por que ela não me conta nada?

—Ela disse que eu ia descobrir por mim mesma, mas é difícil. —e eu já tentei muitas vezes. Isso me irrita um pouco. É como quando meu pai quis me ensinar a dividir um dia, quando eu era menor. Ele sentou comigo e ficou me explicando, mas eu simplesmente não entendia o sistema de divisões nem porque eu não podia dividir nada por dez. Ele ficava irritado e começava a dizer:

—Mas está bem aí! Na sua cara, Diana! —o que não era verdade, visto que eu nunca havia estudado aquilo antes. Mas é fácil dizer que é fácil quando você já entende. Quando aquilo é fácil para você, parece fácil para todo mundo. Mas divisão era difícil para uma menina da minha idade e meu pai sabia daquilo a vida toda. Eu costumava me sentir mal, como se fosse algum problema comigo, que eu era burra, mas depois percebi que é só uma questão de perspectiva e prática. Então perdoei.

Mas Ariel parece que está brincando comigo. E ao mesmo tempo que eu a adoro, o mistério me irrita por parecer tão fácil e ser tão difícil. Ela é a divisão mais complicada que tive que resolver. E ainda não consegui.

—Bem, vamos ver, Ariel trabalha para uma editora, assim como seu marido Bobby. Ele não sabe nada sobre Vivian, apenas ela. Vivian adorava livros, talvez tenham se conhecido por causa deles. Ela poderia estar escrevendo um livro...

—Ela teria dito.

—Você não pode descartar nenhuma opção.

—Tá certo, continue. —ela recomeça depois de comer.

—Elas se tornam grandes amigas. Talvez ela tenha sido madrinha de casamento de Ariel. Talvez é uma prima. Nós temos que descobrir como se conheceram. Sozinhas.

—Certo.

—Então, tem essa coisa das cartas. É meio mórbido pensar que ela teve tempo de escolher poemas e mandar pra vocês duas com endereços de lugares misteriosos. Talvez seja um círculo, e ela queria que todos vocês se conhecessem.

Talvez, talvez, talvez. Quero queimar essa palavra.

—É uma possibilidade.

Possibilidade. Odeio essa palavra também.

—É um mistério.

Odeio todas as palavras. O alfabeto, o dicionário, as letras, línguas.

—É.

—Você não vai comer?

—Acho que não.

—Posso pegar sua batata frita? —Becker questiona, com o mesmo brilho nos olhos que vejo nas crianças. Comida faz isso com ela.

—Vá em frente.

Ela vai. Enquanto come, eu fico pensando novamente. Quando minha mente vai em direção a Ian, eu tento voltar para minha linha de pensamento, mas a verdade é que estou um pouco magoada e isso reverbera nos cantos do meu inconsciente. Não sei o motivo e sei que é idiota, mas Ian parecia legal. É triste, como nossas expectativas viram só areia depois de serem castelos. Que seja. Não posso pensar nisso agora.

—Eric e Ian ainda estão te ignorando? —pergunto. Com a boca ocupada, minha amiga assente, parecendo melhor do que da última vez que mencionei o assunto. Aquiesço e fico quieta. Quando termina, Becker e eu pagamos nossos almoços para a mulher com o olhar gélido e agradecemos pela comida.

—Tá, tá.

É tudo que ela diz. Outra vez no carro, Becker e eu começamos a fazer nosso caminho até a loja de artesanato, em silêncio. Por alguma ironia do destino, não é muito longe. É perto da interestadual, ainda mais perto de Nova York. Paramos. Entramos. Quando passamos pela porta, um daqueles sininhos soa e uma mulher aparece do balcão. Negra, com os cabelos brancos e um sorriso pesado, de quem carrega dezenas de anos nas costas. Com um vestido que não esconde o peso, ela sai do balcão com dificuldade e vem até nós.

—As jovens vão querer alguma coisa? —quando chega perto, posso detectar rugas e linhas de expressão. Ela tem tantas que praticamente se agrupam a todos os seus anos de vida. Seu sorriso é impecavelmente branco.

