Gris escrita por Petit Ange


Capítulo 16
Capítulo 15: End of the World




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GRIS
Petit Ange

Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira."
~ Anna Karenina (Tolstói).

 

 

Capítulo 15: End of the World. [56]

 

A literatura estava sempre cheia de exemplos do tipo.

Mas eram palavras. Licenças artísticas.

Zexion nunca achou que acontecesse mesmo. Porque era-lhe impensável deixar de pensar. A razão estava simplesmente ali, como o próprio ar.

Sempre esteve.

Por que, então, ela subitamente parou como o próprio ar? Como o tempo?

Ah, claro. É porque, afinal, nada podia contra a morte. Nem a razão. Ele já devia saber disso. Já perdera um irmão. Natural.

...E tão triste.

Como era triste.

- É um nome difícil, né? – sorriu Demyx. Radiante. – Confesso que demorei uns dias pra decorar. Cheguei a cogitar criar um apelido, algo assim... Mas o que combinaria com “glioblastoma multiforme”? Sério, como os médicos conseguem, né?

Radiante...

Não. Aquilo estava errado.

Não era aquele sorriso que deveria estar ali.

- É realmente... No cérebro...? – o mais velho perguntou. Era ridículo; era óbvio. Mas precisava ouvir da boca dele. Seria o golpe final em sua ilusão.

- Aham. – assentiu o outro. Cruelmente. – Tumor cerebral. Cancerígeno. Maligno. Incurável. Praticamente inoperável. E todo aquele blábláblá médico.

Tão cruelmente...

Mas Zexion já imaginava aquilo. Sua mente já havia pintado aquele quadro; talvez não com todos os detalhes, mas não era-lhe novidade. É claro que já: porque até havia pesquisado a respeito. Seu histórico estava provando isso.

Mesmo assim, fora apenas desencargo de curiosidade, algo que esteve sempre ali, mas nunca materializado.

O pior prognóstico”. Lembrava-se daquela frase a respeito deste câncer.

Primeiro, havia cogitado outros. Nem lhe passara tumor cerebral.

Mas não fazia sentido. Havia algo que não se encaixava.

...Então, o remédio.

Não o que o idiota tomava agora, caixas e caixas por dia. O outro. Aquele que acabara há alguns dias.

Foi-lhe difícil lembrar do nome. Afinal, vira-o só de relance.

Sua memória fotográfica quase o traiu.

...Porém, ao fim de tudo, descortinou-se a hipótese: cérebro. Dor de cabeça, tontura, desmaios. Tudo se relacionava.

“Cérebro”.

- Meu primeiro desmaio foi na casa de um conhecido do meu pai. Um parceiro de negócios, se não me engano... – mas Demyx deu de ombros. Eram todas pessoas-sem-rosto, de qualquer forma. – Estávamos todos à mesa, jantando... Meu pai conversava com aquele homem, enquanto minha mãe trocava fofocas com a esposa dele... O habitual... E, de repente... Eu senti uma dor de cabeça fortíssima. Foi horrível. Comecei a ver estrelas, o mundo girava tanto que fiquei enjoado... Eu pedi licença e me levantei. Pensava em ir ao banheiro e fazer algo a respeito. Acho que uma maid[57] tocou no meu braço e me perguntou se estava tudo bem, mas eu não lembro direito da sua voz... Desmaiei antes de poder responder e, quando acordei, já estava no hospital. Não sei que horas foi isso.

“Meu pai havia mentido, dito que era apenas pressão baixa... Ou algo assim. Não lembro que desculpa ele deu aos anfitriões. Mamãe ficou comigo. Ela sempre ficou comigo quando precisava ir ao hospital. Quando o médico chegou, ele... Me olhou como se eu fosse nada. Não sentiu pena, não sentiu nada. Algo em mim avisou, então, que eu estava com problemas. Quando ele me perguntou, eu disse o que havia sentido... E, então, ele disse à minha mãe que iria nos indicar um oncologista. ‘Mas isso não é só para pessoas com... Câncer?’, ela perguntou, e falou ‘câncer’ como se fosse algo proibido. Ele disse, então, que ‘haviam feito um scan, ou algo assim, e descobriram alguma coisa na minha cabeça’. Fariam alguns outros exames, mas era certo que eu teria de ir a um oncologista.”

