A adrenalina me corroía como um filme de suspense. Logo naquela porta Vinícius bateria, eu não parava quieta só de pensar nesse encontro. Em como seria bom vê-lo, tocá-lo, abraçá-lo. Se me aceitasse.

Ele me aceitaria, certo?

Porque... por que mais não estaria bem? Por que mais estaria fazendo plantão em minha casa? Iara não havia se tocado das mil ligações de Gui em seu celular, um alguém mais que se importava com ela, pronto para lhe avisar do que acontecia. Acontece que seu aparelho estava com problemas pela água “engolida” numa queda que sofrera no intervalo do almoço, lá na empresa. Quando ela foi mexer nele, após a ligação de Filipe para o filho, que as notificações despertaram.

E ela ligou de volta para Gui. Que eu escutei através dele, sem ter noção de que era ouvido por mim, sobre o que era o estado de Vinícius. Meu amigo também fazia plantão na minha casa. E Dani, Bruno, Flávia Aline. Djane e Renato. Estavam todos lá, para minha vergonha aumentar. Por fazer isso com eles, assustá-los de tal maneira.

Eu não era como a Daniela que daqui uns minutos poderia rir como se nada tivesse acontecido. Não era como Flávia, a sensata. Que pensou primeiramente em meu bem, mesmo que eu a odiasse. E como eu a odiei nessas últimas horas! Ela havia dado o passo que eu nunca tive coragem de dar.

As dimensões daquilo eram maiores que seu Júlio pôde nos dar. Gui informou que um amigo de Dani, o Yuri, avisou para ela que havia me visto entrando num carro, num carro suspeito. Quer dizer, ele não tinha muita certeza de que era eu, viu apenas de relance. Só que era eu mesma, ele estava na praça comercial para pegar uns documentos na loja de sua mãe. Soube do meu desaparecimento por Dani ter sido interrompida num grupo de estudos pela ligação de Vinícius, avisou aos outros que eu havia sumido. Nessa hora Yuri chegava na casa dela para estudar, também ficaram de final na faculdade.

Apesar de conhecermos bem o carro de André, Yuri não viu muito para reconhecer, ainda bem. De qualquer forma, todos ficaram malucos de imaginar que algo tinha acontecido comigo por causa disso. Eu ainda não acreditava no que fui capaz de fazer, armar todo esse circo.

Era a voz de Vinícius que então me dominava a cabeça, o modo como se deu a ligação de Filipe para o filho, quando eu permiti que avisassem meu paradeiro. A angústia estava latente na voz dele, a atmosfera... Como pude fazer isso com ele? Com todos?

Ouvi cada palavra, cada hesitação de Filipe, que sentado na mesinha de sua sala, alternava de mim para a chave do apê que mantinha em suas mãos desde que entrou e me encontrou. Não sei por que razão ele deixou no viva-voz, mas ele deixou. Estava tão inquieto até para ligar para Vini, ele ficou sem jeito para ligar. Sabia o que estava em jogo, e como ele era visto por vilão. Vinícius não o aceitava, porém, dessa vez, teria que atender essa ligação. Pois Iara não estava disposta a tirar isso dele.

Demorou um pouco para a voz do meu Vini sair de lá. E quando saiu...

– Para de me ligar, eu não quero falar com você, não entende? Não tenh...

– Sei onde ela está, filho.

– ...tempo pra... O quê?

Filipe suspirou numa pausa antes de repetir.

– Sei onde a Milena está.

– ONDE? Como você...? Não importa, ela tá bem?

Ao longe ouvi meu irmão também sendo pego de surpresa.

– Está, Vini... Venha vê-la. Mas apenas você. É... é a condição dela. Estamos no antigo apartamento.

Quase pude ouvir Vinícius chorar. Estava disposto a passar por cima do pai, o “odioso” pai, para me encontrar. Embora tenha resistido no começo, ao ouvir meu nome, ele mudou totalmente o comportamento. O alívio não foi o bastante, ainda lhe sobrara um pouco de exaspero.

– Graças, graças a Deus! Ela está bem! Eu... e-eu estou a caminho, e... err...

– Tudo bem.

A ligação pareceu muda por um ou dois segundos intermináveis. Aí Vinícius voltou a falar.

– ... obrigado, Filipe.

O pai se tranquilizou por acalmar o filho. Com um pouco mais de ânimo, finalizou a ligação:

– Te esperamos então.

