Entre Segredos e Bonecas escrita por Lize Parili


Capítulo 77
Quando um sonho acaba - parte 2/2


Notas iniciais do capítulo

Será que depois deste desabafo Sol vai conseguir lidar melhor com a situação?



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#14/03#

De volta a sua escrivaninha, Sol ignorou sua fadruxa jogada no chão, cujos botões violeta dos olhos foram trocados por vermelhos, o mesmo vermelho do nanquim que tingiu os cabelos. Seu conjuntinho de corpete e shortinho acetinado preto feito com retalhos de um vestido velho, enfeitado por botões em forma de morceguinhos, só estavam à mostra porque no chão a capa preta de fundo roxo não o escondia, assim como sua meia arrastão feita com restos de uma meia velha. O chapéu preto de aba larga e pontiaguda, cujo rasgo lateral foi pintado a parecer uma boca, jazia caído ao lado dela, assim como uma das sapatilhas pretas, presa apenas pela fita amarrada no tornozelo. Apesar das roupas novas, aquela que um dia foi uma linda fada já tinha 11 anos e sua aparência surrada só foi acentuada pelas mudanças.

Com a cabeça apoiada sobre o diário, pensativa e balançando o cajado da sua fadruxa, cujo interior escondia sua caneta roxa escrita fina com aroma de uva, Sol criava coragem para retomar seu desabafo. Ela precisava falar, contar, mas não queria mais chorar, então respirou fundo, passou as mãos no cabelo puxando-o para trás, olhou para seu diário e aceitou, novamente, seu ombro.

 

"Então, voltei... Meus olhos ainda estão ardendo, mas já consigo escrever de novo... Eu senti tanta raiva que eu precisei chorar e dar as costas ao que me feria, ou eu ia acabar gritando tão alto que provavelmente o zelador derrubaria a porta do apartamento achando que algo ruim aconteceu comigo. De certa forma aconteceu, mas nada que ele possa me ajudar...

 

É uma droga. Eu ainda sinto muita raiva quando me lembro daquele dia, mas também, pudera, minha mãe não me poupou. Vomitou as suas frustrações dos últimos 14 anos da sua vida sobre mim, esquecendo que estes 14 anos estavam ligados diretamente a mim.

 

Doeu tanto saber que ia ser deixada para trás, que eu gritei com eles, disse tudo que eu estava sentindo e até o que eu guardei por muito tempo. É como dizem, quando você guarda suas mágoas por muito tempo, quando elas escapam, sai tudo de uma vez, atropelando tudo e todos. Eu disse que eles não me amavam, que nunca me amaram, que eu não significava nada para eles, que eu era um estorvo, por isso iam se livrar de mim. Mas a gota d'água para minha mãe foi me ouvir dizer que meu pai, não meu padrasto, meu pai de verdade, que ele sim me amava e que era culpa dela ele ter ido embora. Ele, provavelmente, não aguentou o estilo de vida dela, baladeira, gastadeira e sem amor pra dar.

 

Pense numa mulher com raiva. Pois bem, era a minha mãe depois disso. Ela se transformou. Pela primeira vez eu a vi chorar pra valer. Nem quando ela brigava com meu padrasto ela chorava daquele jeito. Meu padrasto até saiu de perto, disse que aquela era uma conversa de mãe e filha e saiu de casa. Acho que ele também não gostou do que eu disse, acho até que ele se chateou bastante, porque fez uma cara de ofendido, mas preferiu fugir de mim, deixando pra minha mãe resolver. E ela me atropelou. Ela gritou comigo, disse que eu não sabia de nada, que meu pai era um canalha e que trocou nós duas por outra mulher, com quem ele já tinha uma filha.