“Quando o médico foi embora, minha mãe... Chorou. Segurou minha mão e chorou. Eu sorri e disse que devia ser só uma anemia. Eu estava cansado, comendo pouco... Ultimamente, estava estudando muito para entrar na universidade. É... Acho que eu ainda tinha dezessete anos nessa época. Não lembro... Enfim, não era nada. Eu disse que não era nada, mas ela negou, e segurou minha mão ainda mais forte. Disse que era ‘instinto de mãe’. Disse que... Ela sentiu, quando me viu desmaiar, que eu estava... Muito ruim. E, então, ela chorou ainda mais. Nessa hora... Eu senti vontade de chorar também. ‘Morte’. Foi meu primeiro contato direto com essa palavra.”

Demyx ergueu-se da cama, subitamente, e manteve-se de costas para Zexion. Porque ambos souberam que, naquele instante, se seus olhos se encontrassem...

- Fui com minha mãe ao oncologista. Eu lembro de ter saído para lá de uma reunião com meu pai. Na época, me senti muito irritado... – sua voz era tranqüila. A mesma voz de alguém que já estava preparado para morrer. – Mas hoje vejo que ele apenas estava lidando com o problema do seu jeito... Como se nada estivesse acontecendo. Para ele, não fazia sentido eu faltar às minhas obrigações como herdeiro mesmo estando doente. Enfim... – ele riu de leve, talvez lembrando-se de alguma coisa que só o próprio Demyx podia ver. – Lá estávamos, eu e mamãe, no hospital...

“Fomos atendidos e o homem do outro lado da mesa apenas olhou os exames com meu nome. Eu só via um desenho engraçado que pouco lembrava um cérebro, com uma esfera esbranquiçada no canto. Mas ele tinha um rosto... Eu não sei, sério. Incrivelmente, eu não lembro do rosto desse médico. Não lembro de muita coisa, na verdade, daquele dia. Mas lembro que ele esteve muito sério, e que isso me incomodou. Mamãe perguntou o quê era aquilo. Um câncer? Um tumor? Só um erro? A resposta foi algo que ambos esperávamos, mas ao mesmo tempo...”

“Era um tumor cerebral. Esse aí no seu Palm. ‘Infelizmente, senhora, seu filho tem glioblastoma multiforme’, ele disse. ‘Vamos confirmar o diagnóstico, mas... Isto não é bom. É o tipo mais agressivo de câncer nessa área’. E então... Minha mãe perguntou o que eu não tive coragem nem ânimo de fazer. ‘É possível curá-lo?’, ela perguntou... E ele disse: ‘Não. Esta doença não tem cura. O glioblastoma multiforme é resistente contra os métodos convencionais de quimioterapia e cresce rápido’. Ele também disse que, devido ao lugar onde ele estava no meu cérebro... Era arriscado tentar uma cirurgia. Eu tinha, numa estimativa otimista, uns 2% de chance de sair vivo dela.”

“Esse médico e minha mãe... Naquele dia, eles conversaram bastante... Falaram sobre quimioterapia, sobre terapias alternativas, sobre a doença... Como ela era cruel, rápida, e como eu só tinha de 3 a 4 anos de vida... Eles falaram tantas coisas. Eu só ficava ouvindo. Estava tão apático na hora que tudo parecia parado como eu. Mamãe chorava como uma criança a cada notícia que recebia... Eu queria que ela parasse. Quis dizer pra ela, por favor, parar de chorar um pouco. Mas a voz não saiu, eu não me mexi... E, enfim, saímos de lá horas depois, com meu diagnóstico: eu tinha uma doença incurável, praticamente inoperável e o tumor, que estava me consumindo aos poucos, já estava grande o suficiente para me fazer desmaiar por pressionar meu cérebro. Eu ia morrer. Só isso.”

