Safe & Sound II: A Sociedade Secreta escrita por Gistar


Capítulo 6
Noite da Convocação




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A parte divertida de se humilhar na frente de um bando de silhuetas na sombra é que você passa os próximos dois dias imaginando se todo mundo com quem você cruza no campus a viu em seu pior momento. Eu estava na fila do refeitório ontem à noite e juro que vi essa garota riquinha e maconheira dando risadinhas por trás de seu cuscuz marroquino. Passei as duas horas seguintes tentando descobrir qual sociedade secreta era capaz de convocar estudantes vegetarianos de Biologia que usam roupas feitas por estilistas e colares de cânhamo de cem dólares — bem, além de organizações de brincadeira, como a Baseado & Cachimbo.

Nome bonitinho, não é? É assim que as coisas funcionam na Universidade. Todo mundo copia todo mundo. Skull & Bones começou com a moda por volta de 1800 e agora qualquer um que deseje começar uma organização social segue seu ilustre exemplo: Book & Snake, Scroll & Key. Há alguns dissidentes entre as maiores sociedades — Cabeça de Lobo, Serpente, Saguão São Lino — mas nada dá um clima tão Yale a uma suposta organização clandestina quanto esse " &".

Rosane e eu costumávamos brincar dizendo que eles estavam treinando para entrar em escritórios de advocacia — eram todos Não Sei O Quê & Não Sei O Quê Também, certo? Isso foi antes do pessoal perder o senso de humor para tudo relacionado a sociedades secretas. Sério.

Tentei conversar com eles sobre minha entrevista naquela noite durante o jantar e eles responderam como minha mãe quando eu falava em sexo. Ou seja, nada.

A conversa foi assim:

Eu: Então, querem ouvir o que aconteceu na minha entrevista?

Emerson: (garfo parado a meio caminho da boca): Você devia falar sobre isso?

Eu: Por que não? Não fiz nenhum voto de silêncio. Nem sei quem eles eram. Por que, os seus disseram para não falar sobre isso?

Emerson: ...

Eu: Jana, os seus disseram? Eles lhe disseram quem eram?

Jana: ...

Eu: Eles disseram! Uau, devo ter me saído pior do que pensei.

Mandy: (olhando furtivamente para os lados): Sara, eu realmente acho que não devíamos conversar sobre isso.

Eu: Posso falar sobre o que eu quiser. Eles são um bando de desconhecidos e, ainda por cima, foram muito grosseiros comigo.

Pedro: Sara! Você vai destruir as suas chances.

Eu: Acho que não tenho nenhuma chance. E, por favor. Eles não puseram microfones escondidos nas mesas nem nada.

Angela: Skull & Bones poria.

Eu: Skull & Bones não aceita mulheres. Só futuros presidentes da República.

Jana (ficando de pé e erguendo a bandeja): Não vou continuar falando disso aqui.

Eu (seguindo): Tudo bem, vamos conversar no quarto.

Mas Jana não voltou para o quarto. Ela foi até a biblioteca e todas as vezes que a vi nos dois dias seguintes, ela saiu correndo antes que eu tivesse a chance de tocar no assunto de novo. Não que eu estivesse esperando sentada. Eu estava super ocupada com a edição da revista literária. Já que eu não ia ser aceita pela Book & Snake — ou por nenhuma outra sociedade secreta — não podia me dar o luxo de cometer mais nenhum erro. Aquela era minha primeira edição e precisava arrebentar.

No sábado à noite Pedro e eu estávamos no quarto dele. Alex havia saído com a Jess e nós estávamos deitados na cama dele ouvindo música e conversando.

– Seu pai tem alguma notícia do Daniel? – Pedro perguntou.

– Ainda não! Eu não sei como ele conseguiu se esconder tão bem...

– Será que tem agentes protegendo as informações sobre ele?

Pedro e os outros já haviam levantado essa hipótese inúmeras vezes.

– Não sei. Mas se tem, o Steven vai descobrir!