—Só estamos dando uma olhada. —falo. Minha ideia era ir direto ao assunto e não perder mais um segundo, mas eu sou hipnotizada pelo interior da loja. Por todas as prateleiras, grandes, pequenas e maravilhosas estátuas e tudo que você imaginar de cerâmica, alinhados um do lado do outro, como se estivessem fazendo fila para se mostrar. Um cisne de cerâmica dá um tom triste na primeira prateleira, roubando a cena de todos os outros objetos. No fundo, uma máscara africana deixa o ar sombrio, quase sagrado, protegendo todos com o olhar profundo e vazio ao mesmo tempo. Há uma mesa enorme entre o balcão e nós, com mais objetos. Carrinhos, aviões, bonecas sorridentes, manequins do tamanho de uma Barbie. Tudo. Escondido em umas das paredes, há uma foto de uma criança. Lhe dou uns cinco anos, no máximo. A mulher percebe que estou encarando e volta a falar.

—Minha bisneta.

—A senhora está sozinha? —Becker pergunta. Me preocupo igualmente, porque ela parece bem idosa e duvido que consiga pegar todos os objetos em cima das prateleiras. Parece uma daquelas pessoas que você escuta suas histórias e conselhos, abraça a procura de consolo. Não uma mulher que fica o dia todo em uma loja sozinha, preparada para uma tragédia.

—Eu consigo me cuidar, criança. Oitenta anos de conhecimento.

—Deus te abençoe. —comenta Becker, meio chocada. A idosa deixa espaço para que exploremos o lugar, então começamos a caminhar. Pendurada em uma das paredes, uma lua minguante de madeira sorri para nós. Ela me lembra Ariel, salpicada com as feições misteriosas de quem carrega consigo mais do que sabe. É hipnotizante.

—Você gostou? —faço que sim. —É Haru. —levando em conta meu olhar confuso, ela se explica. —Haru, em japonês, significa primavera. Na minha família, a lua significa primavera. Começou muito tempo antes de eu nascer. —o que deve ser muito tempo mesmo. —Foi meu filho que entalhou essa para a loja. Minha bisavó era japonesa.

—Mas... por que primavera? —Becker pergunta, com uma coruja feita com conchas em uma das mãos.

—Florescer. —a voz da idosa treme levemente, e ela respira com dificuldade, como se estivesse salvando respirações. No segundo seguinte, percebo que minha suposição estava correta, pois ela começa a nos contar uma história. — A lua cheia é o ápice da primavera, porque está completa e brilhante, assim como as flores são coloridas e florescidas, feito adolescente. Mas a época mais importante é quando as pétalas se abrem e a flor brota. Essa é a lua minguante, a expectativa. Haru. Basta um olhar para cima, para a lua e você sente. A mesma paz que sente na primavera. Durante a guerra, quando eu estava fugindo da Áustria para os Estados Unidos com a minha irmã, que Deus a tenha, ficamos junto com outras famílias numa barça para atravessar o pequeno rio onde costumávamos brincar quando éramos criancinhas. Meu pai, que Deus o tenha, com medo de nos perder, fez uma marca em nossa pele com a unha, como uma lua minguante. Dessa forma, nós nunca nos perderíamos e sempre nos lembraríamos da lua. Da esperança. —ela ergue um dedo, com a ponta esbranquiçada, dando-nos um sermão que só alguém digno de tamanho respeito e moral como ela pode fazer.

—É inspirador.

A mulher balança a cabeça.

—É o sofrimento. Ele romantiza e inspira, mas nunca ajuda em nada quando foi a gente que viveu. Apenas a lua é própria para inspirações, criança.

—Me perdoe, qual é o seu nome?

Ela murmura o nome, mas não consigo entender, nem repeti-lo em minha cabeça, a pronúncia certa acaba se perdendo. Peço que ela repita, mas apenas só sorri. —May.

