Fallacy - Pride escrita por Luiza Martz


Capítulo 8
Ajuda Desnecessária




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O barulho discreto de uma respiração calma e despreocupada em meu ouvido foi o que me acordou em mais uma manhã gelada naquela ilha. Eu podia sentir os movimentos fracos do corpo de Hillary na cama, enquanto ela dormia profundamente, com o rosto enterrado nas minhas costas. Eu não pude evitar rir baixo quando pensei que, se fosse eu que estivesse encostando nela, com certeza uma guerra seria travada.
Devagar, eu virei de barriga para cima, com medo de acordá-la Sua cabeça passou a se apoiar em meu ombro. Ela nem se quer ameaçou acordar. Então, eu levei minha mão direita levemente ao seu rosto, e beijei o alto de sua cabeça, em um gesto de carinho. Só depois, eu me levantei.
Enquanto eu colocava um casaco preto, mantinha meus olhos em Hillary. Prestava atenção na delicadeza de seus movimentos, enquanto eu bagunçava meu cabelo mais uma vez, sempre na mesma direção. Ela arrastou o rosto no travesseiro macio de modo lento e depois esticou o corpo. Foi só naquele momento que eu notei que estava acordada.
– Parece que alguém aqui gosta de dormir... - Minha voz falhou ligeiramente.
Hillary abriu os olhos, assustada. Ela me encarou por um breve segundo, e depois murmurou um palavrão.
– Fala sério... Eu realmente dormi com você? - Ela disse, em um tom quase inaudível. Eu ri quando notei que ainda estava delirando pelo sono.
– Depende do sentido da palavra...
Hillary abriu um largo sorriso feliz, então se jogou de costas na cama, puxando os cabelos para trás.
– Agora eu me lembro... - Ela comentou. - Você tem medo do escuro.
– E você acorda completamente grogue. - Ela riu. - Nem fala coisa com coisa.
– Eu não penso coisa com coisa, como quer que eu fale? - Rimos. - Eu já liguei para Johnny umas duas ou três vezes quando acordei, por ter sonhado que alguma coisa ruim tinha acontecido com ele.
– E se sonhasse que alguma coisa ruim tivesse acontecido comigo, você provavelmente acordaria feliz da vida, não é?
– Hm... Primeiramente, eu não perderia meu tempo sonhando com... eca... Você. - Ela riu. - E, se isso for uma hipótese, a resposta é sim. Eu acordaria feliz da vida achando que algo de ruim tivesse te acontecido.
A encarei com as sobrancelhas baixas, e um olhar intenso e sereno.
– Bela maneira de me fazer começar o dia, doutora. - Ela riu baixo de minha ironia, enquanto passava as pontas de seu cabelo negro entre os lábios.
– É uma bela maneira de me fazer começar o dia, doutor. - Ela me encarou com um sorriso malandro no canto dos lábios.
– Acho que você precisa mesmo é de um abraço...- Eu disse, rindo.
– A única pessoa que pode me abraçar nesse momento é você, e isso provavelmente significa que vai tentar me beijar. Então, não se preocupe comigo, eu aguento. - Eu sorri.
– Tudo bem Hillary, como você quiser. Me rendo a você. - Ela riu.
Então, eu me virei de costas, e dei o primeiro passo para fora do quarto. Apenas o primeiro.
– David... - Ela chamou.
No mesmo momento, eu parei de caminhar (coisa que eu mal tinha começado a fazer) e me virei, encarando seus lindos olhos azuis. Primeiramente, ela fitou o chão, mordendo o lábio inferior ainda com um sorriso no canto da boca. Depois, ela se inclinou para frente, e virou a cabeça devagar, mudando o foco de seu olhar para mim. Só então, ela abriu um sorriso largo e radiante, que fez meu coração se derreter em meio segundo.
– Bom dia. - Ela entonou timidamente, ajeitando o cabelo atrás da orelha. Eu sorri feito um bobo.
