Mantendo O Equilíbrio - Finale escrita por Alexis terminando a história


Capítulo 158
Capítulo 157


Notas iniciais do capítulo

PREPAREM OS CORAÇÕES - e uns lencinhos, porque MUITAS EMOÇÕES!
Hora de ter orgulho de nossas criaturinhas ♥



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Eu vi tantas coisas nessa noite que não consigo desver. E NEM QUERO!

Vi minha avó comandar mamãe e Djane com uma sombrinha de cano longo para dançar aquele country clássico da Shania Twain, “Man! I feel like a woman!”, de guitarra pesada e que de fato balançou esqueletos. No caso, mais o esqueleto da minha avó – com o cinto de cristais verdes que tomou para si – do que de mamãe ou de Djane.

 Vi meu avô e o vô-sogro puxarem palmas ao som de Seven Nation Army e dançarem desengonçados de perucas coloridas. Vi Filipe e meu pai combinarem passos estilosos e marrentos para “Short Skirt, Long Jacket” do Cake. Vi meu irmão imitando o Justin Timberlake com passinhos e giradinhas junto do meu namorado. E como combinado, Iara puxou o hey-hey-hey e hey-hey-ho da música de entrada e eu apareci movendo os braços enquanto ela dublava a Avril com uma postura punk, pulando ao meu redor. Sua pose final foi mostrar a língua e eu os punhos para o namorado que tirava a foto. As outras foram Iara quem deu os cliques.

Tô tão passada com tudo que acho que nem consigo processar mais nada, só quero continuar assistindo e vivendo esse momento bom, mesmo que agora estamos todos dispersos porque enfim liberaram os presentes. Algumas pessoas, como Filipe, Djane e seu Júlio, eu tinha proibido de comprarem algo, mesmo eu tendo quebrado o acordo e preparado algo para eles. Mordisco outro bombom de chocolate de uma baita caixa que ganhei de Djane – na verdade, tinha um brinco fofo lá dentro, dourado e vermelho em formato de corações, e tô aqui me imaginando usar uma tornozeleira, presente de sogrinho e vô-sogro, para quando estiver andando de novo. Nunca usei nada do tipo. Também não tive uma para usar, então é algo novo também.

Vinícius até reclamou de que aceitei muito fácil. Bom, com Filipe e seu Júlio eu não precisava ser linha dura. Por isso que Djane inventou isso de caixa de chocolate chique pra esconder o mimo do brinco, porque sabe que eu não ia aceitar algo caro demais. No meu aniversário ela tentou me dar um notebook novo e eu fiz ela ficar com ele. Sim, nesse nível. Primeiro porque eu não precisava de um dispositivo novo, segundo porque ela precisava mais do que eu, e terceiro, era um outro nível de presente, desses que não aceito mesmo.

Poisé, sou doida assim.

Então quando eu disse que não era para comprar nada, ou pelo menos nada extravagante, já sabia que pelo menos Djane ia quebrar o acordo, apesar de dessa vez ela ter sido mais comedida. E depois dessa, juramos que para o próximo ano vamos fazer um amigo oculto e com valores definidos, para não termos mais discussões bobas como essas.

Sim, próximo ano. Algo para o nosso futuro.

O namorado? Brincou de fazermos um amigo da onça. Com essa, tive que saber:

— Quer tanto ganhar meias?

— Talvez band-aids.

Iara dá um novo gritinho ao lado da árvore de Natal e chama a atenção de geral para ver o que a faz dar pulinhos esfuziantes e agradecer a peste do meu irmão por algo que não consigo ver. A pedidos, ela se vira, mostra a camisa oficial do Botafogo e depois salta em cima da criatura.

Do corredor, surge Filipe com uma caixa enorme aos braços. Ele caminha pela sala até chegar no filho, que não o percebeu ainda, por estar tirando mais fotos de sua irmãzinha agitada demais com seus presentes. Mas quando o percebe, diz:

— É um daqueles?

Mamãe me cutuca com a pergunta “um daqueles o quê?” e eu dou de ombros, porque também não sei. Ela espia enquanto brinca com vovô com o tablet que dei para ele. O mesmo que ela ganhou. No outro sofá, os dois parecem duas crianças com brinquedo novo e tecnológico, testando as funções.

Mas a grande criança estava para se revelar ali na sala.

Apoiando o embrulho nas pernas, Vinícius abre e então entendo o que é. Um dos presentes que Filipe foi colecionando ao longo dos anos sem poder dar ao filho. Era uma pista com carrinho de corrida. Autorama. Murilo logo se empolga ao ver.

