Melífluo escrita por Alice Hase


Capítulo 2
John




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"Siga em frente, no fim do corredor, vire à direita. À direita, fim do corredor. Siga em frente...".

John já sabia decorado o que devia dizer aos que desembarcavam, eram as mesmas frases há quase dois anos. Podia se permitir, de vez em quando, vagar os olhos pela multidão. Imaginar-se, por alguns segundos, parte daquela massa viva e pulsante que trazia, a cada passo, mais e mais histórias a serem ouvidas. Fantasiava, para cada face, uma história diferente. Visitava seus filhos que não via há anos. Retornava à terra natal, onde tudo começou. Um novo empreendimento. Um novo amor.

Fixou seu olhar nesse último rosto. Era, sem dúvida alguma, bela. Não uma beleza etérea e inalcançável, mas seus olhos verdes e cachos castanhos como chocolate pareciam refletir sua alma, derretida e dócil. Implorava para ser amada.

Balançara a cabeça para livrar-se de tal pensamento, escondendo-se cada vez mais em seu uniforme de informante, que, ironicamente, refletia com suas faixas neon. Concentre-se, John.

"Saída em frente. Vire a direita no fim do corredor." Voltou a repetir o mantra, para espantar a visão daquele par de olhos de sua mente. Fixou-se em outro canto do enorme salão.

Ótimo. Reencontro familiar. Aventuras em um país distante. Oportunidade única de trabalho.

Suspirou aliviado. Ás vezes, depois de muitos chutes inocentes, Viagem de negócios. Férias remuneradas, sua mente imaginava motivos imprudentes, motivados pela monotonia, ou por impulso de momento. Um novo amor, falta de amigos, tédio eram pensamentos preocupantes, pois ele se incluía nos planos daquele rosto sem nome. Era o que indicaria diversões, tornaria-se o bom amigo, o amante perfeito. Passaria as horas seguintes imaginando como realizar os objetivos fictícios. Qual seria o lugar perfeito para levar o entediado? Quanto tempo seria necessário para cativar o novo amigo? Que tipo de homem aquela mulher buscava? E então depois, já livre do uniforme que permitia seu devaneio em meio à multidão, buscava aquele que decidira ajudar. Em vão.

O entediado tinha negócios a tratar. O solitário partira em um ônibus de turismo lotado. A mulher carente tinha os braços dados com o esposo. Isso quando conseguia sequer descobrir o paradeiro do ser notado. Tinha até um nome para os que sumiam, eram os fantasmas reais. Aqueles que lhe permitiam um vislumbre de futuro fora da rotina, para sumir logo em seguida, com apenas tíquetes usados para comprovar sua passagem pelo aeroporto.

No início, aqueles devaneios não o incomodavam. Naquele momento, tudo o que mais queria era que fossem reais.

Cansara-se de fazer parte do aeroporto. Queria mais que aquilo. Queria ser livre, como os transeuntes que direcionava. Pelo menos por alguns segundos. Largaria seu uniforme detestável no chão, com suas roupas comuns permitindo-lhe fundir-se aos rostos sem nome, tornando-se mais um. Mais um com uma vida que poderia ser escrita.

Assim que se deu conta do tom revolucionário e conspirador que seus pensamentos tomaram, o jovem gelou. Ninguém pode ler meus pensamentos. Repetiu para si mesmo.

Quando sua irmã ligava, todo domingo, e contava a ela seus devaneios com os fantasmas reais, e da maneira como temia seus próprios pensamentos, a resposta que recebia era sempre a mesma. "John," ela dizia, a voz suave "Devia voltar para casa. Está ficando paranoico." E ele sempre recusava as duas afirmações. Não queria voltar, esperara a vida toda para sair de casa. Não estava paranoico. Não Estava?

Alguém cutucou seu ombro. Era, provavelmente, alguma criança perdida. Sabia que seu rosto jovem expressava simpatia, que seus olhos azuis eram calorosos, que seu porte mediano lhe garantia a confiança a ser transmitida a quem quer que esteja perdido. Virou-se.

"Eu... preciso de ajuda" Seus olhos verdes fixaram-se nos azuis.

"Siga em frente, depois vire à direita" John respondeu, por costume. Recompôs-se. "A saída?"

"Na verdade, preciso saber onde é o balcão de atendimento".

John olhava em volta. Céus! Não ha mais ninguém? Que horas são? Troca de turno? Não podia deixar seu posto, podia?

"Minhas malas se perderam. Esperei mais de duas horas, e acho que isso aconteceu apenas comigo. É muito azar. Sabe," Ela continua falando? "é a primeira vez que saio de minha cidade natal. Por que essas coisas sempre acontecem comigo?"

John se fazia a mesma pergunta.

Estranhamente, o aeroporto estava vazio. De funcionários e passageiros.

"Que horas são, por favor?"