Antes mesmo que eu pudesse responder Hillary, quatro batidas fortes vieram da porta da sala. Assustados, nós dois viramos as cabeças no mesmo momento, claramente surpreendidos. Hillary se levantou, e veio caminhando na pontas dos pés até o meu lado, contando cada passo que dava. Ela segurou meu braço esquerdo com as duas mãos, se escondendo atrás de mim como se usasse meu corpo como um escudo.
Quando chegamos até a porta, eu respirei fundo, e mais de uma vez. Hillary apertou mais ainda, nervosa. Quando eu estiquei meu braço para destrancar o trinco, pude ver claramente o quanto eu tremia. Minhas mãos estavam suando frio. Um arrepio passou pelo meu corpo... Mas aquilo não me impediu de abrir a porta.
Foi natural o susto que Hillary e eu tomamos quando vimos Vincent lá parado, e nos encarando com curiosidade. Ele virou a cabeça e ergueu uma das sobrancelhas (ou onde deveria ter uma, pelo menos), como se não estivesse entendendo o motivo de toda aquela tensão. E, por mais que aquela fosse a coisa mais feia que eu já tinha visto, de uma coisa eu tinha certeza: nada poderia me deixar mais feliz do que aquilo.
– Muito bom... Deixei vocês sozinhos quatro dias atrás, e vocês ainda estão vivos... Nada mal mesmo. - Sua voz ainda continuava macabra e sibilava com alguma frequência.
– Vai poder nos ajudar agora? - Eu perguntei, indo direto ao ponto.
– É... Mas antes, vão ter que vir ao Palácio comigo. Não é da minha ajuda que precisam, e sim da de minha rainha, Akeyra.
– Você realmente acha que vamos nos enfiar em um lugar cheio de coisas como você? - Hillary perguntou em um tom alto. Eu a repreendi discretamente, dizendo seu nome.
– Se você quiser sair daqui, acredito que sim.
– Vincent, nos espere lá em baixo. Descemos em cinco minutos.
– Como quiser, David. E por gentileza, não demorem.
O homem lagarto não se deu ao trabalho de descer as escadas. Ele simplesmente pulou da varanda para o chão, mesmo com a armadura pesada que trazia em seu corpo. O barulho foi sutil e delicado, como se tivesse dado um pulo de apenas trinta centímetros.
Quando eu tive certeza que não poderia nos ouvir, eu encostei a porta de madeira, e encarei Hillary com um olhar sério.
– Você sabe que ele é a nossa única chance.
– Está brincando? - Ela perguntou, surpresa. - Você realmente confia naquela coisa? Acha realmente que aquilo vai nos tirar daqui?
– Eu não posso me dar ao luxo de escolher em quem confiar à essa altura, Hillary. Vincent nos ofereceu ajuda, e sabemos que ele pode nos proteger. Temos que fazer isso.
– Pode nos proteger ou pode nos devorar. - Ela chiou. - David, olhe para a cara daquela criatura! Ele não vai nos ajudar!
– Você está julgando pelas aparências. Eu sei que não é amigável, e que o sorriso não é o mais bonito, mas é o que temos agora, Hillary.
– Não estou julgando Dave, estou usando a lógica. Pense em crocodilos, cobras, ou coisas do gênero... Não se alimentam de frutinhas e plantas.
– Ele é meio humano. E, aliás, se fosse para nos fazer mal, ele já teria feito... Por favor Hillary, não tenha uma crise agora. Temos que confiar nele.
– Eu tenho que confiar apenas em você, e você só tem que confiar em mim. Por favor Dave, vamos deixar essa coisa ir embora... Eu não quero ir. Alguma coisa vai dar errado, e eu sei que vai.
– Hey, eu vou fazer de tudo para que nada de ruim nos aconteça. Não precisa se preocupar enquanto eu estiver aqui. Eu prometo.
Eu sabia que não estava de acordo, e não queria ir de modo nenhum, mas Hillary não quis complicar as coisas mais ainda. Mesmo relutante, ela sorriu levemente com o canto da boca, e passou por mim. Eu respirei fundo, e fechei os olhos por um breve momento. Só então, eu me virei, e junto a ela, desci atrás de Vincent.

