Gris escrita por Petit Ange


Capítulo 17
Epílogo: Dearly Beloved I




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GRIS
Petit Ange 

 

Então, leve-me para um verdadeiro Outro Lugar.
~ Clover (Oruha).

 

 

Epílogo: Dearly Beloved I. [61]

 

O apartamento já estava devidamente vazio, e Zexion precisava admitir que sentia-se muito melhor deste jeito. Não sentiria saudades daquele lugar.

O calendário ainda estava na parede, porém. Por descuido ou descaso. Imperdoável (lembrar-se-ia de jogá-lo devidamente fora tão logo saísse dali). Ele arriscou, então, mesmo assim, uma olhada rápida, antes de voltar sua atenção para o inventário (sim, porque mudanças sempre exigiriam uma minuciosa análise de bens. Não entendia como alguém era capaz de olhar torto para sua excelente capacidade de organização!).

Hoje faria um mês desde aqueles dias loucos que, por um momento, ele achou serem apenas um sonho doce-amargo.

Suspirou. Definitivamente, não sentiria saudades daquela casa.

 

~x~x~x~

 

Zexion não se lembrava perfeitamente do dia em que conhecera Demyx.

Foi uma coisa que sua mente descartou, classificando-a de “irrelevante”, e preencheu de outros assuntos que valessem a pena...

 

~x~x~x~

 

- Hoje é um Domingo, mãe... – ele lembrou-a. – Você não devia estar em casa.

O mesmo vale para você, então.

Revirando os olhos (mesmo que um princípio de sorriso teimasse em aparecer), Zexion retomou as rédeas da situação:

- Eu ainda estou me estabelecendo na nova casa.

Depois de dois meses?” – Ayumu pareceu rir. – “Estranho, vindo de você.

De fato, ele ponderou mentalmente, enquanto pensava em uma resposta digna e que não lhe comprometesse para aquele comentário (não que fosse difícil – apenas haviam comentários pertinentes demais no momento).

Felicidade. Mudar-se daquele apartamento foi apenas felicidade.

Os primeiros dias, então, foram os melhores. Mais de setenta e duas horas de pura produtividade, organização e sem nenhum incômodo por parte dos vizinhos (pois, afinal, eles eram a pior parte de um prédio).

Arrumar os móveis, alinhando-os perfeitamente onde deviam ficar, encher o closet com a quantidade absurda de camisas e calças monocromáticas, instalar e ajeitar a linha de internet – rápida como um raio –, encher a geladeira (de coisas que definitivamente não chamariam a atenção de amantes de... Comida), arrumar todos seus livros e seus DVDs em seus devidos lugares – em ordem alfabética de autor no caso dos livros, de tamanho e, mais uma vez, num perfeito alinhamento.

Foram as melhores horas de sua vida. Afinal, estava tudo perfeito! As cortinas escuras deixavam apenas a quantidade certa de luz passar, as camisas estavam todas organizadas por cor, livros por ordem, até sua geladeira seguia um minucioso padrão. Nem o pensamento de uma só partícula de poeira estava presente naqueles cômodos, sua escrivaninha estava absolutamente ajeitada, todos os papéis, o computador, as canetas, livros, tudo arrumadíssimo. O termostato estava em eternos 23ºC.

Perfeito. O mundo estava tão lindo quanto devia ser.

Mas, após todos os inventários, as organizações, as listas, o planejamento, após aquele frenesi... Veio-lhe aquela sensação incômoda outra vez.

Mesmo assim, sua vida estava confortável.

Em retrocesso, Zexion não se lembrava muito bem do impulso que o levou a se mudar. Apenas sentiu vontade; como se aquelas antigas paredes o estivessem saturando por demais. Novos ares, quem sabe...

...A verdade é que ele bem sabia o quê foi a gota d’água, mas fazia o máximo de atalhos e desvios mentais possíveis para não pensar nisso.

Seu belo (insira-se a boa e velha ironia aqui. Os dias nunca eram “belos”, apenas existiam) domingo ser inutilmente estragado por luto indefinido não era algo que estivesse, exatamente, em seus planos.