“Eu estava... Pra ser sincero, não sei dizer como estava naquele momento. Eu sentia tantas coisas que nada passava, sabe? Estava estranhamente vazio. Mas, de repente... Eu olhei para minha mãe, para suas lágrimas... Olhei para aquele hospital, e de repente... De repente, uma coisa entalou na minha garganta. Olhando para aquele dia, eu me senti preso. Claustrofóbico. Eu tive medo. Mas lembro bem que disse para ela qualquer coisa sobre ter de sair e a deixei lá vendo navios. Não conseguia correr, mas era o que eu mais queria fazer... Lembro, então, que quando percebi, havia pego um ônibus, o primeiro que passou por ali, e estava pensando em Axel.”

“Ah, eu já falei do Axel, né? Ele é um grande amigo meu. Me ajudou pra caramba nesse período. Ah, mas não é hora de falar disso, né?... Enfim... Quando percebi que eu havia parado em um lugar muito diferente da casa dele, liguei para ele e pedi para que viesse me buscar. Eu não sentia nada, estava morrendo, longe de casa e sem muito dinheiro, e aquilo me deixava com medo. Quando Axel chegou (irritadíssimo), me levou para casa (de ônibus de novo. Pegamos uns dois) e me ofereceu... Um refrigerante, acho. É. Ele estava mesmo tão irritado com aquilo... E, então... Eu não me lembro direito como, mas lembro que contei. Contei a ele que estava morrendo. E aí...”

Zexion pareceu despertar de um pesadelo quando percebeu a mão de Demyx, ainda de costas para ele, movendo-se até o rosto do mais novo.

Um gesto aparentemente displicente de enxugar suas bochechas foi o aviso para que aquela ânsia que estava martelando em seu estômago e membros se intensificasse.

Ele queria levantar-se. Queria ir até aquele idiota e...

E não sabia, sinceramente, o que fazer então. Só sabia que não queria vê-lo daquele jeito. Daquele jeito que sabia que estava.

Imaginar a expressão de profunda dor no rosto alvo era torturante. A dor que já lhe maculava a voz... Era demais. Era como estar dentro de um pesadelo. E, pateticamente, se aquilo fosse mesmo um, ele queria despertar.

...Mas é claro que não era um pesadelo. É claro.

- Eu chorei... – Demyx sussurrou, então, após um breve momento de silêncio. – Sério, como chorei naquele dia. É até meio vergonhoso lembrar disso...

O mais velho sentia-se como que colado àquela cama.

Alguma parte de seu cérebro lembrou-o de que não havia marcado a página de seu livro onde parara, mas esta mesma parte de si calou-se tão rápido quanto falou.

Ainda de costas, por outro lado, o moreno observava a movimentação das ruas, pela janela. A noite estava tão... Bonita. Estranhamente bonita. Ou, quem sabe, fosse a melancolia que tingia o índigo que a tornava assim tão bela. Ou, ainda, fosse simplesmente sua vontade de encarar qualquer coisa que não o rosto de Zexion que fizesse as coisas interessantes.

Seus olhos ardiam. Ah, aquela dor que ele já conhecia. Começava no coração e subia, como um rompante de pranto. Um choro que jamais viria.

- Naquele dia...

Ao ouvir a voz do mais velho, o herdeiro virou-se.

- O quê?

- ...Naquele dia, em Shiojiri. – Zexion explicou-se. – Você disse que “um certo imprevisto” o impediu de seguir a carreira do seu pai. Foi isso, não é?

- Você ainda lembra disso...? – sorriu.

- É claro que lembro.

Provavelmente, pensou, se o encarasse naquele momento, o rosto do outro estaria no mínimo ofendido por aquele óbvio atentado à sua inteligência.

- Sim. Como eu iria morrer, não fazia sentido ainda ser o herdeiro, não é? Afinal... Meu pai duraria mais do que eu. Qual a lógica nisso tudo, né?

- Você fez... – hesitou. – ...O tratamento?

- Fala da quimio?

- Também.

- ...Fiz sim. Tomei todos os remédios, fiz todas as sessões... Disseram que isso ajuda a destruir algumas células cancerígenas, mas... No caso de glioblastoma, como você deve saber, elas só voltarão a crescer de novo. É como arrancar erva-daninha: se não for pela raiz, não adianta nada. Eu precisaria fazer a cirurgia arriscada. E, mesmo ela não vai tirar 100% do câncer, porque isso é impossível... Por isso, ele voltará a crescer. Só vai demorar um pouco mais, e isso se eu tomar um monte de remédios depois.