 

Eu não sabia que ele tinha outra família. Eu não quis acreditar, chamei ela de mentirosa, e claro, eu já estava chorando muito. Mas ela foi categórica quando disse que ele nunca me amou e que a culpa dele ter me abandonado era da outra filha dele, que ele amava mais que a mim. Eu só gritava que era mentira, mandava ela calar a boca, mas não adiantou, ela estava possessa. Ela me pegou pelo braço e me levou para o quarto dela, me jogando sobre a cama. Eu realmente achei que ela ia me dar uma surra, coisa que ela nunca fez, no máximo uns tapas e castigo.

 

No maleiro do guarda roupa havia uma caixa velha de madeira, dessas que a gente guarda esmaltes e coisas do tipo. Minha mãe a pegou e abriu, despejando tudo que havia dentro dela sobre a cama. Eu nunca imaginei que ela guardava lembranças do meu pai. Mas na verdade não eram só lembranças, pois além das fotos de nós juntos, tinha fotos dele com a outra família.

 

Minha mãe pegou algumas fotos e bateu na minha cara com elas, dizendo que foi por causa "delas" que ele havia me abandonado, uma mulher rica e disposta a viver do jeito que ele gostava, aventureiramente, viajando e conhecendo o mundo. Minha mãe e eu éramos um atraso na vida dele, uma corrente que o prendia. Aquilo para mim foi um golpe fatal. Toda a imagem que eu havia construído do meu pai tinha desmoronado. As lembranças que eu tinha dele brincando comigo se apagaram diante da imagem dele no jardim com outra menina.

 

Naquelas fotos ele estava feliz ao lado de uma negra alta, magra, muito bonita e bem vestida e junto com eles havia uma garota de uns 9 ou 10 anos, mestiça, mais clara que a mãe, bonita e vestida como uma princesinha. Em todas as fotos ele estava com a garota e pareciam se divertir muito. Era nítido o quanto ele adorava aquela menina. Eles eram uma família, uma família feliz. E eu tive ciúme, inveja, raiva daquela menina. Ela havia roubado o amor do meu pai. Por uns instantes eu achei que conhecia aquela mulher, mas minha mãe disse que ela nunca se aproximou de nós, mas ainda hoje, apesar de não lembrar da cara dela, eu tenho a sensação de já tê-la visto. Talvez, num dia qualquer, ela tenha vindo atrás do papai e eu a vi.

 

Já sem forças para brigar com a minha mãe, que também não tinha mais forças para brigar comigo, eu perguntei o porquê dela nunca ter me contado e ela me disse que guardou segredo de mim, porque falar sobre o assunto a fazia sofrer. Meu pai foi o homem que ela mais amou na vida e perdê-lo foi muito doloroso.

 

Mas se ela o amava tanto, por que desistiu? Por que não lutou por ele? Eu não conseguia entender. Então ela me contou que fez de tudo para ficar com ele, mas era muito nova, imatura, e fez a burrada de achar que uma gravidez o prenderia, por ela ter apenas 17 anos e ele 27. Foi ai que descobri que na verdade, ele era casado com esta outra mulher e que já tinha uma filha com ela. Minha mãe era a intrusa. Num dado momento, ele viveu uma crise com a esposa e conheceu minha mãe, tendo um caso com ela. Ela só conseguiu mantê-lo por 4 anos porque engravidou de mim; mas a esposa rica o pressionou com a filha e ele, que era louco pela garota, decidiu deixar a minha mãe quando eu tinha 3 anos.

 

Naquele momento eu soube o porquê meu sobrenome é Solles. Meu pai não me registrou quando eu nasci porque ele havia sumido, e depois, não me deu seu sobrenome porque suas queridas e amadas esposa e filha não podiam saber da minha existência. A mamãe achou que quando eu nascesse ele ia se comover, mas não foi o que aconteceu. Ele mal acompanhou a gravidez dela e sumiu antes de eu nascer. Meu padrasto era ex-namorado da minha mãe e ainda a amava, então, achando que ela havia sido abandonada pelo meu pai, me registrou como filha, para que eu não ficasse sem um sobrenome, sem um pai, e para não levar mais desgosto a minha avó, que não se conformava da minha mãe ter "estragado" a vida dela engravidando antes mesmo de terminar os Ensino Médio e de um estranho. Minha avó nunca conheceu meu pai. Meu padrasto me assumiu perante minha avó, que gostava muito dele e dizia que eu era filha dele e não do homem que engravidou minha mãe.