Só vou sair mais tarde. Hoje tenho companhia.” – a voz feminina avisou-lhe.

- Hã?! – quase sentiu-se engasgar. – Eu não...

Há mais dois meses, ele recebera a notícia: Ayumu, sua mãe, também estava doente. No caso, porém, era uma doença séria, assustadora e...

Bom, não é todo o dia que sua mãe avisa, inspirada, que irá “voltar a viver”.

E começa a “ter companhias”, dizendo que “perdeu tempo demais de sua vida lamentando o inevitável”. Tudo bem, isso o deixava feliz por um lado, mas... Meu Deus, nestes momentos ele bem que adorava o fato de Ienzo estar morto. Imaginava a cara do menino tendo de viver lá e ver tal transformação ao vivo.

(E, com um rosto contrariado, ele bem que imaginava o motivo daquela súbita inspiração dela).

É meu novo poder. Sei ler pensamentos.

- Mãe... – ele resmungou, voltando a prestar atenção à conversa.

Espere, estou lendo uma coisa agora!” – a voz da outra elevou-se, impedindo-o de falar. E, em seguida, séria: – “Um certo alguém deveria sair bem mais que eu.

O rapaz suspirou longamente.

- Não preciso de uma namorada. Estou bem, sério. – já perdera a conta de quantas vezes dissera isso, na verdade.

Ela deu uma risadinha.

- ...Eu sei no que está pensando. De novo. – ele resmungou de novo. – Também não preciso disso.

O quê? Imagine se eu fosse dizer namorado...” – ironizou.

Zexion revirou os olhos. Aparentemente, esperar normalidade de sua família (ou o que restou dela) era um pouco demais.

Quando ela contou-lhe, há algumas semanas, que já sabia há mais tempo do pseudo-relacionamento (afinal, em retrocesso uma vez mais, eles não tiveram lá muito envolvimento de verdade. Não nos padrões normais de convivência) de seu filho com o “outro mundo”, o filho em questão achou que fosse morrer. De ódio, vergonha, susto, desgosto ou o que quer que fosse.

Incrivelmente, sobrevivera. Com graves seqüelas e a sensação de que o mundo nunca mais foi o mesmo, mas sobrevivera...

- Mãe, por favor... – ok, mais um pouco e ele se sentiria corar. Droga.

Tudo bem, tudo bem.” – ela parou. – “Mas estou falando sério. Ao menos, se não vai fazer nada a respeito, devia...

- Não há nada a ser feito. – interrompeu-a. – Acabou. Está tudo bem agora.

Por que esta sua teimosia não me é surpresa, Zexion...?

Certo, ele perdeu.

Sentiu-se sorrir, enfim.

- Preciso desligar, mãe. Muita coisa em que trabalhar hoje. – sorte que, ao menos, isso ela não veria.

Lembre-se de não abusar do café.

- ...Não posso prometer isso.

Ela suspirou.

Até logo.

- Sim. Até logo.

Encarou, então, o telefone, tão logo colocou-o outra vez no gancho. Uma parte de Zexion – parte esta que se surpreendeu com seu próprio pensamento – afinal percebeu que fora muito bom ter parado naquilo que foi sua casa por muitos anos antes de voltar para a capital.

Ele lembrava-se. Assustou-se por ter visto Ayumu em casa. Naquela hora, ela devia estar trabalhando. E, na verdade, nem foi exatamente isso que o assustou mais. Foi ver o local onde sua mãe estava: no quarto do filho falecido. Sentada na cama que nunca mais foi utilizada, ela encarava a parede que um espaço do armário deixava entrever, mas parecia enxergar além dela.

Como exatamente, ele não tinha lembranças. Mas sabia que havia ficado de pé ao lado dela, com uma face interrogativa. Ayumu percebeu o filho só alguns instantes depois, quando pareceu despertar de um longo e doloroso transe.

Kanda[62]...

Hum?

Eu estava pensando em irmos eu, você e seu irmão para Kanda, naquele Ano Novo. Vocês dois gostam tanto de livros... Iam se divertir tanto em Kanda...