A campainha toca, interruptas vezes. Não avisamos ao porteiro de nada, mas Vinícius já havia morado ali, não seria problema ele subir. Subiu. Subiu que nem percebemos, deve ter corrido por essas ruas e avenidas como maluco, e quase me preocupei por isso, se não fosse a ansiedade de vê-lo me tomando por inteira. Ele estava ali, do outro lado da porta.

Seria esse o começo do fim?

– Está aberta.

Digo alto e claro.

~;~

Trilha indicada: Jason Mraz – I Won’t Give Up

When I look into your eyes

It's like watching the night sky

Or a beautiful sunrise

There's so much they hold

Quando olho dentro de seus olhos

É como assistir o céu da noite

Ou um lindo amanhecer

Há tanta coisa que eles carregam

Costumei achar que detinha muitas verdades comigo. Que via através das coisas.

E eu via e detinhas verdades mesmo, muitas das quais mal pude carregar comigo. Só que outras verdades... elas eram inalcançáveis. Pelo menos se não estamos preparados para elas.

And just like them old stars

I see that you've come so far

To be right where you are

How old is your soul?

E assim como eles, as velhas estrelas

Vejo que você foi longe

Para estar onde está

Quão velha é sua alma?

A despeito dos comentários de Djane, eu não era muito de decifrar sentimentos das pessoas, tampouco certa de meus eixos. Por sempre minha cabeça maquinou juntando um e dois, como a conta que deveria me dar as coordenadas certas, os números exatos. Fatos. Realidades... Talvez eu só pensasse demais até travar.

I won't give up on us

Even if the skies get rough

I'm giving you all my love

I'm still looking up

Não vou desistir de nós

Nem que os céus fiquem furiosos

Estou te dando todo meu amor

Ainda estou olhando para cima

Acontece que dessa vez eu travei mesmo, só que por causa duma luta e duma guerra antiga que nunca consegui por fim. Achei mesmo que conseguiria sozinha? Com tantos dispostos a me lançar a mão e puxar do buraco que havia me metido? Estar ciente disso chutava praticamente toda a vergonha que senti esses anos, anos que perdi por orgulho. Medo.

And when you're needing your space

To do some navigating

I'll be here patiently waiting

To see what you find

E quando você estiver precisando de seu espaço

Para dar uma navegada

Estarei pacientemente esperando

Para ver o que você vai encontrar

Iara tinha razão novamente, ela reavivou minha consciência, que se encontrava em plena nebulosidade. Se eu não quebrasse os restos dos muros que sobraram de minhas inseguranças, como haveria de quebrar os muros do mundo afora? Estava aí meu um e dois se juntando para uma nova dialética, uma nova síntese.

Uma compreensão.

Cause even the stars they burn

Some even fall to the earth

We've got a lot to learn

God knows we're worth it

No I won't give up

Pois ainda que as estrelas queimem

Ou que algumas caiam na terra

Temos todos que aprender

Deus sabe como valemos a pena

Não, não vou desistir

Mas deixo para trás números e exatidões, estou frente a frente com o indefinido mais definido de todos, talvez. Ele que também não é certo de seus eixos e nunca quis que eu fosse, pois nossas loucuras de alguma forma se completavam, o amor preenchia. Eu o aceitei como veio, alguém perdido na sua própria história tal como eu, e que via um caminho a seguir quando estávamos juntos.

Posso ter sido sua luz, mas ele, Vinícius, era minha energia.

I don't wanna be someone who walks away so easily

I'm here to stay and make the difference that I can make

Our differences they do a lot to teach us how to use

The tools and gifts we got yeah, we got a lot at stake

And in the end, you're still my friend at least we did intend

For us to work we didn't break, we didn't burn

We had to learn how to bend without the world caving in

I had to learn what I've got, and what I'm not

And who I am

Não quero ser alguém que se afasta tão fácil

Estou aqui para ficar e fazer a diferença que sei que posso

Nossas diferenças, elas fazem muito para nos ensinar como usá-las

As ferramentas e dons nós temos sim, nós temos muita coisa em jogo

E no final, você ainda é minha amiga, ou pelo menos intentamos por ser

Para que déssemos certo, não quebramos, não queimamos

Tivemos que aprender como nos virar sem o mundo acabar

Precisei aprender o que tive, e o que não sou

E quem eu sou

Ele pausa por uns segundos na porta quando a abre num empurrar brusco, quase desacreditado por me ver finalmente. Estava desacreditada até então do que eu tinha. Até nos olharmos olho no olho e ver que havia algo muito forte entre nós, tão forte que ali novamente ele era minha energia, para lhe resplandecer luz.