A jovem parecia aliviada por ele dizer algo, não simplesmente a encarado como fazia enquanto o jorro de palavras saía de sua boca.

"Meia noite e meia. Acho que esse foi o último voo" Apontou para o quadro de horários, que piscava sobre suas cabeças, confirmando o que dizia.

Estava liberado, então.

"Siga-me, senhorita."

Andou em linha reta e, ao contrario do que vinha afirmando desde as quatro da tarde, virou à esquerda. Um pequeno quadro iluminado indicava o balcão de atendimento, vazio. John foi para trás da tela do computador, digitando a senha que lhe daria acesso às informações de voos e bagagens.

"Seu nome?"

"Catherine Marion. Voo 3345."

Digitou rapidamente. O nome piscava em vermelho. Mau sinal. Ao lado, um ponto de exclamação. Bagagem extraviada. Pegou um formulário e entregou à jovem, que torcia os cabelos entre os dedos, nervosa. Ela o preencheu e devolveu.

"A boa notícia é que, assim que eu cadastrar esse formulário, sua bagagem entrará no próximo avião para cá." John tentou sorrir.

"A má é que esse voo só chega amanhã" Catherine completou a linha de pensamento.

"Basicamente"

"Ótimo" tinha os indicadores nas têmporas. "E se, por acaso, todos os meus documentos estivessem naquelas malas?"

"Não trazia mala de mão?"

"Sim. Mas passou do peso e teve que ser despachada."

"Oh." John já ouvira que eram muito rigorosos com o peso, mas não sabia que simplesmente as despachavam. Ou não despachavam como era o caso. "Era conexão?"

"Não, não. Cheguei a meu destino. Só que sem roupas, sem dinheiro e sem local para dormir."

"Quando é conexão, a agência deve ter um hotel para os passageiros. Acho que você poderia se hospedar e depois mandar a conta para a agencia, mas..."

"Não tenho como pagar, de qualquer modo" Suspirou. "Acha que posso ficar aqui?"

John franziu o cenho.

"Espere um segundo."

Foi para a sala de funcionário e trocou seu uniforme. Colocou sua mochila nos ombros e o capacete em suas mãos. Dirigiu-se ao balcão de atendimento, onde Catherine se acomodara desconfortavelmente.

"Catherine? Tem um quarto vago na pensão em que moro. Acho que, se explicar sua historia para Jade, a dona, ela te cede por essa noite."

Seu sorriso era deslumbrante. Sussurrou agradecimentos, enquanto o seguia para o estacionamento. Segurou o capacete que ele lhe estendeu e o vestiu.

Ele subiu na moto, que, em seu melhor momento deve ter sido de um vermelho vivo, mas que agora, desbotada, lembrava um tom salmão, e ajudou Catherine a subir também.

Durante todo o percurso, mantiveram-se em silencio.

Ao chegar à pensão, John batera de leve em uma porta azul, fora do caminho principal. Uma senhora de cabelos grisalhos presos em bobes abriu-a. Seu rosto sonolento abriu um sorriso.

"Boa noite, John."

"Jade, a senhora ainda tem o quarto seis vago?"

"Oh, sim, sim, certamente. Essa jovem dama deseja alugá-lo? A uma da manha?"

Catherine manifestou-se, explicitando sua situação. Jade ouvia parcialmente atenta, pois a jovem sentia necessidade de explorar cada detalhe de sua viagem. John seguia o modelo da senhora de meia idade, mas um ponto do monólogo lhe chamou a atenção.

"Meus pais disseram que era loucura. Que se eu realmente desejasse, o encontraria na minha cidade. Mas morei lá minha vida toda, e não achei que era verdade. Talvez esse seja um sinal do destino, para que eu volte para casa e espere, mas...".

"Tudo bem, tudo bem. Pode ficar com o quarto, jovem" E, com um último olhar acusatório para John, virou-se e fechou a porta atrás de si.

Catherine suspirou.

"Ufa. Já estava sem ideias do que dizer."

Sorriu para John, estendendo-lhe a mão. Ele a aceitou e chacoalhou em um cumprimento amigável.

"Obrigada, John" Ela disse, saboreando o nome que ouvira Jade chamá-lo. O plano de continuar mantendo-a fantasma real esvaiu-se. Mas ele não se sentiu mal. Sem soltar sua mão, conduziu-a para dentro da pensão, parando apenas em frente à porta marcada com o número seis.

Sugou o ar, buscando coragem. É só uma pergunta.

"O que seus pais acham que você encontraria em sua cidade?"

"O mesmo que eu vim buscar aqui." Ela olhava para as mãos entrelaçadas. "Um novo amor."

Depois, rapidamente, beijou-o na bochecha. Seus lábios desencostaram-se do rosto ao mesmo tempo em que as mãos desenlaçaram-se.

"Boa noite" sussurrou, fechando a porta entre os dois.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenha gostado!



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