Nossos passos eram as únicas coisas que escutávamos conforme caminhávamos. Hillary e eu estávamos tão tensos que Vincent podia perceber apenas por nossa respiração ofegante. Ele, por outro lado, nem se dava ao trabalho de fitar os cantos. Continuava seguindo três metros à nossa frente, com o peito estufado, e segurança em cada passo que dava. Era um pesadelo ficar exposto naquela floresta. Uma sensação tão ruim que eu mal tinha palavras para explicar.
Eu perdi completamente a noção do tempo que passamos caminhando, mas meus pés doíam quando finalmente chegamos ao nosso destino. E, quando vi aquele lugar, me senti preso em um filme da época medieval. Havia cabanas perto de nós, e carroças sendo puxadas por cavalos grandes e fortes, guiados por mais homens lagartos. No final, havia um castelo de pedras gigantesco, com um alto e grandioso muro que o cercava. Alguns dos semelhantes a Vincent usavam roupas sujas e feitas de pano, enquanto outros exibiam gloriosas armaduras reluzentes, acompanhadas de lanças. Por que eu tinha a impressão de que aquilo não ia dar certo?
Foi uma questão de segundos para que os guardas nos cercassem, curiosos. Confiante, Vincent se apresentou, e começou a dialogar com um deles (o que parecia ser o chefe), em uma língua completamente diferente. Abusava dos sibilos, e prolongava assovios macabros. Um deles nos encarou torto, curioso, e bateu a lança no chão. Então, todos os outros se viraram, e começaram a segui-lo para dentro do palácio. E, para o nosso azar, “todos os outros” incluía Hillary e eu.
Ela segurou meu antebraço esquerdo, assustada, e como se dissesse “eu não quero ir com eles”. O ritmo dos passos dela era um pouco mais fraco do que o dos nossos, mas não podíamos parar, pois havia dois guardas lagartos atrás de nós, garantindo que nós não fugiríamos. Foi naquele momento que eu comecei a desconfiar... Para que sete guardas nos escoltando?
Onde quer que passássemos, chamávamos atenção. Eu não vi nenhum humano, do lado de fora pelo menos. Todos aqueles híbridos paravam o que quer que estivessem fazendo, apenas para nos encarar. Me senti extremamente intimidado pelos sorrisos sádicos nas bocas de alguns, e pelos cochichos naquela língua esquisita que usavam. Hillary se apertou mais ainda contra mim. Não era dúvida que estava mais assustada que eu.
Alguns minutos depois, nos vimos em uma sala, dentro do palácio, ainda cercados de guardas. Os tecidos predominantes tinham tons de roxo escuro e dourado, e foi justamente por isso que imaginei que aquela era a sala do trono. Castiçais enferrujados estavam em cada canto, e a cera das velas derretidas dava algum clima ruim a aquele lugar. E, é claro que no centro, havia uma grande poltrona acolchoada em vermelho e dourado, com os braços largos e presa ao altar em que se encontrava. Sala do trono, fato.
Então, as duas portas gigantes de madeira grossa e pesada se abriram, fazendo um barulho enorme. E então, mais doze guardas (eu fiz questão de contar um por um) saíram, com lanças enormes e pontiagudas. E só no final, saiu o último lagarto, acompanhado de um humano puro. Um lagarto claramente mais velho, e um tanto mais lerdo que os outros. Vestia uma túnica enorme roxa e dourada, e acompanhado pelo humano, se sentou no trono, sem pressa alguma. E então, todos os guardas se ajoelharam. Hillary e eu nos encaramos, assustados. O homem que estava ao lado da rainha riu com ironia.
– Bom trabalho, Vincent. - Ele disse. O híbrido agradeceu. - Jamais me arrependerei de ter te ensinado a língua humana.
O homem tinha talvez um metro e oitenta. Usava roupas que combinavam com a da rainha, que estava sentada no trono, em algo que mais parecia um estado de completa reflexão. Ele tinha barba, e cabelos razoavelmente compridos (até a nuca, mais ou menos) em um tom de castanho chocolate. Os olhos azuis nos encaravam no que parecia ser um misto de satisfação, curiosidade e encantamento – provavelmente por Hillary. Então, ele sorriu. Os caninos eram curiosamente afiados e longos. Bizarro.