 

Eu perguntei a minha mãe qual o sobrenome do meu pai, novamente, pois eu sempre perguntei isso a ela, mas como sempre sua resposta foi a mesma. Eu não tinha o porquê saber o sobrenome do homem que me abandonou. Minha tia também nunca me contou. Ela diz que não sabe, que ninguém sabe, nem o meu padrasto, pois minha mãe nunca contou. Eu insisti, mas foi em vão. Se quando ele estava conosco ele não quis ser apresentado para a nossa família, fazer parte dela, querendo "proteger a família dele", não tinha o porque ela expor a nossa a família dele. Eles não queriam saber da gente.

 

Numa das fotos aquele menina enbonecadinha estava com uma boneca de pano, dada por ele provavelmente, diferente da minha. A dela eu não sei dizer o que era, mas não era uma fada. É bobo, eu sei, mas eu tive ciúme daquela boneca. Não sei por que, mas aos meus olhos ela parecia mais bonita que a minha; e agora olhando para a minha eu vejo que realmente, ela era mais bonita, não pela aparência, mas porque meu pai estava brincando com ela e aquela garota, como ele nunca brincou comigo e com a minha boneca. Foi por isso que mudei minha. Ela era uma fada linda, minha fada dos sonhos, sonhos que eu perdi naquele dia maldito; agora ela é uma bruxa, a bruxa que amaldiçoa aquela que roubou meu pai de mim.

 

Eu sei que é errado, pecado até, mas eu odeio tanto aquela família naquela foto tão perfeita. Até as flores do jardim que eles estavam eram mais coloridas. Eu nem sei onde fica aquele jardim. Eu odeio tanto meu pai e aquela filha que ele ama mais que a mim... foi por causa dela que ele me abandonou, que ele me esqueceu.

 

Por 3 anos meu pai esteve comigo e com minha mãe. Eu não me lembro dele indo embora, mas me lembro de ficar esperando ele aparecer para me ver e isso nunca mais acontecer. E minha mãe, acho que por ainda estar magoada com o que falei para ela na sala, da forma mais cruel, sim cruel, porque ela viu o quanto eu já estava arrasada, destruída, sem forças para continuar chorando, e mesmo assim revelou que meu pai foi embora me deixando doente. Eu tive apendicite e tive que ser operada as pressas e ele estava conosco. Sua esposinha querida ligou para ele, lembrando-o que ele tinha uma filha e que ela estava sentindo falta dele, que não foi para casa no dia marcado, como sempre fazia. Meu pai fez sua escolha naquele dia, ele me deixou e voltou para sua casa, para sua filha; e nunca mais voltou.

 

Cada palavra que minha mãe disse me deixou com mais raiva do meu pai, e principalmente, daquela pirralha. Ela fez meu pai me deixar.

 

Depois que ele foi embora, minha mãe foi atrás dele; ela o queria de volta. Então resolveu contar a verdade para sua esposa; mas a dita cuja já sabia e não se importou, enxotando minha mãe do escritório dela. Só o que ela conseguiu foi uma boa quantia em dinheiro a ser depositada para mim, para que minha mãe os deixasse em paz. Foi neste dia que minha mãe tirou aquelas fotos, ela queria um motivo para esquecer que ele existia.

 

Como a quantia oferecida era alta minha mãe aceitou, isso garantiria meu futuro. Depois que voltou para casa ela se casou com o tio Pablo, para esquecer meu pai e ter sua própria família, além de não querer ficar sozinha com uma filha.

