Ernesto Prestes Investiga escrita por Goldfield


Capítulo 2
O Caso do Vaso Chinês




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O Caso do Vaso Chinês

I

Era Natal de 1919.

Lembro-me que, no dia 23 de dezembro, recebi de um amigo um convite informal para a ceia na residência da ilustre senhora Antônia Bueno, viúva de grande prestígio na alta roda paulistana.

Eu, que, apesar de não apreciar de todo esse tipo de reunião, com pessoas de cérebro oco falando de coisas fúteis, aceitei de imediato, pois pelo menos seria melhor do que passar a véspera natalina com Shakespeare e Diderot. Às vezes as palavras dos sábios podem muito bem ser substituídas por algumas risadas e goles de vinho. Mente e corpo precisam disso, ainda mais quando se vive uma realidade solitária.

Assim, na noite do dia marcado, vesti um casaco novo e saí rumo à casa de Dona Antônia, disposto a desligar o cérebro para me entreter um pouco.

Eu nem suspeitava que naquela véspera de Natal eu presenciaria, e solucionaria, um caso tão misterioso e pitoresco...

Ou melhor, foi um caso que se auto-solucionou.

II

Cheguei à residência da senhora Bueno por volta das dez da noite. O local estava bem iluminado e já do lado de fora era possível ouvir as vozes animadas e os risos nada contidos dos convidados. Senti-me como um alemão idealista entrando dentro da Conferência de Paz de Paris, e tive o breve impulso de querer me atirar escondido dentro de alguma trincheira. Acabei vencendo-o.

Sorrindo disfarçadamente, subi os poucos degraus na frente da casa e bati à porta. Fui recebido por um senhor de idade avançada, boca sem dentes e cabeça sem cabelos, que me disse com uma voz rouca, quase tumular – a ponto de eu ficar esperando moscas ou vermes saírem por seus lábios:

– Boa noite, senhor...

– Prestes, Ernesto Prestes – respondi prontamente, impaciente só de ouvir aquele idoso falar. – Eu fui convidado para a ceia de Natal e...

– Oh, entre.

Entrei sem demora, procurando livrar-me daquele que supostamente era o empregado mais velho da casa, cuja vagareza era, a meus olhos, maior que a de mil tartarugas juntas. No vestíbulo, deixei meu chapéu num suporte e rumei para a sala de estar, onde todos se encontravam.

Antes de descrever a sala de estar em si, prefiro primeiramente identificar cada um dos indivíduos ali presentes, todos conhecidos meus da alta sociedade de São Paulo: Onofre Bevilacqua, sujeito gordo e desajeitado que, promissor (talvez nem tanto) poeta, recentemente aderira ao Parnasianismo; Tadeu Melo, delegado de barba rala e careca lisa, além de uma peculiar mania de desconfiar de tudo e todos; Júlia Cunha, conhecida atriz de teatro de beleza singular e modos encantadores, que recentemente encontrava-se envolvida numa montagem de “Otelo”, de Shakespeare; Basílio Nogueira, proprietário de vários armazéns pela cidade e muquirana incomparável; e finalmente a senhora Antônia Bueno, rechonchuda e bem arrumada, que sorria para todos na sala mesmo sem possuir motivo algum para tal – e com fama de conseguir comer uma quantidade de alimento que valia por todos ali.

Agora vamos ao cômodo: tinha belos sofás e poltronas trazidos da Europa, com bonitas e macias almofadas de Istambul. Perto da porta que levava à sala de jantar havia um caro relógio de pêndulo que fornecia as horas com um “tic-tac” vicioso. No teto estava pendurado ostentoso lustre dourado e, para concluir, sobre uma mesinha próxima à janela que dava para a rua, encontrava-se grande e inegavelmente exótico vaso chinês, decorado com gravuras de dragões e outros motivos orientais. Diziam as más bocas que Dona Antônia adquirira tal peça recentemente por um valor exorbitante, e que desde então passara a ser o mais novo mimo da viúva, acima até do gato persa Xerxes, no colo da mulher naquele momento.

– Senhor Prestes! – exclamou o senhor Basílio ao ver-me. – Faço muito gosto em vê-lo aqui!