Em nenhum momento o rapaz mencionou as lágrimas que o bairro trouxe aos olhos da mulher.

Mas também, em nenhum momento ele deixou de encará-las.

...O que eu fiz, Zexion...?

Houve uma parte dele que, mesmo quando estavam conversando normalmente, estava sempre berrando seus pecados.

Mesmo naquele momento, aquela voz obscura esteve ali, de fato. ‘A culpa é sua’. ‘Você sabe o quê fez’. Era, quem sabe, o perfeito momento de dizer isso. Mas alguma coisa ali não o deixou falar. Até mesmo tentou matar aquela parte que sequer pensou em aproveitar-se da ocasião.

Quando menor, Ayumu parecia tão grande, tão ameaçadora. Era uma sombra, uma muralha, um inimigo que, a todo custo, Zexion quis eliminar.

Agora, ela não parecia nada mais do que um par de frágeis ombros.

Era essa pessoa que chorava amargamente a mesma que um dia o chamou de um “fardo”? Sim, era. Infelizmente era. E uma parte de si ressentir-se-ia eternamente disto. Uma parte de si jamais aceitaria conceder seu perdão.

Mas haviam outras partes de si, bem mais sensatas e que provavelmente foram as que agiram naquele momento, que não se importaram de ceder seus braços para que sua mãe chorasse a morte na qual, de fato, ela teve grande parte da responsabilidade. Aquela morte que deixou uma cadeira da pequena mesa de jantar vazia para sempre.

Existiam sim, ainda, partes de si próprio que, naquele instante, sentiram que de fato, apesar dos pesares, eles eram uma família.

Ainda podemos ir a Kanda”, ele disse.

E aquele foi o início. Foi a promessa.

De fato, pensando bem, não faltavam muito tempo para o Ano Novo. E, como o prometido, ele e sua mãe passeariam no bairro em questão desta vez.

...Mesmo assim, depois de quase dezoito anos de ausência, era estranho eles estarem tentando outra vez.

Estranho, sim, mas não um desagradável.

Suspirou de novo. E percebeu que aquilo já estava ficando irritante.

 

~x~x~x~

 

...Porém, ele se lembrava do seu riso límpido, de seus olhos – de um azul que, tanto na tristeza quanto na alegria, era capaz de roubar-lhe o ar – tão puros, e tinha uma vaga memória de sua voz, que lembrava ser-lhe agradável.

Era memórias muito firmes, e possivelmente (para o bem ou para o mal) imortais. E, por algum motivo, pensar no garoto era estranhamente natural quando a solidão vinha acariciar-lhe no silêncio de seu lar.

Tão natural quanto doloroso...

 

~x~x~x~

 

O calendário estava lá, servindo de testemunha silenciosa, de prova indelével.

Sua presença indicava uma passagem de praticamente (faltando exatamente dois dias para tal) três meses exatos entre este dia de hoje e aquele em que ele acordara em Nagano, num quarto de hotel, sem nenhum resquício de Demyx.

Irônico que justamente hoje tivesse de ter ido pegar uma encomenda que foi endereçada a sua antiga residência com o porteiro do outro prédio. Era uma caixa grande; ele perguntou-se, quando a viu, o que poderia haver ali dentro. Não tinha encomendado nada – e disso tinha absurda certeza – e nem tinha conhecidos que podiam dar-lhe algo assim.

Um pensamento cruzou sua mente tão rápido quando se foi, a ponto de Zexion mal lembrar-se o quê foi ele, quando observou o remetente.

Axel”.

Ele conhecia esse nome. Aliás, conhecia-o até demais.

O garoto vivia mencionando este tal amigo.

Agora, em seu novo apartamento perfeito e organizado, aquela caixa era como um intruso, um inimigo, uma ameaça desconhecida e que fazia sua respiração, algumas vezes, prender na garganta. Zexion não sabia o quê esperar; mas sabia de quem esperar. E era isso que o inquietava.

Ele almoçara (ou algo assim, porque café não é exatamente um almoço. Mas, bem... Aquela caixa o olhando não deixava-lhe comer) com aquela visão, sentara-se ao sofá com aquela visão (e nem mesmo os documentários que costumava assistir conseguiram entretê-lo), decidira trabalhar no escritório, mas continuava sentindo aquela caixa encarar suas costas.