 

Eu não acreditei no que ouvi. Como assim, aceitou dinheiro para ficar longe deles? Ela tinha me afastado do meu pai por dinheiro? Era aquilo mesmo? Eu odiei minha mãe, gritei com ela de novo e eu estava com tanta raiva de tudo e todos que não medi minhas palavras. Chamei-a de egoísta, interesseira, golpista, pois foi isso que pensei na hora, que eu fui um golpe que deu errado. Pela primeira vez minha mãe me bateu. Eu ainda sinto meu rosto arder quanto o toco, quando lembro, como agora... Eu deitei na cama dela, encolhida, e ela me encheu de tapas. Eu nunca tinha visto ela daquele jeito. Ela gritava comigo, me chamava de ingrata, egoísta, dizia que eu não entendia nada, que não sabia como era amar com todas as suas forças um homem que pertencia à outra mulher, nem como era ser mãe aos 17 anos e ser abandonada, tampouco o que era ter que abrir mão deste amor porque nada que fosse feito por ela faria ele a amar e voltar.

 

Eu chorava muito, não tirei os braços da cabeça, protegendo-a dos tapas, que nem eram tão fortes, porque ela chorava tanto que nem forças para me bater tinha, mas aquela situação, de apanhar e daquela forma, eu nunca vou esquecer, até porque ali, sem perceber, minha mãe revelou o porque não consegue conviver comigo, e talvez até o porque ela me ame tão pouco. Ela disse, aos berros e prantos que não tinha um dia sequer, desde o dia em que ele foi embora, que ela não olhava para mim sem lembrar dele e de que ele nunca a amou como ela o amou. Eu a fazia se sentir frustrada e não amada. Irônico, porque ela também me faz sentir o mesmo, duplamente.

 

Ela se cansou de me bater e sentou na cama tentando engolir o choro. Eu me levantei e sentei do lado dela, tentando fazer o mesmo. Mas eu não conseguia esquecer o lance do dinheiro. Eu lhe perguntei como ela pôde fazer aquilo comigo. Ela me disse que pensou em entrar na justiça, fazer valer meus direitos, mas ela o amava, então não conseguiu, ela nunca o prejudicaria, por outro lado, ela estava magoada, ferida e ele não me amava, não me queria na vida dele. Então porque me forçar a uma vida de desprezo? Mas ela ainda estava sozinha e com uma filha de 3 anos para criar, então não se fez de rogada e aceitou o dinheiro. A quantia era suficiente para garantir meu sustento até terminar meus estudos.

 

Não sei o que minha mãe pensou, mas ela fez questão de frizar que meu pai não tinha posses em nome dele. Tudo pertencia a esposa dele, ela sim era uma mulher rica, então só quem tinha direito a qualquer bem, era a outra filha dele. Eu odiei ouvir aquilo, me doeu. Eu não quero nada daquela família, a única coisa que eu queria, não me quis, então nada que venha deles me interessa, nem meu pai.

 

Não vou negar, eu perguntei o nome da esposa e da outra filha dele, só o primeiro nome, mas minha mãe não quis me revelar. Disse que não tinha o porquê eu saber, já que eles não queriam saber de mim. Ela me contou até que foi ameaçada pela esposa dele de ser processada caso se aproximasse dela e da filha dela. O que elas estão pensando. Que eu quero alguma coisa delas, eu não quero nada. O dinheiro delas não me interessa. Eu queria o meu pai, e elas o roubaram de mim, então que se explodam, os três. Se aquela mulher me ignora, foutre[1], se meu pai me ignora, foutre, se aquela garota me ignora, foutre dobrado, apesar de que eu acho que ela nem deva saber da minha existência. Espero que ela já tenha muito desgosto ao meu pai.

 

Eu levantei da cama e sai daquele quarto, desejando nunca mais entrar dentro dele. Assim que fechei a porta atrás de mim ouvi minha mãe gritar e alguma coisa quebrar. Eu me tranquei no meu quarto e chorei muito.