– O correto seria referir-se a ele como Inspetor Prestes – corrigiu o delegado Melo num sorriso discreto. – Um dos melhores investigadores desta cidade, sem sombra de dúvida.

– Fico lisonjeado com seus elogios, delegado – retribuí educadamente. – E mais ainda por ter sido convidado pela senhora Bueno para a ceia.

– Ora, sua presença é uma honra, inspetor – riu Dona Antônia. – Os relatos sobre os casos que solucionou são incríveis. Melhores até que os contos do próprio Conan Doyle!

– Minha cara senhora, não blasfeme...

Todos riram, e logo depois o velho que me atendera à porta voltou, mais morto do que vivo, anunciando como se estivesse num velório, de tanto ânimo:

– A ceia está servida.

– Excelente, Junqueira – respondeu a senhora Bueno, chamando o criado pelo nome. – Venham comigo, a comida deve estar um verdadeiro manjar dos deuses!

Se era manjar, poderia ser de quem, além dos deuses? Tentando ignorar o uso raso de mitologia por aqueles sanguessugas apenas para se enaltecerem, acompanhamos a gorducha viúva até a sala de jantar, deixando para trás a sala de estar e, com ela, o belo vaso chinês...

III

A mesa de jantar era espetáculo culinário difícil de descrever. Ao vê-la repleta dos mais variados, coloridos e saborosos pratos e quitutes, deduzi que o cozinheiro de Dona Antônia era um verdadeiro Michelangelo das artes gastronômicas. Havia ali um peru (o qual, obviamente, não poderia faltar em nenhuma ceia natalina) suculento e gordo, cujas coxas por si mesmas já seriam suficientes para fazer o Natal de um mendigo inesquecível. Isso sem mencionar as tortas doces e salgadas, fios de ovos, a salada que parecia mais um jardim botânico em miniatura, entre outros valiosos bens comestíveis.

– Mas que ceia farta! – exclamou Nogueira, maravilhado com aquela visão capaz de levar à loucura qualquer glutão.

– Sentem-se todos, antes que esfrie – sorriu a anfitriã. – Espero que gostem desses pratos que foram preparados tão humildemente por meu mestre-cuca argentino.

– Argentino? – riu Tadeu, lembrando-se da velha rivalidade entre o Brasil e a nação do Prata. – Não estarão envenenados?

Todos gargalharam, menos eu; acomodando-se ao redor da mesa. Fiquei confuso com a incrível quantidade de talheres à disposição: garfos, colheres e facas de todos os tipos e tamanhos, além de alguns instrumentos de ferro importados da Europa cuja função eu desconhecia totalmente. A eterna futilidade paulistana... Enfim, se era moda do outro lado do Atlântico, não podia faltar!

Comemos com gosto, debatendo-nos sobre o alimento como feras... Mas feras relativamente civilizadas, a fome não conseguindo vencer totalmente os modos afetados e a educação preciosa dos presentes. Durante a ceia, cheguei a trocar alguns olhares intensos com a senhorita Cunha. De início me perguntei se ela não estaria de alguma forma interessada em mim, coisa que me fez sentir realizado e esperançoso, ainda mais por ser uma dama tão formosa. No entanto, entre uma e outra fatia do peru, prestando maior atenção e considerando também o fato de que uma mulher muito dificilmente é atraída pela minha pessoa, concluí que ela me fitava por algum outro motivo, uma causa oculta que talvez fosse esclarecida logo mais...

A comida foi acabando e, com as panças cheias, os convidados e a anfitriã retomaram o falatório. Dona Antônia especulava Júlia a respeito de sua nova peça teatral, e se o título tinha algo a ver com Otelo Rodrigues Rosa, o político riograndense. Nogueira, politiqueiro de esquina, falava com Melo a respeito das conseqüências do Tratado de Versalhes como se entendesse muito sobre o assunto. Onofre, por sua vez, há pouco tirara uma tira de papel de uma das mangas do terno e, com uma pequena caneta, escrevia algo nela bastante concentrado. Quis saber do que se tratava, apesar de ter uma forte suspeita, entretanto resolvi aguardar para descobrir depois.