Demyx sorriu de leve.

- ...Eu fiquei com medo quando meu cabelo começou a cair.

- Imagino... – o mais velho respondeu.

- Ainda bem que eu parei. Não imagino o quê seria de mim sem meu cabelo... Sério, ele é minha vida! – ele riu. – O Axel já estava até preparando a foto comemorativa, aquele desgraçado. Não dei esse gostinho a ele...

Zexion permitiu-se até mesmo a um esboço mal-feito de sorriso. Não mais do que isso; sem mais palavras ou ações.

Demyx, então, virou-se.

- ...Porque, afinal, meu câncer se tornou rapidamente resistente à quimioterapia. Não funcionou mais. Por que continuar inutilmente com isso, né?

Estava sorrindo.

O mesmo sorriso dos primeiros dias.

Aquele que fazia Zexion achar que o garoto era um... Imbecil.

Havia tanta dor ali. E ele sentiu-se o maior dos tolos, até mesmo mais idiota que o garoto que tinha este título outrora, por só ter percebido tarde demais quanta dor estava escondida debaixo daqueles olhos que pareciam tão brilhantes, tão vivos...

Era uma dor tão profunda e sincera que vinha daquele gesto que, para Demyx, parecia tão automático, que doía em Zexion. Doía como nada jamais doeu.

- Será que um dia você vai me perdoar por ter demorado tanto para te contar uma coisa dessas, Zexy...?

Estendendo a mão, como quem espera o passo do próximo, o rapaz de cabelos azul-acinzentados apenas assentiu, devagar.

- É claro que isso não deveria ter chegado onde chegou. Mas, suponho que não podemos fazer nada a respeito. Ao que me consta, você foi assim, Demyx... – suspirou, numa quase fingida reprovação. – E eu já lhe disse: eu o aceitei. Se isto está em você, se isso faz parte de você, então eu aceito. Não há, portanto, razão alguma para pedir-me desculpas. Nunca achara, sinceramente, que palavras podiam machucar. Para ele, sempre foram ações ou armas que o faziam.

Mas palavras eram poderosas. A sabedoria japonesa antiga era mesmo infalível: palavras machucavam e curavam. As palavras de seu médico machucaram-no, as palavras de seu pai ao saber da notícia machucaram-no, as palavras de sua mãe machucaram-no, e mesmo Axel não foi capaz de, plenamente, lhe curar...

Por que, entretanto... Por que as palavras de Zexion, que deveriam justamente lhes ser um alívio, doíam tanto assim...?

Demyx não sabia. E, possivelmente, jamais viria a saber a resposta para isto.

Mas seu corpo, ao contrário de sua mente, sabia. Ele sabia a fonte da dor que avassalou seu peito, como se alguém o estivesse pisoteando.

Ele sabia o que fazer para que tudo fosse embora, sem precisar de remédios ou ilusões.

Seu corpo moveu-se sozinho, enquanto sentia-se despedaçar de dor, não a dor da doença, mas uma outra, vinda do fundo da fonte da vida.

E, quando percebeu, seu rosto estava encostado no joelho de Zexion, aquela mão antes estendida estava segurando a sua. Ajoelhado, o mais novo deixou-se esconder o rosto ali, enquanto alguma parte de si esperava o momento em que ele seria enxotado como um cachorro de rua. Um momento que nunca aconteceu.

Só houve a outra mão dele, tão estranhamente quente, em seus cabelos. Só houve aquela onda, aquela sensação de haver algo quebrando dentro de si, só houve nada e todas as coisas... E .

- ...Obrigado... – e Demyx sussurrou, sentindo-se sufocar com aquela estranha coisa sólida presa em sua garganta desde o início daquela noite.

Se falasse mais alguma coisa, sabia que não agüentar-se-ia mais.

- ...Tudo bem.

Ele queria erguer-se e, talvez, pedir desculpas outra vez. Porque lhe parecia que suas pequenas e injustas escusas jamais seriam o suficiente para compensar... O quê? Não sabia. Mas sabia apenas que não queria aquele balanço desproporcional, onde ele recebia tanto e não dava em retorno quase nada.