 

Hoje eu entendo um pouco mais o tio Pablo. Deve ser difícil para ele viver à sombra de outro homem. Ele ama demais a minha mãe e saber que ela amou meu pai mais que ama a ele deve doer. Eu me pergunto o quanto nós podemos amar alguém. Pois minha mãe ama o meu padrasto, eu sei disso. Mas se ela amou meu pai muito mais quer dizer que podemos amar as pessoas com intensidades diferentes. Isso é muito confuso para mim. Saber que eu posso gostar muito de um garoto hoje e achar que ele é o grande amor da minha vida, e amanhã gostar de outro muito mais ou muito menos...

 

Será que com filhos também é assim? Será que nossos pais podem amar cada filho com intensidade diferente?...

 

Que dúvida idiota. Meu pai me abandonou por amar mais a outra filha, ou melhor, só amar a outra, porque se ele me amasse, mesmo que só um pouquinho, ele não teria me abandonado. Para ela todo o seu amor, seu carinho e sua atenção. Já, para mim, apenas um contra-cheque, pois nem mesmo seu sobrenome ele quis me dar.

 

E pensar que foi o dinheiro dele que pagou meus estudos até pouco tempo e evitou que nós passássemos dificuldades nos últimos anos.

 

E pelo visto, o dinheiro acabou, pois minha mãe não está mandando dinheiro para mim e nem acredito que esteja ajudando minha tia, pois se tivesse ela teria me falado. E sendo minha mãe super consumista e baladeira ele tinha mesmo que acabar antes de eu me formar. E é bem capaz dela ter usado esse dinheiro naquele investimento maluco que ela fez e depois ficou chorando pelo prejuízo, revoltada, por se tratar do golpe da pirâmide. E foi depois disso que as coisas começaram a desandar financeiramente. Ela só vivia reclamando das dívidas acumulando e o tio Pablo cada vez mais estressado, chegando a ficar sisudo, por viver fazendo hora extra no frigorífico.

 

Pelo menos uma coisa eu vejo de bom nessa mudança. O tio Pablo parece mais feliz. Ele está fazendo o que gosta e até arruma um tempinho pra me ligar, diferente da minha mãe. Ele parece mais próximo de mim agora do que quando vivíamos juntos. Já minha mãe, está igual.

 

Eu sei que minha mãe sofreu muito, mas isso não dá a ela o direito de fazer os outros sofrerem. Ele sempre pensa só nela.

 

Eu não disse, diário. Aquele foi o pior dia da minha vida. Descobri que minha mãe engravidou de propósito, para segurar meu pai, que eu sou a marca da frustração e desamor dela, que meu pai não me ama e por isso me abandonou sem olhar para trás, me trocando por outra filha. E como se não bastasse, descubri que minha mãe aceitou dinheiro para me manter longe dele e sua família perfeita.

 

Não interessa que minha mãe era a outra e aquela a sua família verdadeira, eu também sou filha dele e não tinha nada a ver com o problema dele e suas duas mulheres. Ele tinha que ter me amado, igual ama aquela menina com cara de boneca de porcelana de dois séculos atrás.

 

Eu poderia estar com meu futuro garantido agora, e olha só, não tenho dinheiro nem para comprar um vestido novo na C&A. Mas o que me dá mais raiva é que enquanto eu estou aqui, chorando, escrevendo num caderno de capa de couro que minha tia me deu, aquela pirralha mimada deve estar se formando na faculdade, sendo o orgulho da vida dele ou então, deve estar viajando pelo mundo, acompanhando-o em suas aventuras; aventuras que eu vivi com ele, apenas na minha imaginação. Eu não me lembro de muita coisa, porque eu era pequena demais, mas me lembro de um dia em que nós fomos caçar tesouros pelo mundo. Eu sei que foi apenas uma brincadeira, nossa imaginação, mas na minha mente é uma lembrança que se repete desde aquela época, enquanto durmo, nos meus sonhos, uma lembrança de uma aventura regada a tesouros guardados, mistérios, viagens de barco e trem. Se não fossem estes sonhos talvez eu nem me lembrasse mais desta brincadeira. E eu os odeio mais ainda por isso. Enquanto eu sonho, sem querer sonhar, com uma aventura infantil, na certa eles viveram e ainda a vivem de verdade.