– Meu nome é Hunter Schultz, e eu sou o responsável por toda a segurança desse palácio. Eterno servo de Akeyra II, a rainha. - O tom animado que usava era assustador. - E vocês, quem são? Principalmente a senhorita, que se me permite dizer é tão bela...
– Eu sou David Matlock e essa é minha esposa Hillary. - Ela me deu uma cotovelada forte quando eu disse aquilo. Mas, antes isso do que uma criatura bizarra como aquela. - Precisamos de ajuda para voltar para casa. Vincent disse...
– Ah, claro... Vincent disse. - Ele me interrompeu. - Ó, poderoso dom da fala que eu lhe dei, híbrido. - Vincent sorriu. - Mais uma vez você me traz humanos sem forçá-los a vir, apenas por sua incrível capacidade de mentir.
Engoli em seco. Hillary me deu mais uma cotovelada.
– O único humano que pode entrar nessas terras sem ser morto sou eu, senhores. - Ele sussurrou. - Eu escolhi me tornar um deles. Para você, David Matlock, não há salvação. Mas, para a jovem e atraente Hillary... - Ele passou a língua por seus lábios. - Pode se juntar a mim. Seríamos gloriosos juntos.
Ela recuou um passo discretamente. Eu segurei sua mão com força.
A rainha então, finalmente nos encarou. Então, ela abriu a boca, e um som discreto saiu, chamando a anteção de todos. Hunter, no mesmo segundo, se virou, e ajoelhou para sua superior. Submisso, ele escutou cada murmurro de Akeyra, sem questioná-la, e apenas quando ela terminou de falar, ele se levantou.
– Como quiser, minha rainha. - Ele respondeu. Depois, se virou para nós mais uma vez. - A sorte está sendo boa com vocês. Minha rainha ordena que fiquem presos no calabouço pelo menos até a noite, enquanto pensa em alguma possível utilidade para vocês. O meu conselho? Torçam para que ela poupe suas vidas.
Então, Hillary e eu fomos agarrados por quatro guardas, dois em cada um de nós. Eles seguraram nossos dois braços, nos imobilizando. Tentar fungir era perder tempo. Eram muito mais fortes que nós. Ela se debateu, e para minha surpresa, um dos guardas chegou a ceder e soltá-la por um breve momento, mas logo mais um veio para acabar com sua esperança.
Fomos levados à força até um ponto baixo do castelo. Descemos escadas velhas e sujas, até que chegamos em uma sala com três celas, fedida, e coberta por palha no chão. No canto, havia uma mesa, e um guarda dormindo, apoiando seus pés nela. Atrás do guarda, duas armaduras grandes e brilhantes, completas. Então, um dos que estava conosco deu um forte soco no que estava dormindo, e ele despertou assustado. Só então, ele pegou a chave da cela e a abriu. Depois, fomos literalmente arremessados lá para dentro.
Poucos minutos depois, os seis guardas foram embora, e fecharam a porta que dava na escada para descer. E, é claro que eles levaram a chave. Eu com certeza estaria mais seguro lá fora com eles do que ali dentro com Hillary, irritada do jeito que estava.
– Eu te disse que não eram confiáveis! - Ela berrou, e me deu três tapas no ombro. - Agora vamos morrer!
– Não vamos não! Deve ter um jeito de sair daqui...
– Ahn... Eu já perdi essa esperança há muito tempo. - Uma voz estranha veio do canto da cela.
Hillary e eu nos encaramos, depois viramos nossas cabeças devagar. No canto, tinha um homem, coberto por panos sujos e fedorentos. Os cabelos já eram grisalhos, e seus olhos azuis expressavam desespero. Sua pele estava desidratada, e seus lábios, rachados. Estava curioso com nossa presença.
– Meu nome é Aidan Crossfield. Não se preocupem comigo, eu não vou machucar vocês. Mas, eles vão, se não derem um motivo para não fazerem... - Ele disse, fraco. Fiquei me perguntando quanto tempo aquele homem estava ali.