E, cercado por pessoas alegres e conversadoras, senti-me um completo estranho no ninho, alguém que simplesmente estava ali sem na verdade estar. Era como se apenas meu corpo se encontrasse sentado à mesa e minha alma, ignorada pelas outras próximas, decolasse como um aeroplano e se perdesse em meio a lembranças de bons livros, lindas damas e agradáveis passeios. Desejei rever amigos que há muito não encontrava, como o bravo João Matogrosso, o pessoal do SPI e o carismático Marechal Rondon. Havia passado inesquecíveis momentos junto de tão leais companheiros.

Retornei à noite de Natal na residência da senhora Bueno quando a voz tão gordurosa quanto os dedos lambuzados de peru de Bevilacqua fez-se ouvir:

– Terminei!

De fato, o balofo não mais escrevia o que quer que fosse no papelzinho. Guardando a caneta num bolso, ele ostentou o pequeno texto como se fosse um troféu dourado e, sorrindo para os presentes, revelou sem timidez:

– Acabo de redigir um soneto cujo tema é o maravilhoso vaso chinês adquirido pela senhora Bueno.

Todos, exceto eu, pelo que lembro, soltaram um gracioso “Oh!” de admiração. Não me surpreendi. Os parnasianistas adoravam escrever poemas sobre coisas luxuosas, caras e inúteis. Mais um maldito modismo vindo da Europa. Se ao menos um mínimo de bom-senso fosse incluído na encomenda proveniente do Velho Mundo...

O caso é que, instantes depois de ter ouvido o poeta, Dona Antônia ergueu-se da cadeira com o ar de alguém sendo arrebatado às nuvens pelos próprios anjos e, esbanjando alegria, falou suavemente:

– Sinto-me a mais lisonjeada das mulheres por ser presenteada com tamanha honra, ainda mais originária de um dos maiores poetas brasileiros vivos!

Como o leitor já deve ter percebido, a dona da casa adorava um exagero. Continuou:

– Será que o senhor Bevilacqua me daria ainda maior motivo de orgulho recitando os versos para nós na sala de estar?

Apesar da sobremesa ainda não ter sido servida, a proposta não era tão ruim. Um pouco de poesia declamada era excelente para auxiliar a digestão, mesmo se fosse de qualidade questionável. Com a cabeça pesando após uma farta ceia, os olhos oscilando e o sono batendo à porta, qualquer polca poderia soar como uma epopéia de Homero a ouvidos moribundos.

Cheio de si, Onofre respondeu:

– Certamente, serei o homem mais realizado do mundo fazendo-o.

Foi assim que, segundos depois, todos se levantaram da mesa, caminhando devagar de volta à sala de estar, para que o exótico soneto fosse recitado. Não sei dizer se mais alguém compartilhava do entusiasmo do autor e da proprietária do artefato que o inspirara. Naquele momento em particular todos estavam um tanto neutros, frios, indiferentes. Pareciam prever de algum modo o que viria a seguir.

IV

E eis que, retornando ao até então agradável e tranqüilo lugar de convívio, nos deparamos, depois de uma aparente impressão de nada ter mudado ali, com a aterradora diferença: o adornado suporte de madeira sobre o qual antes se encontrava o valioso vaso chinês de Dona Antônia nada mais possuía.

– Meu Deus! – ela berrou. – Onde está meu vaso? Onde está ele?

A estupefação foi geral. Tadeu e Basílio passaram a vasculhar a sala em busca do artefato, nem se fossem seus cacos. Todavia, era de certo improvável que ele houvesse caído do suporte e se espatifado no chão, já que o barulho da porcelana se desmanchando com certeza teria sido ouvido da sala de jantar. Os dois concluíram a perícia logo depois, constatando que realmente a peça evaporara como fumaça.

– Que tragédia! – lamentou-se Bevilacqua, mãos enfiadas nos bolsos. – Terá sido roubado?

Confesso que eu estava bastante confuso quanto ao que teria ocorrido. Será que seria tão fácil para alguém entrar despercebido na residência, apanhar um objeto pesado como o vaso e sair pelas ruas carregando-o? Tinha minhas sérias dúvidas. Havendo um culpado, ainda estava na casa.