May. Eu consigo pronunciar isso. Sorrio de volta. Becker aproxima-se.

—Dona May, eu vou levar essa coruja. —May pega a coruja, limpando-a com as mãos, delicadamente. Olha para mim.

—A senhorita vai levar alguma coisa, também?

Subitamente, relembro o porquê de estarmos ali. Isso apaga um pouco a memória da guerra e da lua que estava na minha cabeça, por causa da história de May e preenche o espaço com uma teia de mistérios. Mesmo assim, continuo a conversa.

—Vou levar a lua.

A julgar pelo sorriso de May, ela já sabia.

—Muito bem, criança. Haru lhe agradece.

—Uh, tudo bem. —as palavras certas não me vem. É tudo esquisito demais. Decido ir pelo caminho mais simples. —Posso perguntar uma coisa?

—É claro.

Ela caminha com dificuldade até o balcão, para embrulhar nossas novas aquisições.

—Você conheceu uma mulher chamada Vivian Winter?

Por favor, diga sim. Por favor, diga sim. Diga sim. Por favor, diga sim. Em um momento de desespero, peço à lua de May por ajuda, esperança. A idosa pensa por alguns segundos, com os olhos fechados e a testa franzida, como se passasse um pente fino por suas memórias desgastadas com o tempo.

Por favor. Diga sim. Se May fosse quem Vivian queria que encontrássemos, seria perfeito. Olhando para essa mulher, e o tamanho de conhecimento que ela deve ter, o quanto poderia nos ensinar, todas as memórias de guerra e luas. Só de olhar para ela consigo perceber que assim como Bridgette Kowki, ela tem mais sabedoria do que jamais vamos descobrir. Mas eu tentaria.

—Não, criança. Eu não conheço nenhuma Vivian Winter.

—Tem certeza?

Ela é velha, sim. É compreensível que esqueça de alguma coisa. May responde como se lesse meus pensamentos.

—Lembro até do dia em que minha querida irmã, que Deus a tenha, nasceu. E eu tinha apenas seis anos. Uma criança, como vocês.

Acho que a sua contagem está um pouco errada, mas não falo nada.

—E sou responsável pelo pagamentos de todas as contas de casa. Sem me esquecer de uma. Por trinta anos. Minha memória ainda não se apagou, dona moça. —ela tenta me provocar, mas sua voz sai dócil.

—Acredito em você. —cedendo, replico. Mas a derrota me atinge, e é decepcionante. Parecida com aquele sentimento que vem quando um copo cai no chão e você fecha os olhos, com medo de ver o estrago. Então abre os olhos e vê os caquinhos quebrados em mil, cada vez menores e espalhados pelo chão. Entretanto, por respeito à May, minha expressão se mantém intacta. —Tudo bem, então. Obrigada. Quanto foi tudo?

Ela faz as contas e diz o preço final. Becker e eu dividimos a conta. Na hora de ir embora, Becker dá um abraço delicado em May, como se ela fosse quebrar. Ela fecha os olhos, talvez meio emocionada. Em seguida, dá um beijo na testa de Becker, como se ela fosse sua neta. Quando vou me despedir, ela dá um tapinha na minha bochecha com as mãos pesadas e sorri. Não consigo deixar de sorrir também, meio envergonhada sem saber porquê.

—Eu espero que você se torne primavera algum dia também, criança. Tenha um bom dia.

Então ela se vira e entra na loja, deixando-nos na porta. Como se não tivesse dito nada demais ou que falasse todos os dias para as pessoas se tornarem primavera. Ao mesmo tempo que estou meio desconfortável, é como se eu achasse um consolo em toda essa confusão, e achasse o porquê de tudo. O x da equação.

Eu estou tentando virar primavera.

Isso é meio idiota e eu nunca diria isso em voz alta, mas é como encontrar uma estrada que guie para o caminho certo. E mesmo que May não seja parte do roteiro de Vivian, tenho certeza que faz parte do meu.