Entretanto, por mais que assim desejasse, seu corpo respondia de outra forma àquelas palavras. Ele estava parado; absorvendo, sorvendo cada sílaba, cada mudança de tom. Fechando os olhos, o mais novo desejou que aquela sensação de que o mundo estava ali apenas por aquele momento, e que o tempo já não fazia mais diferença, permanecesse em si.

Demyx sentiu um leve acariciar em sua cabeça, e os olhos, até então fechados, abriram-se em surpresa. As palavras, porém, não saíram: pois, como alguém que sabe que um animal selvagem foge quando em contato com uma pessoa, o garoto também sabia que Zexion iria parar se ele falasse algo. Mantendo-se imóvel, ele apenas desejou com ainda mais intensidade que tudo acabasse naquele momento.

Não sabia contar, exatamente, quanto tempo ficaram ambos daquele jeito. Só sabia dizer, porém, que foi tempo suficiente para que, ao menos, aquele pranto que ameaçava abandonar seu corpo foi devidamente acalmado, restando apenas um peso amargo no coração. Algo que Demyx podia muito bem lidar com.

Mas aquela coisa em sua garganta... Ele imaginava quando iria embora.

E, então, tanto tempo depois (ou seria apenas alguns minutos?), sorriu, e seus ombros sacudiram de leve ante o som cristalino.

- O que foi? – Zexion perguntou. E, como o outro imaginara, sua mão parou.

- Ah, não foi nada... – negou, sorrindo. – Só estava lembrando de algumas coisas...

- Assim tão interessantes?

- “Irônicas”, eu diria...

- Imaginei. – numa voz indescritível.

Demyx atalhou, sentindo esta mesma falta de tom. – Ah, mas é um “irônico” engraçado, até. Só lembrei de um jantar... Sabe que eu só fui pegar num hashi[58] faz uns dois anos?

Zexion ergueu a sobrancelha. – Então, você comia antes da maneira ocidental?

- Sim. – assentiu. – O que é engraçado, já que meu pai gostava de kimonos tradicionais, mas eu nunca comi nada japonês antes de conhecer o Axel...

- Isso é quase inacreditável... – confessou.

- Também acho isso estranho... – resmungou o outro. – Mas não mais estranho do que imaginar você comendo peixe frito[59] no jantar.

O mais velho revirou os olhos.

- Comum demais pra você?

- É que... Sempre achei, pela sua aparência e o jeito que você age, que viesse de um lugar mais... Sei lá, classudo?

- Sinto muitíssimo por não corresponder à sua imagem mental.

- Nah, tudo bem. – ele riu. – Eu também não tenho cara de gente rica...

- Não mesmo. – concordou.

- Mas você mora em Tokyo agora, né, Zexy? – perguntou, então. – Lá você mora bem, né? Afinal, você bancou muita coisa nessa viagem de quase um mês...

(Demyx quase quis perguntar por quê, então, Ayumu-san não se mudou para a capital ou, ao menos, mudou-se de casa, para uma melhor. Até porquê, agora, aquela era a casa onde um filho suicidara-se. Mas, obviamente, ele jamais cometeria uma gafe daquelas... E, talvez, fosse algo que nem o próprio Zexion soubesse; sendo assim, preferiu calar-se a respeito e morrer com esta dúvida).

- É claro. Mas, meu caro Demyx, permita-me lembrá-lo de que todo o dinheiro que tenho e o que ainda terei vem do meu trabalho duro.

A alfinetada fez os ombros do moreno encolherem-se. – Isso doeu, Zexy...

- Era para doer. – assentiu.

- ...Eu ia começar a trabalhar logo, logo. – resmungou Demyx, com um beicinho, encostando o queixo no joelho do mais velho.

O mesmo, então, afastou uma madeixa irritante dos olhos azuis.

- Onde o seu pai trabalha, não? – ...Deuses. Era difícil conceber que a pessoa que estava à sua frente era o filho de Myde e, portanto ia, basicamente, herdar uma empresa poderosíssima. Era mesmo muito difícil.

- Sim, eu ia assumir lá tão logo acabasse meus estudos. – resmungou de novo.

- ...Demyx.