– Seria prudente registrar um boletim de ocorrência de imediato – recomendou o delegado.

– Talvez não devêssemos ser tão precipitados... – observei, mão no queixo.

– O ladrão pode estar fugindo neste momento! – preocupou-se Nogueira. – Devemos tomar alguma providência urgente!

– Oh, meu São Judas...

Era característica conhecida da senhora Bueno sua enorme devoção pelo santo, o qual ela invocou conforme caía sentada num sofá quase sem ar. Coube à prestativa Júlia apanhar um leque colorido que até então estava sobre uma mesinha e abaná-lo para melhorar a situação da pobre aristocrata. Eu, por minha vez, acomodei-me numa poltrona para poder pensar melhor, com mais calma. Afobamento não levaria ninguém a lugar algum.

– Vou chamar meus homens! – exclamou o delegado, já se dirigindo até a porta de saída.

Aguardei até que os passos dele se distanciassem um pouco para falar, sem mudar minha expressão facial, tampouco olhar na direção dele:

– Não temos pista alguma de quem pode ter surrupiado o vaso, e até que alguma apareça, não permitirei que ninguém deixe o interior desta casa – além do mais, minha experiência com certo delegado de nome “Teixeira” me fazia desconfiar de toda e qualquer pessoa a ocupar tal cargo policial. – Tenho fortes suspeitas de que o responsável pelo sumiço da peça não saiu daqui de dentro, talvez até esteja entre nós.

Senti os olhares de todos me fuzilando. Porém permaneci irredutível, apoiando meus braços no móvel enquanto as idéias fluíam em minha mente como o Tietê num forte dia chuvoso.

V

– Poderíamos dar início aos interrogatórios – salientei.

A indignação no rosto de Tadeu era bem visível, suas bochechas ardendo num vermelho bastante hostil. Conhecendo sua pessoa, sabia que ele desconfiava de todos naquela sala, até de mim, mas acusar sua própria pessoa pelo sumiço do vaso chinês era o mesmo que gritar por Barrabás ao invés de Cristo. Inquieto, ele andou em círculos pelo recinto por um momento antes de se exaltar nas palavras:

– Quem pensa que é para me acusar? Mas que afronta!

– Quanto mais relutar em ser interrogado, mais suspeito se tornará, prezado delegado – não poupei a franqueza. – Queira se sentar, por favor.

Muito contrariado, Melo jogou-se numa poltrona com desleixo, realizando movimentos indignados e impacientes com as mãos, que transitavam entre seus joelhos e os braços do móvel. Todos os olhos do local encontravam-se fixos em mim, e pude notar uma variedade de sentimentos expressos por seus donos, desde medo, passando por uma sutil desconfiança, até a incerteza característica de quando suspeitamos de alguém que aparentemente possui um álibi perfeito. E, até que fosse provado o contrário, todos ali o tinham.

–Alguém se oferece para ser o primeiro? – questionei.

Para surpresa minha e dos demais presentes, foi a bela atriz Júlia Cunha quem se ergueu de seu assento, entregando o leque para Dona Antônia e andando graciosa até mim, seus sedosos cabelos loiros tornados ainda mais brilhantes pela luz do lustre no teto. Fitando-a sem esconder meu encanto, disse amigavelmente:

– Pois bem. Que comecemos.

VI

Era necessário que eu interrogasse a atriz discretamente, longe dos olhos e ouvidos dos demais suspeitos, que poderiam acabar tirando algum benefício das palavras da jovem. Ainda me via um tanto confuso: ao mesmo tempo em que acreditava que o vaso não havia sido retirado do interior da residência, cogitava que talvez aquele acontecimento estivesse sendo por demais alardeado.

Quando dei por mim, Júlia estava de pé diante de mim na sala de estudos anexa à sala de estar, como se aguardasse alguma ordem ou até uma acusação.

– Queira sentar-se, senhorita – falei indicando uma cadeira.