Mal ele deixa Filipe terminar de abraçar o filho e eu quase taco minha caixa de chocolates nele por isso. Se estivesse mais próximo de mim, eu teria o feito mesmo, então só me sobra assistir essa criatura ora sendo gente grande, ora sendo apenas um menino.

— Abre, abre, abre!

— Acho que não tem espaço pra montar, cara.

— A gente dá um jeito.

— E tem muitas peças.

— Eu monto.

— Melhor amanhã, Murilo.

— Mas amanhã eu vou tá com a Lia.

O bico do meu irmão é ignorado por mamãe, que se mete na confusão:

— Murilo, deixa o dono do presente decidir quando vai abrir.

— Mas eu queria brincar também. Nunca tive um autorama.

— E não vai ter um agora pelo jeito.

Digo, apesar de ter um pouco de dó da criatura, que faz cara de triste pra ver se convence o Vinícius a abrir. Acho que convence.

— Dois montando fica mais rápido, né?

— Com certeza!

— Tá, eu só vou pegar meu carregador ali no quarto e a gente monta.

— YES!

Quando o namorado sai e Murilo enfim vem pro meu lado, pra ajustar a mesinha de centro e dar espaço ao brinquedo, dou com um travesseiro na cara dele. Não queria que aquele seu cabeção estragasse o presente de Djane.

— Precisava insistir?

— Claro. Mas se der com essa almofada de novo em mim, machucado, fica sem presente.

— Eu já ganhei presente. Ou a facada te fez esquecer isso também?

— O seu outro presente. Achou que ia ser só aquele?

Bem, achei.

— E cadê?

— Agora tá interessada, né?

— Talvez.

— Mas seu presente não vai chegar agora. Só depois... Quando se formar.

— O carro?

Seria eu muito controladora com presentes? Ou “orgulhosa” seria a palavra?

— Sim, mais uma parte pra comprar o carro.

— Ai, Murilo, não era... Não era preciso.

— Sabe que faria tudo por você.

— Embora não devesse tanto.

— É só um presente, mana. Aceita.

— Vou pensar no teu caso e... Eu ia contar depois, mas tenho um outro presente pra você. Mas conto só amanhã. Não quero atrapalhar aí tua diversão.

— Ah, não, agora que começou, vai ter que falar.

Antes que pudesse arrancar de mim o que era, Iara desliza para o centro da sala e, em todo seu esplendor, diz:

— Gente, vai dar meia-noite!

E com a voz da sabedoria, minha vó conclui com seriedade e certa traquinagem, da qual não sei se é pra ter medo ou só confiar no que vai aprontar:

— É chegada a hora de mais uma de nossas tradições.

 

~;~

 

— Alguém quer ir primeiro?

Essa era mais uma tradição tendo seu update e não havia viva alma que não estivesse um pouco abalada pela proposta de vovó. Se a dinâmica passada com frufrus e danças teve resistência da minha parte, essa eu não tenho nem como nomear.

Para a edição diferente e comemorativa deste encontrão, dona Marília propôs uma forma de conhecermos uns aos outros e também a nós próprios. Ao invés de uma vitória para agradecer e uma derrota para perdoar, tínhamos de compartilhar duas situações que aconteceram este ano em específico: uma da qual orgulhávamo-nos e outra que não. Coisas pessoais e não de trabalho.

Quem falasse mais uma vitória de trabalho, o que foi bem comum nos últimos anos, iria lavar a louça do dia seguinte. Toda a louça.

Nem consigo olhar para os lados para ver mais da reação dos outros, só me fecho um pouco em mim, olhando para minhas mãos ao colo, apertando uma a outra. Não sei se estava preparada pra esse nível de exposição. Não sei se alguém está. O que não me faltavam eram histórias das quais não me orgulho.

Não me orgulhava de ter mentido ou de ter fugido, por exemplo. Não me orgulhava de ter escondido histórias de vidas inteiras do Murilo. E do Vinícius. Não me orgulhava de ter feito um acordo com um hacker, mesmo que para salvar a pele do meu irmão. Não me orgulhava... de ter matado tantas aulas.

O que eu poderia dizer? Qual situação poderia compartilhar? Que história poderia falar sem que implicasse em outras mil? As minhas barreiras me tencionam a tal ponto que me trinco e me tranco toda. Porque essas barreiras não estavam dispostas a deixar passar qualquer história, por mínima e simplista que fosse. E acontece que não haviam histórias simples.

Quando papai levanta a mão e detém um ar um pouco lamentoso, para o qual mamãe, ao lado dele, faz um carinho em seu braço, não sei também o que esperar.