– Eu ainda acho que eles pagaram aquele juiz pra livrar o Daniel da cadeira elétrica e de algum modo facilitaram a fuga dele...

Eu não gostava de pensar que havia corrupção na Justiça, mas quando ele colocava as coisas dessa forma, eu tinha que concordar.

– Mas nós não temos provas, não podemos fazer nada!

– Eu sei. Mas só de pensar que ele está solto pó aí, aprontando sabe se lá o quê...

– Eles vão pegá-lo! Ele não vai poder fugir pra sempre! – falei, tentando por um fim no assunto. Eu também não gostava de pensar em Daniel solto por aí...

Eu o beijei tentando esquecer o assunto que ainda me causava pesadelos à noite. Jana acordou uma vez quando eu estava chorando, mas não fez muitas perguntas, apenas me deu um copo com água e conversou sobre bobagens até eu me acalmar.

Eu estava na quinta à tarde na edição da revista preparando a redação, mas minha mente estava vagando em direção à pilha de trabalhos que eu tinha pra fazer.

– O que há com você hoje? – perguntou Selena.

– Sei lá. Estresse por ter uma pilha de trabalhos pra fazer e livros pra ler antes das provas.

– Ah, não se preocupe. Em duas semanas, você estará na Book & Snake e eles devem ter influência nos exames de literatura. Você vai arrebentar.

Mordi meu lábio.

– Eu... não vou ser convocada pela Book & Snake.

– O quê? — ela apontou para a plaquinha de EDITORA na minha mesa, para mim, para a placa na porta onde se lia REVISTA LITERÁRIA DE YALE, um olhar de falsa incredulidade no rosto. — Como isso é possível?

Finalmente, alguém com quem conversar sobre isso! Suzana Foster havia desaparecido em combate (provavelmente entrevistando os verdadeiros candidatos à Book & Snake).

– Não sei como! Mas eu fui à minha entrevista e era um bando de bobagem sobre arquivos do FBI e minha professora da terceira série e outras coisas e aí eles me disseram que não eram da Book...

– E se estivessem mentindo?

– De qualquer modo, não paravam de falar como eu não servia para eles. Estavam sendo bem cruéis, então os mandei pastar, mostrei o meu dedo; não que eles pudessem ver, do jeito que a sala estava escura; e fui embora.

– Uau. Mas sabe, acho que o seu problema é que você pensa demais. Então você se tortura com cada decisão, apavorada com a possibilidade de estragar tudo.

Há! Eu tinha estragado tudo em relação a esse negócio da Book & Snake. Eu era uma velha especialista em cometer erros. Só não era muito fã do processo.

Eu estava subindo as escadas para o meu dormitório e refletindo sobre o que ela dissera quando encontrei com Mandy.

– Sara, que bom que te encontrei. Precisava muito de dizer uma coisa!

– Fala.

– Se você for convocada para a Skull & Bones, é melhor aceitar se não quiser ver Pedro ir nas reuniõezinhas festivas deles sozinho.

– Do que está falando?

– Eles fazem essas festas para apresentar os cavaleiros à Elite do país e eles não podem levar convidados. Então, a menos que você esteja disposta a deixá-lo ir nessas festas, que são muito frequentes, sem você é melhor aceitar a convocação.

– Pedro foi convocado?

– Eu não sei, mas as coisas entre vocês vão ficar ruins se essa sociedade ficar entre vocês.

– E você foi convocada?

– Não me faça perguntas! Apenas faça isso, ok?

E depois ela desceu correndo as escadas e me deixando perplexa com tudo aquilo.

Típico da Mandy, joga as coisas pra cima de mim e sai correndo!

A porta do meu dormitório estava aberta e Jana estava sentada na cama. Ainda estava de casaco, o colo cheio de livros, e olhava fixo para um pedacinho quadrado de papel no chão no meio da sala.

– Jana? - disse eu, acenando com a mão em frente ao seu rosto - Você está bem?

Ela não olhou para mim, nem mesmo piscou, só sussurrou:

– É seu.

