Melífluo escrita por Alice Hase


Capítulo 3
Cherry II


Notas iniciais do capítulo

A continuação do conto de Cherry. Três meses depois.



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Cherry estava caminhando, devagar, de mãos dadas com seu noivo. Era domingo de manhã e, como quase todos os dias de fim de outono, estava frio. Ela, que passara a semana toda sob aquecedores e em frente a lareiras, estava sentindo frio mesmo com todos os casacos que vestia, certa que essa certamente não era sua estação favorita.

Observava as folhas no chão como um tapete ao seu dispor, e aquelas que caíam, uma chuva monocromática de vida. As folhas, talvez, não estivessem mais vivas, mas isso permitia à árvore a sobrevivência no inverno. Era, com certeza, uma boa causa.

Ela anotava tudo em sua mente, repetindo tudo aquilo que lhe soava bem, para ter certeza que as frases chegariam intactas em casa, quando ela passasse tudo para o papel. Ouvia, em um canto distante de sua mente, seu noivo, Jay, cantarolar baixinho e, de vez em quando, chamar sua atenção para um ou outro esquilo.

Chegaram à beira de um lago, onde estenderam o coberto que Jay trouxera. Sentaram-se. Era o lugar favorito de Cherry. Não era movimentado como as ruas do centro da cidade. Na verdade, chegava a ser o oposto daquilo. Também não era aconchegante, como sua casa. Mas era um lugar bonito, vivo, inspirador. Dela.

Era, pelo menos, o que Cherry repetia para si mesma, enquanto sentia tudo ao seu redor.

"Cherry? Está me ouvindo?"

"Sim...?"

"O que acha?" Jay apontou, ao longe, um edifício branco e azul, alto e imponente, destacando-se no céu claro e limpo.

"É lindo."

"É seu."

Ela o encarou, com os olhos arregalados absorvendo a informação.

"Não inteiro!" disse Jay, com um brilho nos olhos. "Só o 2201. Aquele com a cortina avermelhada na janela, vê? Não é a cobertura, mas está quase lá."

"Oh!" Cherry tinha os olhos marejados. Abraçou o noivo com força, e lhe deu um beijo estalado.

"Vai morar comigo?"

"Claro que sim, tolo."

"Quer ir ver?" Sussurrou hesitante.

Ela balançou a cabeça em afirmação, os cachos movimentando-se como se tivessem vida própria.

Movimentando-se vagarosamente, se deixou conduzir por um Jay animado. Era uma caminhada considerável, mas recusou-se a tomar um taxi. Era raro colocar os pés para fora de casa em fins de semana como aquele. O tempo era desfavorável, inconstante. A vida, a movimentação tão presente durante os meses quente, sumia aos poucos durante a intimidante estação.

Passaram pelo centro. Lojas hermeticamente fechadas, com pequenas gotículas de condensação indicando a brusca diferença entra a temperatura interna e externa. Restaurantes vazios, com imensos caldeirões fumegantes que exalavam fragrâncias apetitosas. Conveniências cujo único sinal de vida era compradores esporádicos de jornal. Um jornal em específico.

Aproximaram-se de uma loja pequena e abafada. A única com fila no caixa. Todos os compradores - um senhor idoso e dois jovens agasalhados - agarravam-se a um exemplar específico. About. Algo assim. Percebendo o olhar insistente da bela ruiva, um dos jovens manifestou-se.

"É semestral. Quando sai, temos que ser rápidos, antes que acabe."

Jay, que a seguira e entretia-se entre as revistas esportivas, revirou os olhos.

"Sempre acho alguns exemplares descartados no dia seguinte" Estava implícito em seu tom de voz: Ou a revista é muito boa que se lê cento e sessenta páginas em pouquíssimo tempo ou é tão ruim que a abandonam pela metade.

O senhor, que se preparava para sair, voltou-se para o casal recém-chegado. Seus olhos azuis fixaram-se nos de Cherry com tal intensidade que ela chegou a cogitar a ideia que os conhecia.