— Houve uma situação na loja cerca de três meses atrás em que eu não fui uma pessoa muito justa.

Ele nos ambienta do que dá a entender ter sido um roubo, que uma funcionária teria sumido com alguns livros didáticos da livraria. Papai a demitiu antes mesmo de conferir a história. Acontece que, além disso, foi muito grosseiro com a moça. É difícil ver papai assim de tão suave na nave que ele pode ser. “Mas somos todos humanos e temos momentos de descontrole e de explosão”, é o que ele diz.

Vovô conseguiu averiguar o caso e descobrir que não tinha sido a funcionária. Que não tinha sido roubo, afinal. À hora dessa descoberta, dias depois do ocorrido, papai já estava mortificado por como havia reagido, e com esse relato de vovô, foi tudo ao chão de vez. Ele foi na casa da ex-funcionária pedir desculpas, não só pela demissão injusta, mas pelo modo com que se comportou. Ofereceu um novo cargo, porque ela até então estava apta para a gerência, e com certo custo ela aceitou. Não para menos, né?

Mas papai ficou sentido por semanas tentando entender melhor daquela sua reação. Na verdade, ainda parece reflexivo sobre como chegou a tal ponto. Não era, de fato, um comportamento para se ter orgulho.

No sofá grande, onde estamos, mamãe o conforta outra vez. Dá a mão a ele que segura e aperta ao alto de uma almofada. Como eles estavam na outra ponta do sofá e Murilo por todo nos separando, não consigo alcançá-los. Mas tive essa vontade de também fazer algo. Fazer algo e dizer algo. Mas por considerar que dali papai iria emendar a história da qual ele se orgulhava, fico na minha.

Só que ele não conta e então percebo que o conforto entre ele e mamãe não era só por conta dessa história.

— No começo desse último semestre, me vi numa situação de extrema impotência. Um aluno do segundo ano tentou pular do parapeito da escola onde trabalho.

Mamãe conta que foi uma das pessoas que ficou por perto para amparar o garoto. E mesmo tendo conseguido tirá-lo de lá, ela diz que isso a fez tremer por dias a fio. Porque a fez questionar toda sua profissão, suas responsabilidades e sua função tanto como educadora quanto pessoa. Diz que entende que há coisas que nem todos conseguimos alcançar, mas teria sido devastador demais ver um aluno pular daquela maneira, desejando não mais viver porque sua vida ali era um inferno.

Pelo que a escola apurou, o aluno era perseguido por um grupo de colegas. Mamãe não entra em muitos detalhes, penso que para manter a privacidade do garoto e para se concentrar também no próprio desabafo. O que mexia consigo era ter ignorado algumas brincadeiras de mal gosto dentro da escola, encarando-as como meras brincadeiras e não de fato agressões. Não se orgulhava disso.

Me ouço dizendo algumas palavras, enquanto tento alcançá-la de onde estou. Murilo também se move para atravessar papai.

— Mãe, por que não disse nada pra gente?

Ela só dá de ombros, um pouco chorosa de relembrar e isso me pega porque... ela também tem barreiras. Ela também quer se fazer forte perante sua família. Perante mim.

E não só ela também tem essas barreiras, percebo. Seu Júlio escolhe ser o próximo e traz algo bem particular quando cita a falecida esposa que havia feito um pedido antes de ir. Que “cuidasse dos frutos e das flores da família”. Ela quis dizer os filhos e o relacionamento familiar, pelo que ele explica. Dona Catarina morreu quando tanto Filipe quanto Gustavo eram bem jovens, acho que mais ou menos com a idade que tenho hoje.

Desde aquela época ela sentia a distância que havia entre os filhos e o pai. O trabalho muitas vezes foi o que os apartou. Com o falecimento dela, o afastamento foi se alargando. Com a morte de Gustavo, uns anos atrás, e o retorno de Filipe, as coisas ficaram embaralhadas novamente. Mas o acidente de carro de Vinícius o assustou. O mesmo segredo de paternidade do qual seu Júlio quis se eximir, fê-lo ir atrás de consertar as coisas. Ao menos, parte delas. Não poderia negligenciar a vida de outra pessoa mais.

Isso deu tão mais dimensão ao que foram as confusões do ano passado. Ao seu retorno para a vida de Vinícius e Djane. Não que seu Júlio nunca tivesse falado a respeito, mas... não dessa maneira. Não tão pessoal. Não tão perturbado e vacilante.

— Mas, claro, a proposta aqui é falar sobre algo deste ano, não? Eu não me orgulho de muita coisa que fiz no passado, como fiz ou como ignorei. E no último Natal, podendo ter meu filho e neto junto comigo, mesmo que não exatamente juntos, me fez pensar na minha Catarina.