Ela acomodou-se no móvel um tanto insegura e trêmula. Será que havia algum motivo grave para estar assim, ou era apenas o nervosismo da situação que contagiara a todos? Posicionei-me numa outra cadeira de frente para a moça, nós dois separados por dois ou três metros de distância. Estalei os dedos antes de fazer a primeira pergunta:

– Senhorita Cunha, notou algo de estranho nesta casa desde que chegou para a ceia?

A atriz demonstrou certa intimidação. Seria apenas performance? Em caso positivo, então até aquele momento ela vinha fingindo muito bem.

– Não que eu me lembre – respondeu.

– E até onde sei, nenhum dos convidados, nem a anfitriã, deixou a sala de jantar durante a ceia, correto?

– Espere... Creio que o senhor Nogueira levantou-se num dado momento para ir ao toalete, não?

Eis um fato novo. Eu realmente não me lembrava de ter visto Basílio ausentando-se da mesa durante a refeição. Teria isso acontecido durante um lapso de distração da minha parte? Bem, era possível: havia passado alguns bons minutos divagando durante a ceia, e quando me tranco em minhas reflexões, é mesmo difícil que eu perceba algum tipo de movimentação ou conversa à minha volta, ainda mais não sendo brusca.

– Ao toalete, hem? – pensei em voz alta, fitando o vazio.

– Sim, por quê? O senhor suspeita de algo?

Sorri sem perceber. Dava-me por satisfeito. Apesar de saber que Júlia era uma atriz e que tudo aquilo poderia não passar de uma cuidadosa encenação, de algum modo a jovem deixava claro que era uma pessoa inocente e ingênua pega de surpresa pelos estranhos eventos daquela noite. Uma verdadeira Desdemona de “Otelo” correndo o risco de ser punida injustamente por algo que não fizera. Ela não poderia me ajudar mais do que já ajudara.

– Está tudo bem, senhorita, pode voltar para a sala de estar. E por favor, pode chamar o delegado Melo para mim?

Júlia assentiu rapidamente com a cabeça enquanto se erguia da cadeira, prosseguindo até a porta da sala de estudos e cruzando-a sem causar ruído. Tive um breve pensamento leviano, imaginando a atriz com trajes mínimos interpretando uma Cleópatra fogosa e sensual, porém logo me repreendi por tal anseio. A investigação tinha de continuar.

VII

Tadeu Melo adentrou a sala de estudos de modo desconfiado, fitando as estantes de livros e demais móveis como se todos conspirassem contra si. De cara amarrada e punhos cerrados, acomodou-se na cadeira diante de mim, seus movimentos demonstrando grande inquietude.

– Algo errado, delegado?

– Eu preferi me afastar dos outros para poder falar isto com você, inspetor... – ele confidenciou num tom de voz sigiloso. – Nos meus vários anos de luta contra os meliantes desta cidade, desenvolvi um senso de suspeita, modéstia à parte, talvez mais acurado que o seu. E acredito já saber quem roubou o vaso chinês.

Não pude conter um discreto sorriso. Já esperava que o delegado fosse acusar alguém, só não sabia qual pessoa. Foi falando ainda mais baixo e tampando a boca com uma das mãos no sentido da porta, como temendo que alguém entrasse de súbito no recinto e ouvisse a conversa, que ele me revelou:

– Foi o Bevilacqua.

– O senhor Bevilacqua? Tem certeza?

– Absoluta.

Dei um suspiro e esfreguei de leve as mãos, como se aquela incômoda situação se assemelhasse a uma corrente de ar frio que eu desejava afastar. Não via nada em Onofre que o apontasse como responsável pelo sumiço da peça; aliás, ele talvez fosse a pessoa menos suspeita ali. Honrando sua fama, Melo desconfiava do indivíduo que menos gerava desconfiança aos demais.

– O que o levou a tirar essa conclusão? – indaguei.

– O gordo é um poeta, meu caro. Um poeta! Conhece tipo mais excêntrico e suspeito? Lembre-se de que foram poetas os conspiradores de Vila Rica!

– Delegado Melo, eu acredito que...