 

Mas não parou por ai. Eu, como uma perfeita idiota, naquela madrugada, sem conseguir dormir, fui à cozinha beber água e ao encontrar minha mãe, que fechou a cara para mim, cometi o erro de insistir no assunto. Eu devia ter entendido que ela não queria mais falar sobre aquilo, que ela estava tão destruída quanto eu. Mas eu queria saber, eu precisava saber se ela, pelo menos ela me amava.

 

Na hora em que ela me deu sua resposta eu fiquei feliz, mas esta felicidade durou pouco, pois ela não encerrou sua fala no "sim, eu amo você.". Eu preferia que ela tivesse me ignorado, como sempre fazia quando estava brava comigo, mas ela continuou falando e foi como levar um tiro no peito, a queima roupa. Eu nunca quis ouvir aquilo. Ela não precisava tentar explicar o porquê não conseguia ser uma boa mãe. Ao invés de amenizar minha dor e me ajudar a entendê-la, só me magoou mais saber que ela nunca quis ser mãe, que não tinha vocação para a maternidade e que isso atrapalhou a vida dela e roubou sua juventude. Ela foi insensível e nada maternal. Mas é como ela mesma admitiu. Ela não tinha vocação para ser mãe. Mas devia saber que nem toda verdade precisa ser dita. Dói demais saber que apesar da minha mãe me amar, ela nunca me quis de verdade.

 

Naquela noite eu chorei muito, trancada no meu quarto e também tive meu rompante de raiva e saí destruindo tudo que via pela frente. Eu queria bater nos meus pais, mas como não podia, desarrumei minha cama, joguei minha boneca pela janela, quebrei no laptop, rasguei todas as fotos que eu tinha do meu pai, rasguei meus livros do colégio, quebrei meus cds, dvds, ouvi música deprê no volume máximo do meu fone de ouvido, até me dar dor de cabeça e depois disso tudo liguei para o Ken. Isso mesmo, para o Kenzito. Só ele me entende, só ele me ouve de verdade. As garotas iriam me deixar mais para baixo, chorariam comigo, mas o Ken não, ele sempre levantava o meu astral e foi isso que ele fez, mesmo morrendo de sono, pois já passava das 2 da manhã. Ele me lembrou que eu ia morar com a irmã da minha mãe, minha tia querida e que ela me amava muito e que eu ia começar uma nova fase na minha vida, uma fase de felicidade, regada de muito amor.

 

Por um instante eu sorri. Meu coração ainda doía por saber que eu fui rejeitada pelo meu pai, e pela minha mãe, mas eu consegui me acalmar e dormir, e o Ken só desligou o telefone quando percebeu que eu estava dormindo.

 

No dia seguinte, de manhã, assim que eu acordei e vi uns pedacinhos das fotos rasgadas no chão me bateu uma dor no peito. Eu corri até a lixeira, querendo pegar o saquinho com os pedaços das minhas fotos e que eu havia jogado fora, mas o caminhão da coleta já havia levado. Eu chorei dobrado, de arrependimento. Por sorte eu joguei minha boneca pela janela e ela ficou solitária sobre a grama. Se eu não tivesse feito isso era bem capaz de eu tê-la rasgado e a jogado no lixo, junto com as fotos. Eu ainda não estou pronta para me desfazer dela e há momentos em que eu me pergunto se realmente quero, algum dia, me desfazer dela.  

 

O tio Pablo estava dormindo no sofá, ainda com a roupa que estava quando saiu de casa, fugindo do problema. Eu olhei para ele sentindo uma mistura de raiva, porque ele sabia que meu pai havia me negado o sobrenome dele e me trocado por outra família e nunca me contou, mágoa, porque ele nunca foi um padrasto muito próximo de mim, por mais que me tratasse bem, e pena, porque no fim, ele também não tinha o amor da mamãe como gostaria. Eu fui para o meu quarto e fiquei remoendo tudo aquilo, o dia todo.