Do outro sofá, o pequeno, que concentra seu Júlio numa ponta, Filipe ao meio e Iara na outra extremidade, o vô-sogro é surpreendido pelo filho, que, como mamãe ainda pouco, ofereceu sua mão ao colo para dar apoio. Ao unir suas mãos, o grande patriarca continua:

— Me fez pensar sobre como queria cuidar mais de “nossos frutos e flores”. E me prometi fazer mais nesse sentido. Contudo... outra vez o trabalho me sugou a presença e logo depois a saúde. Tive alguns cansaços, recaídas e fui para a emergência por puro estresse.

Nesse ponto, é Murilo quem busca minha mão. Bem lembro de como foi descobrir que seu Júlio escondeu um mal-estar e todos ficamos apreensivos sobre ele ficar sem amparo dentro de casa. De como isso pediu de nós acelerar um pouco a mediação sobre o dossiê de Viviane ao Vini e até mesmo acelerar a mudança de Filipe para a grande casa.

— Acontece que já não sou tão forte como antes, já não dou conta de tanto trabalho. É chegada a hora de diminuir ainda mais o ritmo. É também tempo de começar a olhar um pouco para fora do escritório, para as flores e frutos da casa, literal e não literal.

O meu presente para ele foram dois livros, o de vovó, que ele pôde receber com autógrafo e dedicatória feita na hora, e um livro de introdução a jardinagem, que foi algo que conversamos um tempo atrás, em que expressou seu desejo de cultivar algumas plantas. Também por conta da Dona Catarina, que amava tudo sobre paisagismo.

Com essa história emocionante, Iara levanta e se senta os pés do vô-sogro, onde, chorosa, declara, antes de abraçá-lo:

— Eu ajudo o senhor, vovô.

— Nada, querida, você já tem muitas coisas para lidar. Outras flores e frutos. Seu trabalho e seus estudos.

Seu Júlio tentando diminuir sua necessidade de apoio e tentando fazer pouco da própria situação me faz pensar em como faço isso também. Poderia eu dar de ombros, como fez a minutinhos atrás.

Me volto para a sala ao passo que Iara se desvencilha do avô e diz, resoluta, algo que parece ter mil significados entre os dois. O que sei é que ambos eram bem workaholics ­– “viciados em trabalho”.

— O trabalho não pode mais ficar entre quem ou o que amamos, não é?

— Exatamente, minha filha.

Assim, Iara se senta ao braço do sofá pequeno, ao lado do vô-sogro. Depois de uma inspirada que dá e de batidinhas na mão que recebe de seu Júlio, ela continua:

— Falando nos meus estudos e trabalho... Eu sei que não é para falar de trabalho, mas é inevitável falar sobre algo que me pegou este ano. Nestes últimos meses principalmente. Havia um executivo na empresa que... Ele tentou me rebaixar no serviço porque eu não tenho formação acadêmica.

Vejo Vinícius se sentar mais à ponta de sua cadeira, interessado nessa história em específico. Não sei por exato o que ele sabe ou o que ouviu sobre isso, mas do que teve acesso, ele expressou a vontade de defender sua irmã. Apesar de ter sido uma conversa um tanto descontraída mais cedo, eu sabia que havia fundos de verdade.

— Ele, inclusive, atentou contra minha credibilidade. Alterou uma documentação para que... Para me prejudicar. O fato de eu voltar a estudar não teve exatamente a ver com ele, mas o cerco que fazia em cima de mim me fez duvidar de mim mesma... e várias vezes. Mas o que menos me orgulho disso tudo é de ter guardado isso comigo e achar que poderia eu resolver sozinha.

A cabisbaixa Iara levanta a cabeça assim que vê Vinícius se levantar, sério e, sim, protetor. Ao contrário de seu Júlio, ela demonstra que aprecia sua atitude e se emociona bastante quando o faz. Meus olhos também se enchem por todo, principalmente quando eles se encontram ao centro da nossa roda.

— Não precisa resolver mais nada sozinha. Me dá o nome desse cara que...

— Obrigada, irmãozinho, mas existem outros meios de resolver isso. E está resolvido, porque ele foi demitido. Mas agradeço seu apoio de verdade, porque antes... Eu s-sempre tive a sensação de ser eu contra o mundo e que sempre seria sozinha e que devia fazer e resolver as coisas sozinha. Fui obrigada a fazer isso por muito anos. Mas já não preciso. Tenho você, o papai, o vovô. E todos vocês.