– Foi ele, inspetor Prestes, tenho certeza. Deveríamos inclusive emitir um mandado de prisão. Não foi por conta dele que retornamos à sala de estar e descobrimos o desaparecimento do vaso? Foi um ardil! Um ardil para que ficasse acima de qualquer suspeita, já que um criminoso dificilmente facilitaria a descoberta de seu delito!

Palavras de insulto subiram até minha garganta, porém minha polidez impediu-as de continuarem até a boca. Era necessária muita paciência para lidar com sujeitos como Tadeu, sem dúvida alguma! Ouvira uma vez o boato de que ele prendera um comerciante chinês no mercado da cidade devido ao estrangeiro falar em sua língua nativa e para Melo isso ser motivo suficiente para acreditar que ele conspirava algum crime. Na época não dei crédito ao relato, mas agora percebia que era totalmente verídico.

– Sua suspeita realmente possui certo fundamento, delegado – menti da forma mais simpática possível. – Porém desejo interrogar os outros antes de tirar uma conclusão definitiva. E fique tranqüilo: caso seja mesmo Bevilacqua o culpado, ele arcará com as conseqüências ditadas pela lei.

– Obrigado por me ouvir, inspetor. Deseja perguntar-me algo?

– Não, estou satisfeito. Pode voltar à sala de estar e, por favor, chame o senhor Nogueira em seguida.

– Está bem. E não se preocupe, ficarei de olho no poeta!

Ignorei a última frase e acenei para Melo enquanto ele se ausentava, ficando aliviado pelo fato de ao menos ele não ter acusado a mim.

VIII

Basílio Nogueira ganhou a sala de estudos deixando transparecer que comera demais durante a ceia. Moveu-se pesadamente até a cadeira em minha frente, assemelhando-se a um paquiderme desajeitado, mesmro essa descrição sendo mais digna de Bevilacqua.

– Satisfeito, senhor Nogueira? – perguntei amistoso.

– E como! – ele riu, ajeitando-se no assento. – Não provava pratos tão saborosos há tempos!

Desde a noite passada, talvez? Era um bom homem, isso era inquestionável. Sua honestidade em seus negócios o precedia – e como retorno ganhara, ao longo dos anos, um bom dinheiro. Muito difícil acreditar ter roubado o vaso devido ao seu valor. Não havia ninguém em toda São Paulo que já houvesse reclamado de algum abuso ou trapaça realizados por Basílio nas vendas de seu armazém. Mais um convidado acima de suspeitas. Todavia, algo ainda me intrigava:

– O senhor deixou a sala de jantar durante a ceia para ir ao toalete, certo?

– Sim – ele replicou um tanto encabulado. – Minha bexiga já estava um tanto cheia quando cheguei à casa, e o vinho contribuiu para agravar meu estado...

– Ora, não há nada de errado nisso, é algo natural... Gostaria apenas de saber se viu ou ouviu algo suspeito nos cômodos e corredores no caminho de ida e volta até lá.

– Não, senhor inspetor... Não que eu me lembre.

Mais uma pessoa que era inútil continuar a especular. Não sabia de mais nada, tampouco era o culpado; isto é, se existisse mesmo um culpado, coisa da qual eu começava a duvidar, e mais tarde entenderão o porquê...

– E os negócios, como vão? – perguntei, desviando o assunto, na tentativa de talvez encontrar um motivo financeiro para o crime.

– Vão bem, vão bem... Espero que continuem melhorando. Aliás, faz tempo que não aparece no armazém para comprar tabaco, inspetor!

– Estou tentando abandonar o fumo já há algum tempo, desde a expedição à Amazônia...

– A pedido de alguma mulher? – cogitou o comerciante erguendo uma das sobrancelhas.

–Antes fosse, meu caro – sorri, cruzando as pernas na cadeira. – Está dispensado. Pode chamar Dona Antônia para mim?

– Mas é claro!

Basílio deixou a sala ainda com a barriga pesando, porém parecendo mais leve espiritualmente, leia-se aliviado, do que quando entrara. Desejava agora falar com a anfitriã, dona da casa e do vaso. Talvez suas palavras reforçassem, ou não, minhas novas suspeitas...

IX

Dona Antônia. A “dona”.