"É a única revista, senhor, que me dou ao trabalho de ler por completa. Cada centímetro quadrado. Várias vezes. Depois disso, posso me dar ao luxo de descartá-la." Cutucou a cabeça. "Já a tenho impressa aqui, muito antes do dia seguinte." E partiu, deixando-os sem palavras.

Jay e Cherry trocaram um olhar, e no segundo seguinte estavam na fila, com um exemplar em mãos. Ansiosos.

"Ele é a melhor publicidade que poderia ter" disse-lhes o caixa "Creio que todos os que o escutam pensem que é uma revista espetacular".

"Não é?" Perguntou a jovem, desanimada.

"Não disse que não. É cheio de frases poéticas e fotos bonitas. É para a alma, não para a cabeça".

Assentiu. Melhor assim. Trabalhando em seu primeiro romance, tudo o que lia era sério ou histórico, pois queria que cada detalhe fosse real. Precisava de um descanso.

Ainda trabalhava no restaurante, mas, finalmente, no último verão, convencera uma editora local de sua capacidade. Mandara um rascunho de uma história curta. Um jovem e uma moça que se encontraram por acaso, no centro da cidade. Não era perfeito, mas gostaram de sua escrita, ou persistência, e deram-lhe uma chance. Expandiria o conto em um romance.

O prazo estava quase no fim, ao contrario de sua ficção. Talvez uma mudança de tema fosse algo positivo. Talvez ler sobre a vida e sua beleza, ou qualquer que seja o assunto da tal revista desse-lhe um surto criativo.

Sem notar, já estava em frente ao imponente prédio branco e azul que Jay apontara de longe. Subiram de elevador até o vigésimo segundo andar. Sentiu as mãos de seu noivo sobre seus olhos e deixou-se ser puxada para dentro do apartamento.

Era perfumado. Um cheiro que reconheceu como mais que o perfume amadeirado de seu amado. Algo doce. Cerejas?

"Cerejas." Ele respondeu seu pensamento. Jay, dentre todas as pessoas, tinha plena consciência que, levando-se em conta todas as frutas conhecidas e desconhecidas, aquela era a única que se recusava a experimentar. Já lhe bastava o nome ser o mesmo que o seu, e a cor ser a mesma que de seus cabelos. Não gostava de pensar que morderia sua versão micro, mais doce e mais perfumada.

Abriu os olhos, e o encarou. Mas a expressão no rosto de Jay era de confusão. Em suas mãos, uma jarra pequena, repleto até a boca de cerejas. Um bilhete pendurava-se por uma fita fina e azul. "78. I."

Jay continuava olhando-a. Ela deu de ombros, como se retirasse qualquer acusação contra o noivo que tivesse passado em sua mente.

"Tudo bem" disse suave, enquanto folheava a revista "É de um conhecido".

34, 65, 77.

Ali, abrindo a página especificada na nota com um sorriso deslumbrante, estava uma mulher ruiva, corada e alegre. Sonhadora. Lia-se em seus olhos brilhantes a promessa de que tudo daria certo, logo.

Lentamente, chegou à compreensão que sua intuição gritava desde que vira o bilhete. A mulher era ela.

Sob a fotografia, palavras. Inwell Café, w/ Cherry. Futura escritora. Ela não desistiria.

A página seguinte trazia uma paisagem ensolarada e mais frases bonitas, mas Cherry não desviava o olhar daquelas poucas palavras que vira, poucos meses atrás, rabiscada em um caderno com uma letra desleixada.

Sem hesitar mais um instante, tomou emprestado um dos cadernos de Jay, onde, com sua caligrafia cuidadosa, preenchia página após página com palavras que sabia ser perfeitas. Já tinha em mente o rumo que seu romance tomaria.

"Seus destinos se cruzarão novamente." respondeu à pergunta muda de Jay, enquanto mordia um dos pequeninos frutos vermelhos.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenha gostado, SweetCherry. Continuei a seu pedido!



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