Ao estender a mão para o Vini, que a segura, e olhar ao redor para todos, é impossível não deixar umas lágrimas descerem. Ouvir fungadas de narizes congestionados me dá a certeza que não sou só eu nesse sentimento.

Com o abraço dos dois, me aconchego mais no Murilo, deitando minha cabeça no seu ombro, não o machucado. Um pequeno silêncio reina até que os dois voltem para seus lugares – Iara para o lado do pai, que a abraça de lado e dá um beijo na testa, e Vinícius para sua cadeira, ao lado de Djane, que o recebe com carinho.

É essa hora que a sogrinha decide também compartilhar sua história.

— Eu bem entendo a história de vocês dois. Tanto do Júlio, quanto de você, Iara. Não me orgulho de ter deixado um colega de trabalho me afetar tanto a ponto de eu descuidar da minha própria saúde. Foi um professor, Bartolomeu. Ele pode ser um serzinho bem desprezível quando quer. Espalhou mentiras sobre mim e de outros colegas da instituição. Também tentou prejudicar pessoas queridas. E eu deixei que mexesse comigo, com meu orgulho.

Bem lembro de como Djane ficou exaltada naquele período. Até porque fui eu também uma das pessoas afetadas, porque o professor Bartolomeu queria atingir a ela. Isso me faz pensar também no desabafo de Iara e de como eu também achei que poderia resolver por mim mesma e proteger Djane. Éramos para rebater juntas, mas no final das contas atuamos cada uma por si para proteger uma à outra. Bartolomeu soube mexer com nossos gênios e nosso orgulho. Ele, aliás, quem deu essa dica para o André.

— Acontece que ele queria um cargo para o qual não estava qualificado e fez de tudo para me tirar do páreo. Logo eu, que nem tinha interesse na vaga. Mas ele me importunou tanto... Lançou dúvidas sobre mim, sobre minha competência. Quase me parti em duas pra dar conta de todo o trabalho. Tive que ir para o hospital para entender que nada meu estava em jogo, nem que eu precisava provar nada. Não... não me orgulho de ter agido assim. Tampouco de ter tentado afastar as pessoas que mais estavam pensando no meu bem, como o Renato.

Estava ouvindo cabisbaixa, me sentindo naquele momento todo de novo, até que Djane menciona Renato. Me transporto para a confissão dela no hospital, de quando não sabia comunicar bem as coisas ao próprio parceiro.

Mas outra pessoa nesta mesma sala chama a atenção e surpreende. Ao passo que Djane segurava nas mãos do filho para desabafar, Vinícius a solta de repente e a interrompe com uma expressão bem receosa:

— Mãe, tenho uma confissão a fazer.

Djane fica tão desnorteada com essa abordagem que nem reage de primeira.

— Eu... fiz uma coisa muito ruim. Me arrependi e depois consertei, mas eu nunca te falei. E nunca falei pra outra pessoa, senão a Milena.

Ele vai falar o que eu acho que ele vai falar?

— Eu... Eu tentei afastar o Renato de você. Me desculpa, mesmo.

— Filho!

O exaspero dele se torna o exaspero de Djane e, envergonhado, Vinícius não olha para nada se não os próprios tênis. 

— Às vezes eu posso ser esse inseguro. Desculpa. É uma sensação estranha que tenho às vezes... de que posso perder as pessoas que amo. Tive essa sensação com Renato, de que iria perder você... perder contato com você... momentos com você... por causa dele. Desculpa mesmo. A minha cabeça pode ser uma bagunça.

Com um carinho em seus cabelos e rosto, Djane se reaproxima dele, puxando o filho para si:

— Ele nunca ficaria entre nós.

Mas o Vini ainda está envergonhado, e mais pelo seu ato do que estar expondo tal fato agora, na frente de todos. Isso o faz pender novamente a cabeça para o chão.

— É, eu sei. Agora eu sei. Mas naquele período que vocês... que vocês começaram a namorar, eu perdi um pouco a cabeça. Foi por isso que não aceitei de cara, impliquei bastante. Depois daquele primeiro jantar lá em casa, eu o encontrei na rua por acaso e disse – ou melhor, mandei – que se afastasse de você. E eu não me orgulho de nada disso.

Com essa, ele finalmente levanta a cabeça, lamurioso e ansioso:

— Me desculpa, mãe.

— Vini.

— Me desculpa mesmo.

Mais um abraço arranca suspiros e comoção da sala. Ainda processando todas essas emoções, me aperto contra o Murilo como se pudesse escolher não sentir tudo isso. Como se estivesse com vergonha dos meus próprios sentimentos. Uma vontade de me encolher para não ser golpeada. Me esconder para não demonstrar. Mas então ouço a voz baixa de meu pai e não é pra mim:

— Você consegue, filho.