Ela ganhou o recinto com ar de aflição e latente inconformismo. Era visível em seu rosto com princípio de rugas o lamento pelo desaparecimento do vaso chinês. Sentou-se na cadeira com ar de desagrado não por mim, mas pela situação.

– Que véspera de Natal esta... – murmurou.

– Ao menos assim deixamos um pouco a rotina – disse eu num leve tom de brincadeira e, pela primeira vez aquela noite, senti falta de um pouco de fumo.

– Rogo a Deus para que consiga solucionar esse mistério e traga meu vaso de volta, inspetor Prestes!

– Logo tudo estará resolvido, senhora Bueno. Confie em mim. No momento, desejo apenas que me esclareça uma certa dúvida.

– Pois diga.

Suspirei e prossegui:

– Por que meios adquiriu o vaso? E por quanto?

Vi a expressão facial da aristocrata se alterar por completo. Por sorte, demonstrava mais espanto do que raiva ou indignação. Naquele momento temi que a senhora se zangasse e acabasse por me enxotar de sua residência, ficando assim o crime sem solução e o vaso em eventuais mãos erradas. Convenhamos: minha pergunta não fora muito cortês ou propícia.

Ela olhou ao redor, mexeu os sapatos pelo tapete no chão por um instante e então me respondeu, olhos fixos nos meus:

– Um vendedor de antiguidades, por um terço do valor usual. Ele não pôde me garantir, entretanto, que a peça seja mesmo original...

Era no mínimo irônico: o objeto desaparecido que causava tanta comoção nem legítimo deveria ser. Aliás, eu não duvidava mesmo que se tratasse de uma cópia barata do mais sublime artesanato chinês. Para os leigos, não haveria diferença alguma entre aquela falsificação e uma peça legítima, e como todos que freqüentavam aquela casa eram leigos... Dona Antônia causava a impressão que desejava e pagara bem pouco por isso.

Tal informação deixava tudo mais pitoresco. O crime me parecia mais e mais insólito. Será que quem sumira com o vaso não percebera que se tratava de uma imitação? Ou então o meliante roubara a peça simplesmente pelo ato de roubá-la, sofrendo da chamada “cleptomania”, um distúrbio que leva suas vítimas a se apropriarem do que não lhes pertence simplesmente por um impulso que não conseguem controlar, nesse caso não importando o valor do bem surrupiado. O estudo da mente humana realmente revelava nuances aterradoras, e essa era uma possibilidade a não ser desconsiderada.

Santo Freud...

– Não vá pensar mal de mim, inspetor, pois... – oscilou a viúva Bueno em posição defensiva.

– Ora, assim a senhora me ofende! – ri, inegavelmente me divertindo com tudo aquilo. – Acho que começo a formular uma conclusão, mesmo que contrária a todos os ânimos... Chame o senhor Bevilacqua, ele será o último a ser questionado.

– Como quiser...

Notei uma ponta de alívio na anfitriã enquanto ela se retirava, e fiquei feliz por perceber que confiava em mim. Não é fácil viver de deduções e julgamentos, e nem sempre é possível agir do modo mais correto. Naquele caso, porém, isso seria plenamente realizável, ao que tudo indicava.

X

Bevilacqua era o mais pesaroso entre todos aqueles na casa, e para mim isso ficou claro assim que ele penetrou na sala de estudos: tinha um ar de total tristeza e frustração, seus olhos úmidos aparentando ter como único alento a mais breve possível reaparição do vaso.

– Que tragédia, que tragédia! – ele murmurava, quase se debatendo de tanta angústia.

– Acalme-se, Onofre – disse eu sorrindo, tentando tranqüilizá-lo. – Toda essa aflição se deve ao roubo? Não se aflija: acredite, o vaso muito em breve reaparecerá.

– Estou assustado, meu caro, desamparado... Para onde caminha a humanidade se não se respeita mais nem a santidade de nossos lares?

– Acredite, já houve tempos piores... – preferi ser sutil, pois uma aula de História não convinha ao momento. – E este caso nem me parece tão grave assim...

– Como não, inspetor? É um fato tremendamente torpe, hediondo! E o meu poema, tão inspiradamente redigido, de ode passou a epitáfio! Será que esta vil situação ainda terá um final feliz?