E bufou.

Sabia que uma coisa muito, muito desagradável aconteceria se abrisse aquela correspondência.

Seu tamanho, aquele “Axel” no remetente... Tudo estava apenas berrando “problemas, Zexion. Problemas”.

Mesmo assim, ele aproximou-se. E abriu-a.

Por um momento, o rapaz teve vontade de afastar-se (correndo, diga-se de passagem. Preferencialmente correndo), de jogar aquilo longe, de fechar a caixa e atirá-la ao mar. Passou a mão pelos cabelos, pressentindo uma enxaqueca.

O azul saltou aos olhos no exato momento em que abriu-a. O azul daquele... Sitar? Era isso, não?

...O maldito sitar que estava sempre com aquele idiota.

Por um milagre Zexion realmente não fechou aquela coisa e a mandou de volta para as profundezas do mesmo inferno do qual saiu. Talvez, pela Divina Providência que o fez ver que havia uma carta lá no fundo, não só a maldita sitar. E, amaldiçoando-se eternamente por ter dado ouvidos ao seu impulso de abri-la (não, melhor, ao seu impulso de ter ido buscar esta coisa no outro prédio!), ele pegou aquele envelope.

As costas de sua mão roçaram, sem querer, no instrumento. Estava gelado. Mas não era áspero... Zexion amaldiçoou duas vezes mais o maldito Axel.

Incrédulo, o rapaz de cabelos em nuances azuladas percebeu que estava... O que era aquilo? Sua mão tremia?

...Diabos.

Não só isso. Uma dor. Havia uma dor em si.

Não era exatamente no coração, mas também não era no estômago. Parecia que ela se espalhara por toda a região. Estava pressionando muito, era doloroso... E roubava sua capacidade de respirar, de controlar o tremor de seus ombros e de, pelos deuses, pensar com clareza.

Abriu o envelope, e dois pedaços de papel caíram dele. Um era, ao que parecia, metade de uma folha de ofício A4. A outra parecia uma própria para cartas à mão, com as linhas e espaços, inteira e frente e verso.

Decidira, não sabia explicar porquê, começar pela pequena. Podia entender a letra, mas não podia negar que era bagunçada.

 

Hey.

 

Desculpe pelo atraso em enviar esta carta.

A situação se mostrou mais delicada do que esperei a princípio e eu só pude pôr minhas mãos nesse sitar agora.

 

Não li a carta, então, não faço idéia do que ela fala.

Mas sei que Demyx me pediu para entregá-la somente com a condição de que fosse junto com esse sitar insuportável.

Como não sabia o seu novo endereço, tive de mandar para o antigo. Isso também me atrasou um monte. Enfim, desculpe pelo trabalho.

 

Ah sim. Acho que você o conhece, não é? Então, se quiser culpar alguém por essa invasão de privacidade, culpe Xigbar: foi ele quem descobriu onde você mora.

Parabéns por ter conseguido esconder ao menos o seu novo endereço dele.

Você agora sabe o meu. Se precisar de mais alguma coisa, escreva.

 

Axel.

 

Ele precisava agradecer à entidade maravilhosa que o fez pegar a carta do tal Axel primeiro. Isso explicava muito.

Também já o preparava para aquela estranha coisa em sua garganta.

Por um momento, achou tão antiquado cogitar corresponder-se com aquela pessoa que nunca viu por cartas. Axel sequer deixara um e-mail. Mas, bem... Não que Zexion fosse mesmo escrever.

Suspirou outra vez. Não levava a nada, no fim das contas.

Sentando-se, então, no chão gélido (já que percebeu que só ajoelhar-se não iria adiantar), Zexion respirou profundamente, e passou a ler a próxima.

Não pôde, porém, evitar de sorrir.

...Sorrir. Incrivelmente.

Ela estava escrita somente em hiragana[63]. O pensamento “Imbecil...” cruzou sua mente neste instante e, de fato, pareceu apropriado.