Isso me faz encarar o Murilo de fato e ver como está todo rígido. Sua respiração está um pouco tensa, entrecortada e custosa. Sua face demonstra preocupação e angústia.

O que está acontecendo?

Vinícius ainda estava tendo seu momento com a mãe quando Murilo solta:

— Eu q-quase fui preso esse ano.

E não vejo nada mais ao redor se não Murilo em todo seu nervosismo e desconforto, que se desvencilha de mim e de papai e ajeita a própria posição no sofá. 

— E a-acho que deveria ter s-sido preso.

Um minuto atrás estava trancando tudo e empurrando para dentro de mim e agora não posso evitar a água que me enche os olhos e abre caminho por minhas bochechas.

Murilo puxa o ar para continuar:

— Eu... Como posso dizer? Eu surrei uma pessoa. Eu, Murilo, surrei alguém. E não foi a primeira vez que bati assim a ponto de machucar feio. Tem algo aqui dentro que cresceu junto comigo e de que não me orgulho. Não me orgulho dessa fera que tenta me dominar. Um traço de fúria e frustração que quer se valer de força... E de violência.

Não quero ouvir e ao mesmo tempo... quero tirar sua dor. Ainda mais que ele bate ao peito para demonstrar que esse sentimento tem feito parte dele há muito tempo. Simplesmente não sei o que fazer, como reagir.

— Eu... Eu achava que algumas responsabilidades eram minhas. Mas não eram. Perder o controle sobre elas me deixava... insano, louco, enraivecido. E eu não gosto de mim quando esse traço aparece. Me faz sentir... um monstro.

Me afasto um pouco para trás no sofá e cubro o rosto com as mãos. Sei o quanto queria ouvir esse desabafo de Murilo e o quanto queria que essa dor passasse, mas revolver isso também é revolver parte de mim que é insana, irracional. E covarde.

Murilo, por outro lado, está sendo super corajoso. Está determinado sobre reconhecer cada vez mais a merda que fez e que quer fazer diferente.

— Mas eu não sou um monstro. E essa força inconsequente... Ela não sou eu. Eu p-posso ser melhor e posso fazer... melhor. Posso escolher reagir de outras maneiras. Mas é algo que tenho que trabalhar em mim.

Seguro um soluço apertando a sensação de choro dentro de mim, ainda com as mãos cobrindo a boca e parte do rosto. Eu deveria estar orgulhosa, eu sei, mas por alguma razão, sua história me faz sentir exposta. Porque sua história também tem a ver com muitas das minhas. De como isso sempre se embolou de maneiras incorrigíveis. Talvez incorrigíveis até agora.

— Por isso, recentemente busquei ajuda profissional para lidar com esses impulsos. Porque nunca mais quero sentir o que senti quando surrei aquele cara, nem mais me deixar dominar por uma grande ira que vê solução apenas na agressão. Não importa se o cara merecia ou não. Não importa se ele tentou machucar uma pessoa que amo. Eu posso escolher fazer diferente.

E então ele vira para trás quando percebe que, mesmo sentada ao seu lado, estou no fundo do fundo do encosto do sofá, aos prantos. Encontrar seus olhos marejados e sua expressão despedaçada me faz soltar de vez o soluço que tava segurando e faço isso alto. Alto o bastante para Murilo puxar minhas mãos do rosto e me dizer:

— Eu tô fazendo diferente, Lena.

E então me abraçar, de modo que ele me cobre por todo e fico meio que presa ao seu corpo e nossos espasmos se encontram. Lembro de nossas conversas, tantas conversas. Nossa última vez com força total.

Chorar c-com você me libertou muito. E como chorei na terapia depois, você nem imagina. Acho que chorei o que não me permitia em anos.

Eu escondi. Só que não quero mais esconder. Assim como não quero que você esconda os seus sentimentos.

Chorar... não é tão... Não é tão ruim quanto se pensa. É uma sensação estranha, mas que liberta, e como liberta.

Isso é bom, porque significa que não precisamos guardar tudo.

Estariam me pedindo isso? Chorar para ser... livre?

Tenho que... respirar... porque... não dá mais... não dá mais pra ir pra baixo.

Sinto um movimento diferente pelo sofá e quando abro os olhos que não havia percebido ter fechado, vejo mamãe sentando-se ao braço do móvel ao meu lado para se juntar a esse abraço e vejo também papai acolhendo e amparando meu irmão, pelo modo com que passa a mão nas costas dele e... todos queremos cuidar um do outro, essa é a verdade. Como eu quis um dia cuidar e intervir por cada um nesta sala, percebo. Como fiz pelos meus amigos.