A mão de Zexion, então, tocou no rosto pálido e sempre tão estranhamente gelado. Às vezes até estava morno, mas nunca realmente quente.

- Hum? – os olhos do outro ergueram-se.

- Você disse “ia”.

- ...Sim?

- Isso significa que você não está mais sequer nos planos de futuros funcionários. Não me diga que é só por causa de... – ele pausou. Não conseguiu dizer, mesmo os lábios tendo entreaberto no mínimo duas vezes para isso. – ...Pois eu sei que não. É ilógico. E sequer é contagioso. Por que, então? – questionou-o.

A mão também morna do garoto tocou na que estava em seu rosto, e Zexion sentiu-se estremecer de leve.

Um mau pressentimento espalhou-se como o fogo ateado em madeira.

- É que...

Demyx engoliu em seco, e silenciou-se.

- ...Não quer falar?

- Não é isso... É que eu...

Suspirando, ele fechou os olhos, tornando a abri-los segundos depois. – Quando eu voltar para Tokyo, eu... Pretendo me submeter àquela cirurgia.

Veio-lhe a compreensão...

- Aquela onde dificilmente sairá vivo?

- Sim.

...Veio com uma força que ele desconhecia...

- E... Vai fazê-la em breve?

- Esta semana, provavelmente.

...Com tanta força que quase sentiu-se desnorteado.

- Você...

- ...Eu preciso voltar, Zexy.

Um azul era puro como o céu. O outro era um ciano do fundo do mar.

Ambos chocaram-se, e a força que ele sentira naquelas palavras veio, se possível, redobrada quando recebeu em si aquele olhar.

- Quando?

- Amanhã.

Os olhos de Zexion fecharam-se, pesarosos.

- ...Estou indo amanhã, Zexy. – Demyx sussurrou, cuidadosamente. – Desculpe.

Tão óbvio... Não era-lhe uma surpresa; algo em si, fosse seu coração, fosse sua mente... Algo em si já estava berrando o óbvio há muito tempo.

A pessoa que estava diante de si, ajoelhada, com a mão sobre a sua, estava condenada. Seu único pecado, o único que aqueles olhos tão vívidos e azuis podiam ter, era estar dividido entre morrer rapidamente em uma mesa de cirurgia (porque nem mesmo os pais de Demyx puseram fé em sua sobrevivência. O fato do garoto sequer estar mais escalado para um dia fazer parte da empresa era prova disso) e morrer aos poucos consumido por uma moléstia.

Um sorriso pequeno, irônico, tão frágil que já nascera quase desaparecendo, desenhou-se nos lábios pálidos.

Houve um dia em que Zexion fora feliz. Muito feliz, como uma criança normal verdadeiramente merece. Uma infância muito longínqua e nebulosa, tão distante que ele sequer lembrava-se perfeitamente dela.

E, então, diante de circunstâncias que na época não entendia direito, a sua linha de inocência foi brutalmente cortada com a chegada de um irmão que ele abraçou com toda sua alma, apesar dos pesares.

Ele crescera com Ienzo. E Ienzo crescera com Zexion. Eram dias tediosos e mecânicos, mas eram dias felizes, feitos de uma tranqüilidade que podia ser aproveitada (e também abalada, de certa forma) pela ausência da presença materna.

E, então, um dia ele decidira tentar a vida longe de casa. Na capital. Numa verdadeira universidade. E, se conseguisse ganhar no jogo da vida, prometera para aquela casa todo o luxo que perderam com o divórcio do homem que se intitulava, pelas leis da Biologia e do Social, “seu pai”.

Foi sua decisão. E, como todas as decisões do mundo, ela trouxe consigo um preço: seu irmão se fora.

Quando isso aconteceu, por um momento que durou meses, talvez anos, Zexion achou que nunca mais fosse ser feliz. A única coisa que verdadeiramente valia-lhe a pena naquele mundo havia abandonado o mesmo, tão cruelmente, tão horrivelmente... Tão solitariamente. Por um momento que pareceu eterno, o rapaz de cabelos em nuances de azul achou que a culpa e a tristeza também o matariam.

Porém, tudo o que aconteceu foi a repetição de uma coleção de dias tediosos e cheios de amargura. Nenhuma morte; mas também nenhuma vida.