Eu levo Becker até sua casa. Quando sai do carro, vira-se para mim com um olhar resignado.

—A gente vai descobrir, tá? Não se preocupe.

Percebo um instante depois o que ela está fazendo: me consolando. Assinto, dando um sorriso próprio para acalmá-la. É uma mistura de tristeza e compreensão, como se estivesse aceitando nossa derrota temporária. E desde que seja temporária, aceito mesmo. Estou cansada por hoje. Ficar sozinha me deixa meio triste. Faço meu caminho até em casa em silêncio, pensando no que diabos vou fazer agora. Não faço a menor ideia. Coloco meu carro na garagem e tiro minha bolsa, já que Becker e eu fomos direto à caçada depois da escola. Depois pego a minha lua. As luzes estão todas apagadas, exceto a do escritório da minha mãe, como sempre. Passo por lá antes de ir para o meu quarto.

—Oi, mãe.

—Diana.

—Onde é que o papai está?

—Ele teve que ir para Nova York. —ela não desgruda os olhos da tela do seu computador. Digita freneticamente, como se o computador for explodir em alguns segundos e houvesse milhares de coisas que ela precisa resolver antes disso acontecer.

—Hmmm, tá bom.

—Onde você estava?

—Fui almoçar e ir em uma loja com a Becker. Comprei uma coisa. —levanto a lua para que ela veja. Seus olhos continuam encarando o computador.

—Posso ver isso depois quando o extrato do banco vier. Então conversamos.

—Uh, tudo bem. Eu vou subir. —aviso inutilmente, pois ela nem me responde. Subo para o meu quarto, e coloco as coisas em cima da cama. Em seguida, pego minhas roupas e e abro a torneira, fazendo com que a água desça até a banheira, enchendo-a. Preciso de alguns minutos de paz e sossego, onde —se a sorte estiver ao meu favor —posso conseguir desligar minha mente. E quando estiver com as emoções controladas, talvez consiga me concentrar o bastante para estudar.

Meu plano é ótimo, porém vai por água abaixo quando minha mãe grita meu nome. Minha primeira reação é paralisar, porque ela nunca grita meu nome. Mas depois, meus sentidos voltam e eu vou a seu encontro, escada abaixo depois de desligar a água corrente. Corro para o seu escritório, mas não a encontro lá. Meu coração acelera conforme minha mente raciocina as possibilidades: alguém pode ter entrado aqui em casa e sequestrado ela ou algo do gênero.

Felizmente, ela grita novamente.

—Diana! —sigo o som até a porta de casa. Meus olhos encontram os dela, gélidos. Oh-oh, penso, o que eu fiz agora? Ela abre a porta por um espaço suficiente para que eu veja quem está ali, parado.

Ian.

Mas é um Ian diferente. Esse Ian parece sonolento e descontraído, não aquele Ian controlado ou raivoso que eu sempre vejo. Então, ele dá um passo para trás, cambaleando e eu chego mais perto. Sinto cheiro de álcool. Vindo dele. Olho para minha mãe, e consigo sentir sua fúria e decepção, tão intensos que eu sinto que vou desmoronar com seu olhar. Olho para Ian outra vez, e é estranho. Ele parece normal. Mas não está.

—Esse jovem estava procurando por você.

—Huh. —é a coisa mais inteligente que tenho para dizer.

—Agora consigo ver de onde Diana tirou a beleza. —ele diz. Sua voz não parece entrelaçada com bebida, mas sei detectar. Infelizmente, minha mãe também. E ela não parece feliz com o elogio.

—Converse com ele. Estarei no meu escritório. Passe por lá mais tarde. —sua voz é fria e dura. Talvez furiosa que ela deixasse mostrar um pouco mais. —E da próxima vez, não dê seu endereço para bêbados. —murmura ela no meu ouvido quando sai. Sua voz me dá arrepios. Eu estou ferrada. Ela sai e vai até a cozinha, mas longe do nosso campo de visão.

—Ian?