E algo ali nesse encontro das retinas, no brilho delas, materializava-se amor, amor esse que me esquentava o coração, este que precisava tanto dele, e por isso batalhava dentro da caixa torácica minha, pulava chamando-o, bombeava forte ao peito, mostrando-se presente. Carente.

Havia entendido enfim, quem eu era, e por isso mesmo era aceita.

I won't give up on us

Even if the skies get rough

I'm giving you all my love

I'm still looking up

I'm still looking up

Não vou desistir de nós

Nem que os céus fiquem furiosos

Estou te dando todo meu amor

Ainda estou olhando para cima

Ainda estou olhando para cima

Num segundo mais eu estava em seus braços, sendo beijada, agraciada, acalentada. Amada. Amada mais que tudo. Havia esperanças sim, pude concluir com um pequeno sorriso, e ele não precisava ditá-la para mim. Se amando do jeito que me amava, que me provava em seu aperto, quem era eu para negar? Para duvidar?

Ele não havia desistido de mim. Eu também não tinha desistido dele.

I won't give up on us

(No, I'm not giving up)

God knows I'm tough, he knows

(I am tough, I am loved)

We got a lot to learn

(We're alive, We are loved)

God knows we're worth it

(And we're worth it)

Não vou desistir de nós

(não, não vou desistir)

Deus sabe que sou difícil, ele sabe

(eu sou difícil, eu sou amado)

Todos nós temos que aprender

(estamos vivos, somos amados)

(e valemos a pena)

Com Vinícius, reergo-me. Se estava para encontrar o fundo daquele buraco, ele se lançou para me buscar a tempo. Se numa parede qualquer de um túnel eu permanecia esgueirada, ele não me esperou ao fim, ele fez questão de quebrar, detonar a parede, abrir ele mesmo uma saída. Enfim, dentre todas as metáforas, Vinícius me dava a mão para estabelecer o equilíbrio.

I won't give up on us

Even if the skies get rough

I'm giving you all my love

I'm still looking up

I'm still looking up

Não vou desistir de nós

Nem que os céus fiquem furiosos

Estou te dando todo meu amor

Ainda estou olhando para cima

Ainda estou olhando para cima

Iríamos enfrentar aquilo juntos, seus beijos, seu aperto, seus agradecimentos me diziam. Não teria porque eu desistir de mim se ele acreditava que eu tinha força para o que se seguiria. Eu ia achar! Perder nem sempre é uma coisa ruim, ceder era um recomeço. E daí sairia apenas uma Milena, uma Milena para esse Vinícius. Quem também precisava de mim, desse jeito maluca como sou.

Por um minuto só respiramos. O que estava à flor da pele ficava para trás uma vez que sobre ela havia o calor dele. Firme em mim, uma mão ampara-se em minha cabeça, outra pelo meu dorso, como se a largar fosse me perder, coisa que ele não queria, não permitiria mais. Murmurou por fim uma reprimenda, com a testa na minha, sofrível.

– Você prometeu, prometeu que não faria mais isso, não me assustaria mais assim, a seu irmão. E todos que se importam com você... Lena...

Só não doía tanto por já ter aceitado que assim seria, e que daria meu jeito de consertar esse circo que fiz. Se foi preciso quebrar a cara para isso, bom, já quebrei.

– Desculpa. E-eu...

Ele eleva ambas as mãos para minha cabeça, não permite mal que me mexa, ficamos testa a testa, fitando-nos com aquele brilho, aquele calor. Amor. Meu coração batia tão enlouquecido que era impossível esquecer a adrenalina que corria de mim para ele, que também tinha seus saltos dentro do peito, eu senti. De alguma maneira, era tão... bom. Mesmo tratando-se daquilo.

– Eu entendo, Lena. Eu finalmente entendi...

– Você leu.

Não era uma pergunta. Ambos devem ter lido, podia apostar. Murilo não iria se segurar para isso, e nem se segurou mesmo se, de acordo com seu Júlio e Gui, ele destruiu tudo que vinha a sua frente pela raiva que lhe acometia.