– É mesmo - falei, pegando um envelopinho branco com as bordas de um preto brilhante e selado com uma gota de cera escura. - Devem ter enfiado por baixo da porta.

Virei o envelope nas mãos. Era feito de papel grosso, texturizado, e meu nome tinha sido impresso na frente em uma fonte estranha, angulosa. Mas era atrás que estava meu verdadeiro interesse, pois na sólida cera preta havia a marca inconfundível de uma caveira sobre dois ossos.

O selo da Skull & Bones!

Enfiei o envelope no bolso do meu casaco mais rápido do que um aluno metido a esperto com a cola da prova e virei-me para ela.

– Então, a Book & Snake se manifestou, afinal. - disse com um sorriso.

– A Book & Snake — falou Jane com aquela mesma voz estranha e sem emoção — entrega envelopes com bordas azuis e prateadas.

– Então, quem dá os pretos? — perguntei a ela.

Os olhos de Jana encontraram os meus, mas ela não disse nada, e eu sabia que ela tinha dado uma boa olhada naquele selo. Se tinha conhecimentos sobre artigos de papelaria de cada sociedade, com certeza ela sabia o que significava aquele brasão, mas minha cabeça estava ocupada demais dando piruetas e eu estava acariciando aquele selo de cera no meu bolso como se eu fosse Frodo e ele fosse o Um Anel.

– Abra! – pediu Jana se levantando de repente.

Dei um passo para trás, protegendo meu bolso.

— Na sua frente?

— E o que é que tem?! — ela argumentou. Eu bufei.

— Você sumiu a semana toda! Não me conta nada sobre a sua entrevista para a sociedade e ainda acha que tem o direito de ler a minha carta?

Ela pensou a respeito por um segundo e então assentiu.

— Sim!

— Se você me mostrar a sua, eu lhe mostro a minha. — Coloquei as mãos nos quadris, percebendo no momento em que fiz isso que estava deixando o envelope bem à mão de ladrões.

— Tudo bem — Jana falou, afastando-se. — Que seja. Vou deixá-la sozinha com seu precioso envelope. — Aí ela se virou, entrou no banheiro e fechou a porta, me deixando perplexa.

Não era nada disso que eu esperava que acontecesse. Mas me recuperei alguns segundos depois, lembrando-me que ainda não havia aberto o envelope. Passei um longo tempo só olhando para o selo. Será que iria quebrar quando eu o abrisse? Virei o papel nas mãos várias vezes.

É, aquele era o meu nome, e sim, aquele era o selo da Skull & Bones, eu o havia visto aquele dia que Pedro me mostrara o mausoléu. E aquele ainda era o meu nome. Mas a Skull & Bones não convocava mulheres. Será que Mandy sabia que isso aconteceria e por isso me dera aquele aviso? Será que ela também havia sido convocada? O que diabos estava acontecendo?

Finalmente, enfiei com cuidado as pontas dos dedos por baixo da cera e abri sem quebrar. O envelope se abriu em linhas irregulares e se desdobrou em um hexágono estranho e distorcido. As palavras estavam escritas na diagonal, com letra pesada, angulosa e era isso que diziam:

Sara Samers:

Você foi julgada e considerada merecedora.

Esteja em seu quarto esta noite aos cinco minutos após as oito horas e espere maiores instruções.

E então, abaixo disso, estava a marca da Skull & Bones.

Eu estava sendo convocada pela Skull & Bones!

Ah, uau. Ah, uau, ah, uau, ah, nau (para uma missiva, não era muito inovador, mas na hora eu fiquei alucinada de alegria).

Corri para avisar a Jana, e aí dei uma freada. Espere um segundo, eu não ia lhe contar nada até ela me contar também.

A Skull & Bones era, pelo que eu pesquisara, o Tiranossauro Rex do país. Era da velha guarda, de sangue azul e seus membros com pedigree viravam juízes da Suprema Corte e presidentes e fundadores de importantes conglomerados de mídia como a AOL Time-Warner. Homens.