- Não... – sussurrou em retorno. E, por um segundo, não reconheceu sua própria voz ali. – Tudo bem...

Veio-lhe, então, uma réstia de sol. Um pouco de calor.

Um sorriso tão estranhamente melancólico, mas sempre tão feliz...

Zexion sempre achou que o sorriso de Demyx era como o de uma criança, que sorri apenas por perceber-se viva. Ele nunca entendeu a razão, o significado daquele seu sorriso, tão puro e tão triste ao mesmo tempo.

Só agora...

Só agora, quando já estava inevitavelmente... Amando.

Como uma flor que recebe, depois de tanto tempo no escuro, apenas um raio de luz, apenas um pouco da aconchegante sensação da vida, apenas para, pouco depois, ser enterrada mais uma vez.

Por que aquele garoto deixou aquilo acontecer?

...Por que ele deixou aquilo acontecer?

- Por que será...

Demyx, que percebera aquela sombra de tristeza nublar o azul dos olhos do outro, apertou-lhe a mão com um pouco mais de força ao ouvir sua voz.

- Hum...?

- ...Por que será, Demyx... – e ele continuava achando que aquela não era sua voz. – ...Que sempre que você tenta enfrentar algo, acaba só criando mais problemas?

O mais novo baixou os olhos, enquanto o rosto deformava-se, uma vez mais, na tristeza em estado bruto que ele tão habilmente escondia.

- Eu não sei... – murmurou.

Quando a mão (por que tão quente?) do rapaz de cabelos azuis tocou uma vez mais em seu rosto, Demyx fechou os olhos, sorrindo de leve.

Uma parte de si estava muito feliz por Zexion não bancar o “amante clichê e exuberante”. Assim, tudo era mais fácil. Não haveriam lágrimas, abraços nem despedidas e nem mais perguntas. Tudo ficava muito mais fácil daquele jeito...

Mas, ao mesmo tempo, havia outra parte de si que sentiu-se triste, “rejeitada” ele diria, por aquela falta de exuberância. Nenhuma cena novelesca... Mas também nenhum ‘eu te amo’, nenhuma lágrima... E nenhum implorar. Demyx precisava confessar que gostaria de ouvi-lo sussurrar “fique comigo”, talvez “fique aqui”, se a outra frase soasse melosa demais aos práticos ouvidos do mais velho.

Mas, afinal, Zexion era Zexion. Não se pode jamais pedir mais sol ao sol...

E ele também já não tinha mais direito nem posição de exigir nada. Por isso, quando o outro inclinou-se e depositou, tão delicadamente, tão calmamente, um beijo em seus lábios, Demyx pôde apenas sorrir. E desejou, apesar disso, poder chorar uma vez mais, como naquele dia onde o mundo desfez-se em uma ilusão de gotas salgadas.

Ele não soube em quê intervalo de tempo aquilo acontecera, mas recebeu de bom grado a sensação dos lençóis contra as costas.

Abandonando à própria sorte um suspiro abafado pelo beijo que ele não soube mais quando começara, suas mãos agarraram-se mais uma vez à camisa do mais velho.

...Ah. Como ele queria.

Queria gravar tudo aquilo dentro de si. Como se pudesse, se fosse possível de alguma forma, transformar aquelas sagradas lembranças em ferro em brasa e tatuá-las permanentemente por detrás de suas pálpebras, para que, quando fechasse os olhos, pudesse para sempre rever.

Os olhos azuis, aquele azul tão indescritível, um azul meio real, um azul que simplesmente o tragava para dentro de um outro mundo, que ele tanto queria ter tido mais tempo para desbravar.

Queria lembrar-se para sempre da sensação de sua pele, tão quente, tão macia, tão agradável... De como, quando os dedos de Zexion o tocavam, era como se estivesse deixando um rastro de fogo.

Queria lembrar-se dos lábios, tão gentis, do prazer e da dor que eles podiam entregar, de seus cabelos – tão macios, tão exóticos... – de sua voz, de seus suspiros, de seu cheiro...