– Eu sou Hillary, e esse imbecil é o David. - Ela apontou para mim. - Confiou em uma daquelas coisas, e aqui estamos agora.
– Vocês têm sorte... Eles podiam ter matado os dois de uma vez.
– O humano gostou dela... Provavelmente não nos matou por isso. - Eu comentei. - Mas, e quanto a você?
– Digamos que eu sei demais. Eles me mantem preso porque sempre precisam de meus conhecimentos... Sou como um observador.
– Escutem... Schultz disse que voltaria até a noite... Acho que eu sei o que fazer para que possamos fugir daqui. - Hillary disse.
– Entre fugir à noite e ficar aqui, eu prefiro ficar. Ainda mais hoje, em especial.
Franzi as sobrancelhas, confuso. Eu sabia que sair de noite era perigoso, mas não a ponto daquilo.
– Por que? Se ficar aqui vai morrer. - Eu comentei.
– Vou morrer mais rápido se for... - Ele respirou fundo. - A noite de hoje é o início de um ciclo sangrento sustentado pela lua cheia. Não podemos sair daqui essa noite de modo nenhum...
– Ciclo sangrento? - Hillary perguntou. - Aidan, o que acontece hoje?
Aidan revirou os olhos, e tocou as rochas escuras das paredes. Depois, apertou com força o cobertor que o envolvia.
– Eles são agentes do demônio... Quando a lua vai ao céu, colocam toda a sua força no gesto inicial; seu som característico. Quando estão entre nós, cada segundo é uma eternidade, e nunca sabemos em quem confiar. Nos matam com a mesma facilidade que matamos formigas. Se alimentam de nossa dor, nosso sangue e nossa alma. Não são apenas simples animais, são demoníacos... Os que conseguem vê-los não sobrevivem para descrevê-los, mas sabemos que os humanos não são absolutamente nada para eles. Fortes, ágeis, e inteligentes... Carregam as características mais letais das duas espécies que os formam: homens e lobos.
Engoli em seco. Hillary recuou assustada, com as mãos tampando os olhos.
– Aidan... Por favor, não me diga que está falando sobre lobisomens... - Eu pedi.
– Não são apenas isso... O mal corre em suas veias.
Hillary xingou em alto e bom tom. Era oficial seu desespero.
– Mas nós não podemos ficar. Nos matariam...
– Brilhante, David. Agora, ou viramos ração ou comida de lagartixa. Se conseguirmos sair dessa, o que só para constar, eu acho pouco provável, espero realmente que aprenda uma lição valiosa sobre confiança. - Hillary ironizou.
– Hillary, essa não é hora para mais um desses seus ataques. Precisamos manter a calma, e tentar não nos preocupar. Vamos aos poucos: primeiro fugimos, depois nos preocupamos com os pulguentos. Pode ser?
Hillary bufou alto, e se virou de costas, cruzando os braços. Depois, caminhou até o outro lado da cela, onde se sentou no chão, passando a mão pelos cabelos negros com frequência. Era interessante interpretar o seu olhar em situações como aquela, e o modo como um sorriso surgia e cessava com rapidez. Ela sabia o que fazer. E, sobre a lição de confiança, ela estava certa. E eu ia começar a partir daquele momento. Como? Confiando nela.

O primeiro uivo assombroso ecoou pela escuridão logo que a lua cheia se levantou. Eu senti um calafrio passar pelo meu corpo, e minhas pernas tremendo por um breve instante. Hillary, Aidan e eu encaramos a pequena janela cercada por barras de ferro da cela, quase como se esperássemos que uma das bestas se mostrasse. Mas, por sorte, não foi o que aconteceu. Apenas tiramos os olhos de lá quando outro barulho chamou nossa atenção: o som da porta de madeira do início da escada se chocando contra as rochas das paredes do castelo.
Então, passos. Passos pesados e lentos, de alguém que parecia tão destemido que ignorava o uivo alarmante que havíamos acabado de ouvir. E foi quando o dono deles entrou no nosso campo de visão que entendemos. Hunter.