—Diana. —ele consegue ficar em pé sob os dois pés normalmente agora e pode se passar por alguém sóbrio, mas suas pupilas estão diladas e os olhos vermelhos. E sua fala é pastosa, zonza. —Me desculpe meeesmo. —diz ele. Junta as mãos e se aproxima, fechando os olhos.

—Quanto você bebeu?

—Não sei. Mas minhas desculpas são sinceras.

—Ian...

—Eu sou tão babaca. —Ian choraminga. Ao mesmo tempo que sinto pena, sinto raiva. Esse garoto é tão complicado que faz minha cabeça doer.

—Sim, você é. Como chegou aqui? —pergunto, ignorando os "me desculpe, me desculpe, me desculpe" dele.

—Eu vim de carro mas não consigo encontrá-lo.

Do outro lado da rua, seu carro está estacionado.

—Ian, quem eu posso chamar pra vir te buscar? Vou ligar para o Eric. —Ian solta um risinho.

—O Eric não tá nem na cidade. Se não estaria aqui comigo. Eu não tenho nin-guém. —ele pausa no meio da palavra. Fico em silêncio, contemplando seu estado deplorável. —Eu preciso que você me perdoe, Diana. Me perdoe. —ele fecha os olhos e encosta na porta. Eu sacudo seu ombro, com medo que ele comece a dormir e caia bem ali. —Diana, me perdoe.

Isso é tão confuso. Ele fala como se estivesse sóbrio, mas sei que está bêbado. Não sei em que parte dele acreditar. Estou em conflito e sozinha. Fico encarando a cara de tortura que ele faz quando abre os olhos, como se a luz o incomodasse.

—Sou um idiota.

—Sim. —é tudo que digo. Ele se aproxima mais, mas dou um passo para trás. Quando percebe, ele arregala os olhos e vejo que a clareza volta para eles. Ele cobre o rosto com as mãos, gemendo.

—Você... pode... me levar pra casa? Eu... —ele não termina a frase, mas tenta. Abre a boca para falar mas nada sai.

—Quanto você bebeu?

—Algumas garrafas. Isso importa?

Suspiro. Não importa. Já aconteceu. O estrago já foi feito. Olho para ele por alguns segundos, decidindo se eu o odeio ou não.

Não consigo. Não consigo odiá-lo, quero dizer. Queria que minha alma fosse de ferro e fizesse ele pagar pelo que está fazendo, mas não consigo. Olho para ele e vejo alguém mais perdido que eu. Ele está sendo um babaca, sim, mas... eu sinto pena dele. Permito-me sentir compaixão por ele, mesmo que tenha ferrado com a minha vida.

—Cadê a chave do seu carro? —ele me estende a mão, mostrando a chave. Me ocorre que ele dirigiu nesse estado sozinho e meu coração se enche de horror do que poderia ter acontecido. Me sinto como uma mãe decepcionada com o filho, querendo dar um sermão em Ian e isso só me deixa pior, porque me lembro de Vivian. E que ela não está aqui para fazer isso. Toda a raiva que eu deveria sentir dele, transfiro para ela. E é mais fácil de lidar com a raiva de uma pessoa morta, porque ela não está aqui para desfazer isso. Pego a chave da sua mão e não me incomodo em avisar minha mãe. Uma infração a mais não dói. Ou dói, e só vou descobrir depois.

Levo-o até o carro, depois entro e dirijo até sua casa. Durante todo o caminho, ele fica repetindo o "me perdoe", com pausas de silêncio entre as súplicas. Fico irritada por volta da décima vez que ele recomeça a falar.

—Eu te perdoo, Ian. Agora cale a boca. —digo, quando perco a paciência de vez. Ele solta um suspiro e fica quieto o resto do caminho Eu paro o carro na frente da casa enorme, incerta do que fazer. De relance, roubo um olhar em sua direção. Ian está olhando para frente, como se a vista mais bonita do mundo estivesse sendo pintada na frente dele. Um momento se passa, então eu percebo. Ele percebe.