 

Não fui à escola naquele dia. Eu estava confusa, eu amava e odiava meu pai, ao mesmo tempo, como agora, eu o amo e sinto a falta dele, mas o odeio, porque ele não sente a minha.

 

Por sorte os pedacinhos de foto que tinha no tapete eram da mesma foto e consegui remendar com fita adesiva. Eu tinha 2 anos e nós estávamos na ponte Saint Benezet Bridge, um ponto turístico da minha cidade, Avignon. Ficou faltando um pedaço da foto, mas pelo menos o rosto dele ficou inteiro. Se bem que eu mal pego naquele foto. Ainda estou confusa. Quando a pego sinto vontade de jogá-la fora, de tanta raiva que sinto dele, mas quando penso que se o fizer não terei mais nada que me ajude a lembrar do rosto dele, bate um desespero... Então evito pegá-la, deixando-a bem guardada.

 

O resto do mês, até o dia da minha mudança, meus amigos me ajudaram a empacotar minhas coisas. Nós tiramos muitas fotos, todos os dias, no colégio, na rua, no parque, no shopping, no meu quarto em meio às caixas. Nós queríamos muitas lembranças, mais do que já tínhamos. Aqueles eram nossos últimos momentos juntos.

 

Eu sinto muita falta deles, principalmente em momentos como estes, de agora. No meu último dia em Avignon eu fui à ponte Saint Benezet Bridge com o Ken, mas eu caminhei mais sozinha que ao lado dele, que entendeu que eu precisa de espaço. Ele tirou algumas fotos e mesmo eu estando de costas, sinto que é possível ver minha melancolia.

 

Eu queria conseguir desabafar com minha tia como fazia com eles e agora com você, diário, mas ainda não consigo. Às vezes eu acho que na verdade eu tenho medo de sofrer mais do que já sofro, calada. Eu não quero saber mais nada do meu pai ou da família dele, nem das escolhas da minha mãe. Tudo isso só me trouxe sofrimento e só eu sei o quanto ainda dói. Mas ao mesmo tempo, eu quero tanto saber. Só um sobrenome, só isso. Mas só minha mãe sabe e ela nunca vai me contar...

 ...

Sol não tinha mais nada para dizer ao seu diário. Ela estava cansada e se sentindo exatamente como naquele dia, mas com uma diferença, ela não teve vontade de quebrar nada, só estava com dor de cabeça de tanto chorar. Seu coração estava um pouquinho menos pesado que naquele dia, porque apesar das lembrança, ela desabafou, colocou para fora, vomitou tudo o que estava sentindo, transferindo aquela angustia do seu coração para seu diário, que trancou e guardou na gaveta. Mas ao fechar o diário e ver o gatinho que Nath lhe deu clipado nas primeiras folhas, sentiu seu coração doer. Ela lembrou das palavras da mãe e a entendeu um pouquinho. Ela estava descobrindo como era amar um garoto que pertencia a outra, e pior, a sua amiga.

Ela não queria mais chorar, então dormiu, abraçada a sua bruxinha, até ouvir seu celular tocar. Era 18h00 e Castiel ligou para avisar que não ia a casa dela naquele dia. Ele estava com dor de cabeça. Ela nem questionou, pois ela também não estava com espírito para cozinhar, tampouco para as grosserias dele.

Ela levantou e foi fazer suas atividades. Sua tia chegou poucos minutos depois e a ajudou. Elas preferiram não tecer comentários sobre a aparência triste e preocupada de ambas.

 

 

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Notas finais do capítulo

[1] Foutre: Foda-se (ofensa)

Crianças que convivem em meio a amiguinhos com famílias completas, pai e mãe, tendem a idealizar em suas mentes um pai perfeito quando não convivem com ele. É uma forma que encontram de não se sentirem ignorados e de se sentirem amados, um mecanismo de defesa, pois não querem ser diferentes. Alguns inventam histórias para os amigos, dizendo que o pai trabalha em outro pais ou estado.



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