Mesmo que não me orgulhe de certas coisas, me orgulho muito de outras.

Mas será que poderia me orgulhar de falar sobre minhas dores também?

Sentir a asa da minha família me acolhendo pode ser um bom indício disso. Receber um copo de água de Iara e ver como Djane estava também de pé, segurando o Vini para não intervir, e meu avô logo atrás de mamãe para também demonstrar seu suporte. Acho que todos entenderam que a história de Murilo é parte da minha história também. E isso não parece tão ruim quanto a um minuto atrás.

Eu só preciso recuperar meu fôlego agora. Recuperar minha força para assumir isso tudo também.

Bebo minha água ao passo que Murilo recebe um copo também, de Filipe, recuperando-se dessa grande emoção. Filipe também faz um carinho por meus cabelos e depois dá um tapinha ao ombro de Murilo.

— Todas as nossas histórias mais difíceis sempre envolvem algum tipo de medo, não é?

Ao tomar uma golada de água, Murilo levanta a cabeça pra ele e pergunta, mais centrado:

— E qual é o seu medo?

Filipe coloca as mãos ao bolso, inibido e um pouco cansado, porém, responde:

— O mesmo de todo mundo: ser mal interpretado, mal encarado, até escorraçado.

Vinícius e seu Júlio surgem por trás dele de repente:

— Pai?

Mas Filipe, pendendo a cabeça para baixo, continua a descarregar, como se estivesse dizendo a si mesmo antes dos outros:

— Medo de não conseguir me desculpar o suficiente ou me perdoar o suficiente.

Assim como Vinícius o envolve de lado e Iara os completa, eu quero dizer que está tudo bem e que vai ficar tudo bem. Aliás, gosto de ser a pessoa que diz isso.

Por que não consigo dizer pra mim?

Em um movimento leve, Filipe deixa os próprios bolsos para apertar com os braços os filhos de cada lado de seu corpo e dar um beijo na cabeça de cada um.

— Não se preocupem, o medo que me assombra não são vocês. Vocês são minha alegria cotidiana. O que me preocupa mesmo, e não acredito que estou dizendo enfim isso, é a família de Viviane.

Não é uma surpresa pra mim ou até para meus pais, que sabem um pouco dessa parte do drama familiar de Filipe, mas sei que pelo clima que fica, todos sentem que é algo denso.

Desvencilhando-se dos filhos, Filipe esclarece mais:

— Este ano eu consegui, através de uma investigação com um detetive, informações sobre a família de Viviane. Eu fiz para dar uma chance ao Vinícius, de conhecer mais de sua história. Mas assim que as informações estavam nas minhas mãos, eu... quis desistir. Por medo. Medo de vir a encarar essas pessoas, sem ter o que dizer a elas. Eu quase encerrei a investigação perto do fim. E quase dei fim naqueles papéis. Não me orgulho disso. E ainda tenho muito medo do que podem fazer.

Vinícius o encara ao dizer:

— Eles não vão fazer nada, porque não vou deixar.

Iara complementa:

— Nem eu.

E mais um enlace de suporte se dá a minha frente, com Vinícius, Iara e seu Júlio comprimindo Filipe, que não deixa de se emocionar também. Eles mesmos tiveram uma longa jornada até aqui, finalmente juntos. Isso me ajuda a encher mais o peito e respirar um pouco melhor.

Uma respirada, ainda bem, porque se eu tivesse bebendo água quando meu avô começa a falar, eu teria cuspido tudo no sofá. Pelo menos água, não vinho.

Ele voltava para seu lugar quando solta sua pequena bomba inocente e culpada:

— Bom, depois de tantas histórias difíceis, a minha vai parecer a mais mesquinha e... boboca. A meninada da minha rua estava perturbando meu juízo e eu furei a bola de futebol deles.

Protesto eu e papai, o que corrobora pra quebra de tensão e torna ainda mais engraçado, ao que vovô só faz uma careta, enfezado.

— Acontece que sempre chutavam a bola na parede do meu quarto e isso foi me enervando por muito tempo. Mas não me senti bem depois de cortar o barato deles. Não imaginava que viraria um velho rabugento assim. Não sabia que era um velho rabugento até me ver como um.

Murilo, mais calmo, joga sua pergunta:

— O senhor comprou outra bola?