– Espero que estejam confortáveis... - Ele sorriu com ironia. Novamente, os caninos me assustaram. - E, pelo menos com o casal Matlock, Crossfield não fica tão solitário quanto está acostumado...
Hunter se aproximou mais ainda da cela, perdendo cada vez mais sua cautela. Quando trinta centímetros o separavam das barras, ele ergueu sua mão esquerda, segurando uma delas enquanto encarava Hillary intensamente. Essa, por sua vez, se levantou de seu canto e foi até ele, segurando delicadamente seus dedos sobre as barras. Que diabos ela estava fazendo?
– Parece que você está menos nervosa... - Ele disse, em um tom baixo para ela.
Ela sorriu timidamente, encarando-o em um tom sereno. Logo, um sorriso largo surgiu em seu rosto.
– Talvez... Mas, você só vai saber com certeza se me deixar sair daqui... - Ela sussurrou. Foi ali que eu entendi.
– Hm... Me dê um bom motivo para fazer isso.
Hillary sorriu, radiante. Um sorriso largo.
Então, ela deu um passo para trás, e devagar, abaixou o zíper do casaco de moletom que estava usando. Mordendo o lábio levemente, ela levantou uma de suas sobrancelhas, enquanto o tirava do ombro com delicadeza. Os olhos de Hunter chegaram a se arregalar diante ao decote matador. Então, ele sorriu mais uma vez, de modo malicioso, e ela deixou o casaco cair no chão coberto de palha. Tentação...
– Basta para você, capitão? - Ela entonou de modo baixo e sedutor. Se fosse para mim...
– Mas a senhorita não é casada? - Ele perguntou, curioso, mas claramente tentado.
– Ah, aquilo? - Ela perguntou, se referindo a mim. - Ele é gay.
– Vagabunda... - Eu sussurrei para mim mesmo. Tive certeza de que ela escutou quando se virou discretamente, me encarando com tanta raiva que parecia querer me degolar.
– Uma pena... - Ele respondeu para ela, baixo. Estava quase sem palavras devido a sensualidade extrema de Hillary.
– Sabe do que eu mais preciso, sr. Schultz? - Ela perguntou, mudando seu tom para algo mais melodramático. - De um homem de verdade, que possa me fazer uma mulher de verdade... E eu sei que tem um na minha frente. A única coisa que o impede são essas barras de ferro... - Ela passou os dedos delicadamente pelas barras. Hunter engoliu em seco.
Ele não respondeu. Apenas recuou um passo, e tirou a chave da cela do bolso. Com pressa, ele a colocou no cadeado, e sem perder tempo, o abriu. O ranger da fechadura enferrujada fez Hillary sorrir, sabendo que obteve sucesso absoluto em seu plano genial. Olhando daquela maneira, de fora, era fácil perceber o que todas as mulheres sempre dizem, e eu sempre me recusei a acreditar: homens não passam de burros inocentes.
Quando Hillary saiu, e passou para sua frente, o tocando levemente no peito, pude ver que Hunter sentiu algo parecido com uma corrente elétrica passando por seu corpo. Ele se apressou em fechar a cela mais uma vez, e jogou as chaves em cima da mesa, que por acaso não estava sendo vigiada por nenhum guarda. Hillary olhou para aquele gesto com descrição. Depois, o encarou mais uma vez, sorrindo enquanto mordia os lábios levemente. Quando ela se virou para subir as escadas na sua frente, seus olhos apenas fitavam uma parte óbvia de seu corpo. Depois, Aidan e eu escutamos a porta bater nas rochas, mais uma vez. Ela era absolutamente genial.

Eu já andava de um lado para o outro preocupadamente quando escutamos a porta se abrir mais uma vez. Hillary desceu sutilmente, sem perder o contato visual com a porta. Um sorriso enorme surgiu no meu rosto quando ela apareceu novamente.
Ela correu até a mesa, e pegou o molho de chaves enferrujado. Então, ela veio até a nossa cela, impaciente, escolhendo a chave com tanta pressa que parecia que aquilo estava quente. Então, com a chave certa entre os dedos, ela abriu o cadeado, e o jogou para longe dali. Depois, puxou a porta de barras de ferro que nos prendia. E, quando fez isso, sorriu, como se dissesse “eu sempre consigo o que quero”. E, de fato...