Sabe que estou olhando-o. Acho que ouço um soluço, mas acaba tão rápido que não consigo discernir.

Ajudo-o a sair. Ele é pesado e deixa todo o seu peso para mim, mas felizmente anda normalmente. A porta da casa está aberta. Reviro os olhos do descuido dele. —Onde é seu quarto? —Ian aponta para a escada, indo sozinho. Quando tropeça, eu resolvo subir com ele, e faço ele deitar na cama. Ajudo-o a tirar os sapatos e fecho a janela para não deixar o frio entrar. Ele geme quando cai na cama, e eu fico em pé ali, me sentindo horrível por esse garoto que eu nem conheço. O seu quarto é azul, mas nada ali demonstra que um garoto dorme nele. Tudo arrumado, no lugar. Curiosa, eu até abro as gavetas: todas as roupas dobradas e no lugar certo. Será que Ian faz tudo isso? Deixando ele sozinha por alguns momentos, com a certeza de que ele não vai mais causar problemas no seu estado e ando um pouco pela casa. É grande e tem bastante quartos, a maioria de hóspedes que ninguém usa. No final do corredor, uma janela enorme está aberta e eu a fecho, por proteção e pelo frio. Do outro lado da rua —percebo pela janela —uma casa enorme. É exatamente na frente da casa de Vivian e praticamente imita suas proporções. Uma estátua aponta para o céu na sua frente. Acho que é parte de uma fonte ou algo assim. Não consigo ver as características por causa da escuridão, mas consigo traçar suas formas pela sombra. O resto são casas normais. Não é uma vista muito interessante. Vou até a cozinha e pego um copo de água. Depois, procuro pela casa inteira remédios e acho um armário no banheiro, cheio deles.

Xanax, Citalopram, Buspirone. Remédio para ansiedade, combinados com fatores antidepressivos. E estão espalhados na pressa do dia-a-dia, então alguém os usa. Caixas vazias e caixas cheias. Prescrições médicas.

Isso parte meu coração.

Procuro um remédio para dor e pego um comprimido. Deixo-o do lado da cama de Ian —que está dormindo — junto com a água e sento ali no canto, quando vejo um bloco de notas e uma caneta. Alguns post-its estão com anotações —números de telefone, nomes e lugares. Escrevo uma nota para ele, e deixo ali. Depois, pego a coberta e cubro seu corpo, apago a luz e fecho a porta. Lá embaixo, na sala —a mesma sala que ele me deu o poema da Sylvia Plath—eu acho garrafas vazias em cima da mesa de centro de madeira. Reviro os olhos para o vazio e para as garrafas, depois pego cada uma delas e jogo no lixo. Procuro na cozinha por garrafas cheias e jogo essas no lixo também. Não sei se quero proteger Ian ou me vingar dele. Minhas emoções não estão muito nítidas agora, e tudo que consigo sentir é medo e compaixão. Não sei explicar. Não sei como essas duas coisas podem coexistir, mas acontece. É uma batalha que nunca acaba, onde essas duas coisas lutam até uma delas ceder. Não sei qual é a pior —ambas causam um estrago enorme no meu coração e influenciam completamente tudo que faço. Às vezes eu gostaria de não ser levada pelas minhas emoções.

Por um segundo congelado no tempo, eu fico intacta, paralisada. Cansada de jogar garrafas fora e exausta física e emocionalmente. Sinto o silêncio penetrar na minha pele e me jogar na montanha russa como o vento leva uma folha. Não consigo nem protestar de tão rápido. É uma tristeza imensa, parecida com o mar. E eu não sou nada, um peso morto, natureza morta ou com a alma morta, tanto faz. Me sinto leve e inexistente. É horrível.

Saio da casa antes que algo pior aconteça, algo me mate. Vou andando para casa. Ainda tem poças na frente, na calçada, por causa da neve que ainda não evaporou. Escapo delas pulando, e paro na porta. Posso quase sentir o cheiro de álcool que Ian deixou ali, posso quase sentir a confusão a espreita, querendo me pegar.