Entre poucas arfadas, Vinícius não nega. A emoção tão latente em si que mal podia comunicar-se comigo. Mas dá tudo para ser direto, nem que tenha de me repreender novamente.

– Desculpe, tive que ler. Não acreditei quando... quando Flávia me contou. Pareceu tão... absurdo... Mas deu sentido a tanta coisa... Por que não nos contou? Ao menos a Murilo? Céus, Milena, isso é uma coisa séria, entende? Essas coisas... A gente conta.

Engulo um pouco de ar, termino por me expor, as minhas inseguranças, os pedregulhos daquele muro que havia caído. Não era para eu ter razão em minhas justificativas, só... eram justificativas coerentes ao tempo que permaneci perdida.

– Como eu d-diria? Como poderia? Com que c-cara?

Vinícius não se aguenta, ele chora, me abraça, forte. Seu corpo treme conforme tenta engolir os soluços que o pegam, essa emoção chegava atrasada. Acho que ele ainda descrente estava por como as coisas se sucederam. Como eu queria não ter dado esse pânico a ele!

– Deus, como você nos enlouqueceu. Você tem noção? A gente já ia ligar pra polícia, ninguém sabia de você! Por mais que entenda sua imprudência, Milena... Droga, preciso de você. De você bem, entende? Amo você. Consegue fazer isso?

Aperto-o mais contra meu corpo, deixo que ele se afunde em mim até que se sinta seguro. Iria sanar esse seu pânico como ele havia sanado o meu.

– Eu quis falar, tantas, tantas vezes, quis... quis me livrar d-disso. Eu num podia... Você sabe como meu irmão reagiria... Tive tanto... tanto m-medo. Tenho ainda um pouco, para falar a verdade. Ele já me deu as costas uma v-vez por tê-lo magoad...

Vinícius se desvencilha de mim quase num pulo, parece assustado pelo que comentei. Chega a franzir a testa bem enfático por quão absurdo isso soa para ele.

– Por isso, amor? Por isso? Murilo nunca o faria! Desse jeito parece que nem conhece seu próprio irmão!

Replico, envergonhada:

– Ou talvez por conhecê-lo demais e ter ciência do quanto já detonei a cabeça dele...

Vinícius me abraça novamente. Era tão bom estar com ele. Como se fosse o ar que arejava minha cabeça. Mas uma insegurança, um receio retorna quando o inesperado vem. Não havia pensando ainda sobre isso, só... achei que me dariam um tempo.

– Você precisa falar com ele, Lena... Ele precisa da verdade. Precisa de você.

Eu me desvencilho, assustada.

Meu coração salta e dessa vez salta de um jeito que nunca pensei ser possível. Passo um segundo ou dois de boca aberta, piscando rapidamente, me forçando a responder, até que sai, saem os meus medos.

– Não sei se consigo, Vini. Quero muito vê-lo, mas essa dor.... essa tamanha dor que causei...

– Ele tá lá embaixo.

ELE VEIO?

Nego com um balançar de cabeça esbaforida pela notícia.

Murilo. Murilo estava lá embaixo.

Tão longe, tão perto.

– N-não... N-não... Não tô preparada. Não agora.

E mais uma vez Vinícius me joga a rede para me puxar do campo das dúvidas. Responde tão firme, tão determinado que deveria ter, quem sabe, mais sanidade que eu àquele momento. E se fosse essa a verdade? Que fui tola de ter tanto medo, resquícios do meu passado ruim?

– Ele que não tá preparado pra te perder, Lena. Ele tá tão arrependido, por tudo. Raivoso também, mas não por você. Pela Denise enfim. Conversa com ele? Por favor?

No entanto, o receio ainda está cá, comigo. Tremo só de imaginar. Vinícius percebe meu estado vacilante e o porquê dele.

– E-e-eu... hmmm... e-eu...

– Ele também tem vergonha. De todo o comportamento, tudo o que fez, pelo que brigou... Dá uma chance a ele? Estou aqui, não vai acontecer nada. Nada que os machuquem.

Agora? Ia vacilar de novo, então Vini remedia antes que aconteça. Ele me toma, me abraça o rosto, me beija calmo, porém significativo. A textura desse toque breve me repreenche. Ele estava ali, não iria acontecer nada. Como disse, nada que nos machucasse. Era o fim do meu tormento?

Levei uns bons minutos até concluir que poderia sim ser, e ditar uma resposta final:

– Diz... diz pra ele subir.