– Não temos muito tempo. Andem rápido! - disse Hillary.
– Eu não vou... Podem ir, mas eu fico. - rebateu Aidan.
– Não faça isso... Eles vão te matar! - Eu pedi.
– David, se ele não quer ir, deixe-o. Nós temos que ir agora! - Hillary entrou na cela, e segurou meu braço, me puxando para fora. Era difícil ter que fazer aquilo, mas ela tava certa. Nós tínhamos que sair dali.
Quando ela me puxou, eu acidentalmente esbarrei em seu corpo. O diferente daquela situação foi que eu não consegui me afastar, depois. Estávamos muito mais próximos do que costumávamos ficar. Tão próximos que eu podia sentir a respiração discreta dela em minha pele, enquanto me perdia cada vez mais no azul perfeito de seus olhos. Então, com delicadeza, eu puxei uma pequena parte de seu cabelo para trás de sua orelha, tocando seu rosto com suavidade, na ponta dos dedos. E quando eu desviei o olhar para sua boca, eu notei algo estranho, no canto dos lábios dela.
– Tem sangue no canto da sua boca... - Eu comentei. - Ele te acertou, não foi?
Ela respirou fundo, e fitou um chão por um instante.
– Acredite em mim, eu também o acertei. - Ela sorriu, limpando o sangue.
– Muito bem, você o derrubou, mas e todos os outros guardas?
– Merda... Eu sabia que estava esquecendo de alguma coisa! - Ela berrou, socando o ar.
– Usem as armaduras. - Disse Aidan, apontados as duas, no canto da sala. Hillary me encarou, com uma de suas sobrancelhas erguidas em uma expressão triste. Eu respirei fundo. Não havia outro jeito mesmo...

Aquela lata parecia pesar vinte quilos. Hillary e eu mal conseguíamos nos mexer direito, dentro daquelas armaduras. Quando colocamos os capacetes para cobrir nossos rostos, por um segundo, achei que fosse morrer sufocado. O calor ali dentro era algo inimaginável. A adrenalina correndo em nossas veias só deixava a situação pior ainda. Para virar a cabeça, tínhamos que virar o tronco completamente. Admito, aquela ideia não foi nada inteligente.
Sem mobilidade alguma, Hillary e eu subimos as escadas totalmente rígidos. Quando finalmente conseguimos sair do calabouço, cada guarda que passava ao nosso lado nos fazia tremer. Não sabíamos para onde ir, e a cada segundo que se passava, eu tinha mais certeza de que seríamos descobertos.
Os poucos minutos que caminhamos pareceram horas com aquelas armaduras. Mas, depois daquele doloroso esforço, nós finalmente conseguimos encontrar a tão procurada saída do Palácio. Nós correríamos se ainda nos restasse alguma força, mas tudo que Hillary e eu conseguimos fazer foi nos arrastarmos lentamente até a porta de entrada.
Depois de sair, aquilo ficou consideravelmente fácil. Com pressa, tiramos as armaduras e as largamos no chão. Hillary mais uma vez jogou seus cabelos para trás, arrumando-os, enquanto eu encarava aquela floresta sombria. Eu simplesmente travei com o uivo do vento forte que soprava, engolindo em seco. Eu jurei que tinha escutado um rosnado baixo, por um momento. Foi quando Hillary tocou minhas costas levemente, me assustando.
– Está pronto? - Ela perguntou, em um tom baixo.
– Eu tenho a opção de não estar?
– Ter, você tem. Mas, vamos seguir, de um modo ou de outro.
– Então, espero que alguém esteja nos protegendo em algum lugar.
– Acredite David, alguém está.
Então, nós entramos na floresta, guiados apenas por nosso instinto.

Os minutos se passaram, e nada nos aconteceu. Eu mal conseguia respirar, de tão tenso que estava. Hillary usava outra tática diferente da minha. Ela ia rápido, talvez desejando que aquilo se acabasse de uma vez. Mas, ao mesmo tempo, estava mais exposta, e fazendo mais barulho.