Entro pela porta para ser acolhida pelo escuro. Hesitante, vou até o escritório da minha mãe mas as luzes estão apagadas também. Não sei se ela está acordada ou não. Acho que nunca entrei no quarto dos meus pais, e não vou começar a fazer isso agora. Claramente, ela não quer falar comigo e para mim, tudo bem. Sei que é só por enquanto. Ela ainda vai falar comigo sobre isso —naquele tom sério e gelado dela, como se estivesse falando com um dos seus funcionários. E vai ser pior. Vai ser pior porque meu pai vai estar lá também. Imagino a conversa e que tipo de ameaça eles vão fazer. A expressão do meu pai quando ele falar pausadamente, como quando fiz uma pergunta errada na festa do trabalho. Secretamente, embora nunca poderei admitir isso, preferia que ela só brigasse comigo de uma vez. Sei precisar do drama que meus pais produzem juntos. Falasse tudo hoje. Agora. Para eu não me remoer durante o seu período de silêncio com o que vai acontecer. Entro no meu quarto agitada e atordoada, sem conseguir me concentrar direito. Pretendia estudar até adormecer, mas sei que estou dispersa demais, distraída. Estou fazendo aquilo com os dedos novamente. Ligo meu computador. Pego o poema que Vivian deu para Ariel, na esperança de encontrar alguma pista. A Viagem, é o título. E consigo entender o porquê. É um daqueles poemas que te enchem de uma esperança indefinível e aquela ideia de intelectualidade, de ser mais inteligente do que você realmente é apenas por estar apreciando esse tipo de poema, esse tipo de escrita.

E houve uma nova voz

que lentamente

reconhecida como sua própria,

manteve em sua companhia

como você caminhou mais e mais

em todo o mundo,

determinada a fazer

a única coisa que poderia—

determinada a salvar

a única vida que você conseguia.

Mais uma vez, as palavras do guru de St. Mara me vem a cabeça. Nós não podemos salvar todo mundo. Repito isso como uma mantra, já me esquecendo do que tinha vindo fazer no computador. Não conseguimos salvar todo mundo. Não conseguimos salvar todo mundo. Não. Conseguimos. E não podemos, também. Penso em Vivian. Penso em Ian. Penso em Gwen. E nos meus pais. Não conseguimos salvar todo mundo. Não consigo.

Isso não é um sinal de fraqueza, lembro-me de Vivian falando sobre incapacidade em uma certa aula, é sinal de humanidade.

Então tudo bem. Eu respiro fundo, e por falta do que fazer, entro no Google e digito SANTA FILOMENA. Por pura curiosidade, já que eu sempre pensei em Santa Filomena como um lugar do que como uma santa propriamente dita. Estou prestes a entrar na Wikipedia quando as imagens terminam de carregar eu vejo os desenhos da santa. Algo me chama a atenção. Clico em uma imagem, depois em outra. Não é a foto que me mantém vidrada, mas os simbolos nela. Santa Filomena tem uma âncora ao seus pés, do lado do seu corpo. Um palmo em uma das mãos. E uma flecha na outra mão, perto do seu coração. Uma coroa de rosas na cabeça e parece muito, muito jovem.

E muito, muito familiar. Eu já vi essa imagem antes, mas não consigo me lembrar aonde. Faço uma recapitulação dos lugares que eu fui, mas nada me vem a mente.

Pense, comando meu cérebro. Pense.

Então.

Entre um segundo e outro,

a claridade me atinge.


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Notas finais do capítulo

o que acharam?
ps: eu não sei se alguém se confundiu mas só pra desencargo de consciência, na cultura japonesa Haru significa mesmo primavera só que não tem NADA conectado com a lua. Isso só acontece na família da May, ok? só pra ninguém achar que eu divulguei uma informação errada. é isso aí, espero que tenham gostado.



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