Poderiam todos aqueles rumores estar errados e Emerson estar certo? Ou pior, será que isso era o que alguém considerava uma brincadeira de mau gosto?

Pobre Sara Samers, não foi eleita, então vamos bagunçar com a cabeça dela. Dizia-se que essas coisas já haviam acontecido antes, é claro que tendiam a acontecer com estudantes ingênuos que não sabiam de nada. De vez em quando, ouviam-se histórias sobre universitários galhofeiros vestindo capas, seqüestrando um bando de alunos novos e fazendo-os passar por todo tipo de humilhações fingindo ser uma forma de "iniciação", como Emerson contara. Mas, sério, não era como se eu pudesse pedir a identidade para um bando de figuras de capa preta quando eles aparecessem. Como o tal Sombra-Que-Sorri havia dito para mim durante a entrevista, é por isso que eles a chamam de secreta.

Bati com as mãos no ar de frustração. Por que não havia um setor de informações para isso? Por que não estava descrito no manual do estudante? Por que o canto paranóico do meu cérebro havia amordaçado e amarrado os quatro pés da parte racional?

Muito bem, Sara, pense. Pense. Chequei o meu relógio e aperfeiçoei o meu mantra. Pense mais rápido. Eu tinha dez minutos antes que os rapazes de preto chegassem. Será que eu deveria aceitar? Deveria aceitar, mesmo que suspeitasse que isso não passava de um trote cruel? Deveria confiar na Mandy? E se ela também fosse enganada? Porque, e se fosse Skull & Bones e, se esse convite fosse o que parecia ser, o que a entrada para a sociedade significaria para mim? E se eu não entrasse, a galera toda entrasse e ficasse só eu de fora? E se eu recusasse, tivesse que ficar noites inteiras sozinha enquanto Pedro ia a essas reuniões beber champagne e comer caviar e... eu tinha certeza que apesar de ser uma sociedade só de homens, eles dariam um jeito de levar mulheres para essas reuniões.

Eu ainda estava considerando isso nove minutos e meio mais tarde, quando houve uma batida na minha porta. Congelei, apertando o envelope com força nas mãos e olhando para a porta como se ela fosse a única coisa entre mim e o Armageddon.

Houve outra batida. Jana entreabriu a porta do banheiro, enfiou a cabeça para fora e olhou da entrada para mim e de volta para a entrada.

— Vai atender?

— Estou decidindo.

— Ah, é isso o que está fazendo? — ela ergueu a sobrancelha para mim. — Porque você não parece muito determinada.

Mais uma batida, essa muito insistente. Jana revirou os olhos, atravessou o quarto de roupão até a porta e a escancarou... e então eles entraram, esbarrando em uma Jana confusa e me cercando.

Não sei dizer quantos eram — pelo menos, não antes que me levantassem em seus braços e me levassem porta afora, as capas vermelhas adejando em seu rastro. Era tão emocionante quanto eu sempre achava que fosse. Mas a viagem acabou abruptamente cerca de dez segundos depois, quando entramos em outra sala escura (eles gostam muito de salas escuras) em algum lugar do meu prédio. Eles me depositaram com o lado certo para cima e se afastaram.

Após um instante, eu recuperei o fôlego. A sala era iluminada por uma única vela de cera preta, atrás da qual eu podia ver um homem com seu capuz vermelho puxado para baixo por cima dos olhos. Eu obviamente não vinha comendo muitas cenouras, porque não conseguia enxergar nada além do brilho da vela. Havia um cheiro estranho no ar, algo familiar, mas indefinível e definitivamente incompatível com a visão diante de mim.

— Sara Samers?

— Sim — falei numa voz um tanto ofegante.

— Skull & Bones: aceite ou rejeite.

Ali estava. Acabara o tempo. E eu não fazia idéia do que pensar. E então, as palavras de Mandy voltaram a mim: “Se você for convocada para a Skull & Bones, é melhor aceitar se não quiser ver Pedro ir nas reuniõezinhas festivas deles sozinho.”

Abri a boca.

— Aceito.


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