Apenas relaxei quando pude ver a cerca que envolvia a nossa casa da árvore. Assustados e impacientes, começamos a correr em direção a ela, o mais rápido que podíamos. Com elegância, Hillary se afastou de mim e pulou a cerca sem fazer o menor esforço. E, quando comecei a apertar meus passos que uma coisa fora do comum aconteceu.
Eu não entendi no primeiro instante. Eu estava correndo bem, quando simplesmente caí no chão. Então, eu senti algo apertando a minha pantorrilha esquerda, e me puxando novamente pela caminho que eu já tinha percorrido. E foi no primeiro rosnado que eu tive certeza do que era aquele ser.
De repente, ele me largou, sem uma explicação lógica. Tremendo de medo, eu levantei, e tentei correr novamente em direção a casa da árvore, mas antes que eu pudesse dar três passos, ele voltou. Parou na minha frente, e me fez recuar mais uma vez. Tinha dois metros, e um par de olhos vermelhos sangrentos. O corpo era completamente o de um homem, excerto pela pelagem cinza escura. As feições, entretanto, eram exatamente como as de um lobo. E isso também significava que a boca dele tinha dentes do tamanho dos meus próprios dedos. Quanto mais eu sabia o que era, mais eu queria que não fosse. Como correr, como lutar, e como se esconder de um lobisomem?
Eu sabia que tinham se passado apenas um ou dois segundos, porém, aqueles foram os mais longos da minha vida. Até que, enfim, o lobisomem encravou as garras gigantescas no chão, e em apenas um pulo que não pareceu ser muito cansativo a ele, literalmente, voou, contra o meu pequeno e frágil corpo.
Logo no primeiro momento, aquele cachorro gigante tentou atingir diretamente minha jugular, mas, tentando inutilmente me proteger daquela criatura, acabei cedendo meu braço a ele, e ganhando uma mordida monstruosa no membro direito. No mesmo momento, uma cachoeira de sangue começou a descer. Eu senti meus dedos paralisados, tremendo, antes mesmo que ele saísse de cima de mim.
Foi quando ele simplesmente parou de tentar me matar. Olhou para o lado, à procura de alguma coisa que eu não consegui identificar no primeiro instante. Então, ele congelou, fitando alguma coisa parada do meu lado direito. As orelhas se abaixaram, e todo aquele rosnado altivo se transformou em um tipo de choro; um gesto submisso. Então, ele simplesmente saiu de cima de mim, e correu para dentro da floresta, assustado. E quando olhei para o meu lado direito, não havia absolutamente nada lá.
Em segundos, minhas veias começaram a arder. Eu sentia o veneno correndo, e passando por cada canto do meu corpo. Aquela dor insuportável me fez começar a berrar, de um modo tão intenso que parecia estar sendo morto. E talvez eu realmente estivesse. Me debatia com extrema violência. Minha cabeça começou a explodir por dentro, e eu podia ouvir os ossos do meu corpo se deformando; se partindo em vários pedaços. Minha pele se esticava, e voltava ao seu normal em um intervalo de segundos. Senti minhas costelas se expandindo. Foi assustador.
Por um breve segundo, aquela dor cedeu. Rapidamente, eu me levantei, e comecei a caminhar, ainda cambaleante, para a casa da árvore. E, acreditando eu em lobisomens ou não, aquela dor apenas parou quando nuvens espessas cobriram a lua cheia.
Não consegui passar do limite da cerca. Novamente, a dor voltou, e eu comecei a gritar com todas as forças que me restavam. Me ajoelhei, sem conseguir me aguentar em pé. Foi quando Hillary veio até mim, e se jogou de joelhos ao meu lado, envolvendo minha cabeça com suas pequenas e delicadas mãos.
Ela desviou o olhar para meu braço ensanguentado. Seus olhos se arregalaram, e devagar ela se afastou, incrédula.
– … Não pode ser... - Ela sussurrou.
Então, as nuvens saíram da frente da lua, permitindo que os raios finos e discretos me tocassem. Eu só tive tempo de dizer uma coisa:
– Corra. Agora.


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