Surpreendeu-se, porém, ao perceber que o garoto tinha uma letra bem mais “organizada” que o outro. Para alguém de aparência tão desleixada, Zexion achava que a caligrafia era tanto quanto o resto.

Bem... Ele estava mesmo sempre me surpreendendo”, admitiu para si.

Uma última surpresa era o mínimo.

 

“T E S T A M E N T O

 

Eu, Demyx, de vontade sã e própria, consciente e sabedor das circunstâncias, declaro através deste Testamento os fins de meus bens:

 

1. Declaro que sou residente de Tokyo, Japão, e não sou casado nem tenho filhos.

2. Todas as despesas de minha doença foram devidamente quitadas.

3. À Xigbar, deixo a sensação de alívio por nunca mais ter de me aturar.

4. À Axel, eu deixo meus consoles, meus games, minha TV para que ele jogue em Full HD decentemente, e meus DVDs.

5. À Roxas, deixo minha coleção dos cinco livros do ‘O Guia do Mochileiro das Galáxias’, mesmo que ele diga que não quer nada.

6. À Zexion, deixo minha sitar, todo o dinheiro que foi gasto durante seu seqüestro, devidamente quitado, e as seguintes palavras:

 

Viu como eu sei fazer um Testamento? Está igualzinho, vai dizer! (^^)v

Eu queria fazer uma carta normal, mas parece que o tempo está contra mim...

Estou escrevendo do meu leito, e amanhã, nesta mesma hora, a cirurgia já terá acabado. Ou seja: neste mesmo horário, amanhã, eu já estarei morto. Ou seja, de novo: quando você ler isso, eu não vou mais estar por aqui.

Considere este o meu Testamento particular, Zexy (apesar de já estar óbvio). E peço que perdoe a grosseria em não começar uma carta como deve ser começada.

 

Xiggy está de cúmplice dessa situação, vigiando a porta, enquanto o Axel está esperando eu terminar isso aqui. É que meus pais não gostam muito dele... Na verdade, nem o conhecem, mas consideram ‘gente de fora’ uma má influência. Mas enfim, já dei as instruções pra ele. Você recebeu meu sitar e o envelope de dinheiro direitinho, né?

(Se isso não aconteceu, pode matar o Axel com um daqueles seus livros de 1000 páginas. Eu deixo.)

Ah sim... Desculpe estar escrevendo tudo isso em hiragana. Como o tempo está contra mim, preciso ser rápido. Kanjis são chatos e demorados. Você consegue entender o que estou querendo dizer pelo contexto, né?

 

Sabe... Eu queria que você e seu Palm estivessem aqui. É chato escrever tudo isso à mão. Mas como ninguém tem um netbook ou coisa do tipo aqui, só me restou este último recurso. Esta lapiseira é horrível e o grafite quebra muito, mas serve bem, ao menos, ao seu propósito.

Sei que deve estar muito bravo comigo – e não lhe tiro a razão – mas gostaria que entendesse. Sei que você é inteligente e poderia compreender bem mais do que eu próprio, mas neste caso, a inteligência não vale nada.

...Eu estou patético, Zexy.

É até bom que você não esteja me vendo agora. E, talvez, este foi um dos motivos que me fizeram fugir...

Não... Pensando bem, foi isso mesmo.

Provavelmente é egoísmo meu, abandoná-lo assim ao meu bel-prazer sem nenhuma explicação e, de repente, enviar isso, mas... Só traria mais complicações.

E eu não queria nada complicado. Não para a gente.

Mesmo sendo nós de níveis sociais distintos, mesmo sendo do mesmo sexo, mesmo tendo tantos problemas, pelo tempo que nos conhecemos e convivemos, nós fomos apenas nós. Foi descomplicado, foi natural. Apenas... Foi.

Você entende, não é?

Por mais que eu sinta sua falta, eu também sei que não é justo com você. Não é justo forçar essa situação à você.

Quero que lembre de mim daquele jeito.

Eu bem que tentei, mas você acabou descobrindo que eu era doente. Não estava nos meus planos, sério.

Eu quis que você lembrasse de mim apenas como um idiota que sorria por nada e que não se importava com nada também. Só desse jeito.