Sim, teria. Feliz até demais: eu diria tragicômico, amargamente cheio de escárnio. Já me preparava para o desfecho daquele caso, o qual era capaz de imaginar com provável exatidão, e agora me concentrava apenas a respeito de como reagiria. Riria, zombaria, sairia correndo pelas ruas de São Paulo narrando o peculiar evento ao primeiro boêmio que encontrasse? Refletindo sobre, dispensei Bevilacqua com um gesto e acompanhei-o de volta à sala de estar.

Chegara a hora da verdade.

XI

Todos estavam calados, apreensivos, os pensamentos de temor e desconfiança quase visíveis e tocáveis. Distribuídos pelos móveis ao redor da sala, os presentes aguardavam um parecer meu, seus olhares em minha direção denunciavam isso. O clima pesado contrastava imensamente com a noite de Natal. Já era quase meia-noite, e os brindes e canções nas casas vizinhas eram audíveis. Eu, assim como os outros, desejava terminar logo com tudo aquilo para pelo menos poder passar uma madrugada tranqüila.

Enquanto escutava um coro de crianças entoando um angelical “Noite Feliz” no palacete ao lado, cheguei à curiosa conclusão de que eu não formulara parecer algum. Ao menos um parecer específico, com qualquer nome, evidência decisiva ou álibi desmentido. Nenhuma das pessoas que ali estavam, tampouco suas atitudes, gerava suspeitas relativas ao desaparecimento da peça de porcelana. A meu ver, todos ali eram inocentes e haviam sido igualmente pegos de surpresa pela incômoda conjuntura. Nada apontava para o roubo: nenhum motivo, ambição, circunstância. Era como se o vaso houvesse criado pernas por si só e saído para dar uma volta no Vale do Anhangabaú.

Eu estava prestes a comunicar tal pensamento, quando uma outra porta que conduzia à sala se abriu.

O medonho rangido da madeira preparou terreno para o novo recém-chegado: o mesmo mordomo de horas antes, com suas feições enrugadas e movimentos lentos mais do que nunca dignos das múmias egípcias que o arqueólogo Howard Carter vinha encontrando em suas escavações. E seu ar de velharia combinava com o que também trazia nas mãos, para espanto de todos: o mesmo vaso chinês supostamente furtado, estando intacto e visivelmente mais brilhante e detalhado do que outrora.

– Junqueira! – devido ao tom de voz, dessa vez realmente pensei que Dona Antônia enfartaria. – O que... O que significa isso?

– Madame... – ele respondeu em seu tom cadavérico. – Acreditei que seria melhor limpar o vaso, tirar dele o pó... Para que ficasse mais apresentável aos convidados e vistoso para as festividades. Estava mais sujo do que pensei, no entanto, e tive de usar um pano molhado. Por isso o retirei do pedestal.

Tive que me conter muito para não gargalhar. Fazer isso não seria educado, mesmo o desfecho do episódio sendo tão favorável a uma reação assim. Os rostos se transmutavam entre imagens de surpresa, alívio e enfado. Uma investigação conduzida inutilmente, a constatação prematura de um delito que na verdade jamais ocorrera. O maldito mordomo, até então esquecido, tirara o vaso do lugar para limpá-lo, e todos, inclusive eu, rapidamente já haviam interpretado o fato como um crime. Maldita futilidade, que levara todos a tão grande idiotice! Na sociedade paulistana, até a comoção, a dúvida, toda sorte de sentimentos, eram fúteis. Puramente fúteis.

Em meio a algumas risadas e clamores indignados, esparramei-me num sofá. Bevilacqua, todo sorridente, já apanhava de novo seu papelzinho para recitar o famigerado poema. Cabia a mim sacrificar-me ao menos alguns minutos para ouvir, e tentar talvez aproveitar o resto da noite. Afinal era Natal e, depois de solucionado todo o imbróglio, podia ser que Júlia Cunha realmente me fitara durante a ceia com algum tipo de interesse...

Luiz Fabrício de Oliveira Mendes – “Goldfield”.


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