— Ainda não cheguei nesse nível de solidariedade, meu neto. Mas depois comprei alguns picolés para eles. Não para suborná-los, claro. Só não gostei mesmo da sensação de ser ranzinza ou ser mal encarado por eles. Como você disse, posso fazer escolhas melhores.

Assinto, querendo agradecer vovô pela quebra de clima, porque realmente tudo tem se saído bem inesperado e as emoções chegaram a me sufocar por um momento. Muitas dúvidas também. Mesmo que esteja carregando um punhado delas ainda.

E aí que percebo os olhares de todos dando a entender que queriam ouvir a minha história. Fico um pouco desconcertada, embora já não me sinta tão... trincada. Ou fechada.

Após relatos tão abertos e sinceros, percebo o quanto quero isso pra mim também. Por mais que haja barreiras em mim, impedimentos sofríveis de vergonha e medo, quero amainar meu espírito também. Precisei ouvir para poder falar. E noto que comigo meio que sempre foi assim... e que isso me ajuda bastante. É algo para se reconhecer.

— Acho que primeiro tenho que agradecer por cada um dividir coisas tão pessoais. Porque a primeira coisa que pensei ao ouvir a proposta de vovó foi “eu não consigo”. E “eu não posso”. Mas ouvir as suas dúvidas, receios e o não orgulho... Tudo isso me ajudou a perceber que também posso colocar o que guardo comigo para guardar com vocês. Ou melhor, liberar como vocês.

Tomo um fôlego e ajeito minha posição ao sofá, para que possam me ouvir melhor e eu manter a cabeça erguida, embora não consiga encarar ninguém.

— O que mais não me orgulho de ter feito esse ano... é de não ter sido justa comigo. Sobre muitas vezes me dar tão pouco crédito e ao mesmo tempo guardar tanto aqui dentro. Não me orgulho de... De não confiar em mim e nas pessoas. Não que possam fazer algo para me prejudicar, é só que... Sempre acho que ninguém vai suportar o que guardo. Então tentava amenizar e suportar eu mesma.

Sinto a mão de Murilo segurar a minha de um lado e, de outro, a de mamãe me dar suporte às costas. Continuo apenas a jorrar o que preciso jorrar:

— Não me orgulho da ânsia de esconder coisas que fui semeando ao longo de alguns anos, mesmo as graves. Não me orgulho de ter sido menos... verdadeira. De não conseguir demonstrar por completo quem eu era ou quem eu sou por estar vergonhosa demais de coisas que eu não precisava ter vergonha. De não conseguir ser completamente eu perante as pessoas. Principalmente as que mais amo no mundo.

Olho enviesado para minha mãe, que sempre é a pessoa que me pede para contar tudo e lhe cedia a versão light, bem editada, e então olho para a mão de Murilo, que permanece segurando a minha ao espaço entre nossos corpos.

— Tive problemas dos mais simples aos mais complicados com várias pessoas por conta disso. E nem tenho palavras sobre como colocava todos em terríveis situações. Eu... Apenas não me orgulho de nada disso.

Termino com uma boa respirada, uma de alívio e de conquista ao mesmo tempo, piscando absurdamente para não dizer que estava chorando de novo, e recebo um beijo de mamãe no rosto. Já imaginava que mais gente ia se mobilizar para me acolher quando, do nada, vovó surge de pé ao centro da nossa roda, toda acanhada:

— Acho que não me orgulho de fazer vocês todos chorarem nas primeiras horas do Natal.


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Notas finais do capítulo

APENAS OBRIGADA, VOVÓ MARÍLIA ♥ *aos prantos*

E não pensem que esse Natal acabou! Ele apenas começou!
Trechinhos do próximo:

"- Esse sim é o melhor presente que você poderia me dar.
— Também não é pra tanto, Murilo.
— Quem aqui não está se dando o crédito?"

e

"- Confiança, nós temos uma relação de confiança. Não é mesmo, Vinícius?"
(O CONTEXTO DESSA FRASE, VOCÊS NEM PODEM IMAGINAR HAHAHA)

e

"- De quem será que deve ser?
Ele quer mesmo saber? Porque eu não.
— Como o Sávio disse no começo, não sei se quero essa informação.
— Bom, de alguém deve ser. Não ia aparecer ali do nada.
[...]
— Pra mim, ou brotou do chão naquela hora ou algum dos duendes daqui do jardim colocou lá só para zoar com a gente."
(O CONTEXTO DESSA CENA, MEO DEOS, VEM PRA BREVE)

e

"- Não me sacaneia, I, que acabei de levar um susto.
— Um susto dos bons ou dos ruins?
— I! Não faz pergunta difícil."

APENAS AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA



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