 

...Estranho a pessoa que praticamente te seqüestrou escrever isso, né?

 

Mas estou sendo sincero.

Lembre-se de mim somente como o Demyx.

Não como o herdeiro de um império caído, nem como um pobre coitado, não precisa nem ser como seu... Aliás, pensando bem... O que nós fomos? ‘Amigos’? ‘Namorados’? ‘Amantes’?

...Lembre-se apenas do Demyx. Nada mais importa.

Eu vou morrer fisicamente, é verdade, mas enquanto você lembrar de mim e enquanto isto durar em você, nenhum de nossos momentos vão se perder.

Meus pais vão se lembrar do ‘herdeiro’, Xiggy vai se lembrar do ‘garoto’, Axel, Roxas e os outros vão se lembrar do ‘amigo’, mas você...

Você, Zexy. Eu deixo as memórias do ‘Demyx’ para você.

O patético, o digno de pena, o idiota... Pense como desejar. Mas estas memórias são todas suas. E são as que eu mais quero que continuem neste mundo.

 

Eu tentei colocar você no meu Testamento mesmo (e, como eu estaria morto quando meus pais vissem, eles não poderiam fazer nada para impedir), mas... Desculpe, não deu certo. Mesmo porque eu acabei não deixando muito, depois que fiz o inventário...

Mas... Ao menos, fique com meu sitar. É tudo que posso lhe deixar.

Porque eu sei que só memórias não são o suficiente (e se você quiser vendê-lo, é todo seu agora. Não me importo), é sempre bom ter algo físico, né? Eu sei que você cuidará bem do meu tesouro, do melhor jeito que lhe convir.

(Eu poderia dar meu cabelo para você, porque ele também é meu precioso tesouro. Mas, sabe como é... Morro com ele.)

Ah é! Eu contei de você pro Axel. Ele riu muito de algumas histórias (mas não se preocupe, não contei nada que nos entregasse).

Disse que foi bom eu ter encontrado alguém como você, pra me colocar na linha.

 

...E isso me lembrou: eu tenho um pedido para te fazer.

Por favor, apenas viva. Apenas lembre-se de mim quando isto não lhe causar dor. Apenas... Seja feliz. É. Apenas isso. Não me importa se for solteiro, casado, com cinco filhos ou nenhum, no exterior, como um vendedor de sorvetes ou o presidente da república... Apenas seja feliz.

Eu ouvi dizer (se bem que aqui na área de Oncologia você ouve muita coisa dos pacientes terminais) que, quando você deseja algo muito forte, antes de morrer, você pode ser atendido. Eu vou desejar isso, certo?

Só espero que não me torne uma alma penada por causa desse desejo... Se bem que, se eu me tornar, aí poderei estar perto de você, né?

Ah, sim, estava quase me esquecendo! Se eu, por acaso, conseguir ir para o Céu e encontrar Ienzo-kun lá, darei um ‘oi’ no seu lugar.

(Aliás, você acredita em Céu e Inferno, Zexy?)”

 

Zexion nunca leu a carta além daquela frase.

Lágrimas demais atrapalhando sua visão, dor demais em seu peito, como se seu coração estivesse sendo rasgado em milhões de pedaços, o sitar estava azul demais, tão azul que parecia cegá-lo (ou era a dor?)...

Tudo estava demais.

 

~x~x~x~

 

...Demyx foi uma constante tão rápida quanto importante em sua vida.

E Zexion esperou, em vão, que continuasse assim.

 

~x~x~x~

 

Naquela Segunda-feira, ele ligou para Saïx e disse que iria faltar o trabalho.

 


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Notas finais do capítulo

[61] Faixa presente, com variações, em toda a série de OSTs de Kingdom Hearts.

[62] Bairro de Tokyo onde se encontra um dos mais imensos distritos de livrarias e sebos do mundo. Famoso também por suas lojas.

[63] Sistema silábico japonês. É usado para toda palavra para a qual não exista um kanji ou se este existir, for muito raro e o leitor pode não compreender. Também usado nas terminações de verbos e adjetivos.



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