Demyx queria desesperadamente lembrar para sempre de tudo isso, e levar tais memórias para seu túmulo, mas sabia ser impossível. Por isso, ao menos naquele momento, enquanto lhe fosse permitido, ele queria que seu corpo e sua alma lembrassem de tudo. E seus olhos manteram-se abertos, azul contra azul, pele contra pele, enquanto seus dedos delineavam a pele pálida debaixo deles, memorizando o máximo que conseguisse aquela textura, aquele calor, aquela maciez única...

Amaram-se diversas vezes naquela noite, e o garoto sinceramente não quisera contar, apenas senti-las em sua plenitude.

Estava tentando gravar a tudo em sua memória. Para que, ao menos, seus últimos momentos fossem... Agradáveis. Felizes.

Do jeito que estava se sentindo naquele momento.

O mundo poderia ter acabado ali. Mas o mundo só se movia para eles. O mundo era seus corpos, seus olhos, seus lábios, suas almas; e, por isso, não iria acabar. Não agora.

A sensação de que todo seu ser estava sorrindo, estava plácido e pronto para o futuro permaneceu, firme, mesmo que o êxtase lhe roubasse a capacidade de pensar ou de falar coerentemente.

Esteve ali até o fim.

Até que os primeiros raios de sol despontassem e enchessem o quarto de um banho morno de luz. Neste momento, Demyx levantou-se e sorriu com os lábios, sem sentir, de fato, nenhuma felicidade.

- ...Adeus Zexy.

E, vestindo-se afinal, deixou o quarto para nunca mais voltar.

 

~x~x~x~

 

Os olhos azuis atravessaram o pequeno espaço da mesa à sua frente, com aquela precisão que lhe era característica em momentos como aquele.

Erguendo-os só um pouco, discretamente, o suficiente para que não percebessem sua indiscrição, Demyx observou os adultos. Ele era a única criança por ali; uma criança elogiada por seu bom comportamento, por sua aparência impecável e seus olhos exóticos, sim, mas ainda sim, a única criança. Aquele casal que hoje estava jantando com seus pais não tinham filhos. As crianças das pessoas que seu pai trazia para casa eram todas enfadonhas, mas ao menos... Eram crianças.

Adultos não eram interessantes. Eram chatos. Eram silenciosos, eram uma presença constante, observando, criticando, semeando discórdia...

Suspirando (sempre baixinho, para que os adultos não ouvissem – mesmo que, na verdade, eles estivessem ocupados demais conversando para darem bola para uma mera criança), Demyx encarou seus talheres, e fez uma imagem mental deles antes de terem sido usados. Como era mesmo a ordem...? “Deck”. Porque lembrava-lhe de D.E.C. Sua professora de etiqueta lhe deu a dica de usar recursos mnemônicos para gravar a ordem dos talheres e a utilização deles.

D para o garfo de peixe, do lado esquerdo, porque seria o primeiro a ser usado. C para o garfo de jantar, o maior de todos, usado quando as maids trocassem os peixes pelo prato de carne, ou o ‘main dinner’. E para, enfim, o garfo de salada, o que ficava mais perto do seu prato. Até lá, Demyx nunca agüentava comer a salada. Apenas pedia licença, tão educadamente quanto lhe fora ensinado, e se retirava.

...Qual era a ordem do lado direito dos talheres? F, G... Não lembrava dos outros dois. Problemático. Precisaria de uma nova expressão mnemônica tão ridícula quanto a outra que inventara às pressas.

Suspirou de novo.

Na verdade, o pequeno não queria ficar memorizando posições de facas ou aprendendo que, uma vez pegos, os talheres nunca mais voltam a tocar a mesa, ou mesmo que o jeito europeu de se comer, o que seu pai adotava, dizia que os dentes do garfo devem ficar para baixo, e a faca deve permanecer sempre em sua mão direita.

Também não queria agradar adultos que nunca mais veria na vida, nem crianças mimadas (e irritantes – Demyx nunca gostou de nenhuma delas) filhas dessas mesmas pessoas, a quem o garoto devia a hospitalidade de um anfitrião e a responsabilidade de manter os laços estáveis com a cria de um parceiro econômico de seu pai.

Ele queria mesmo...

A liberdade.

Aquela palavra que, em verdade, evocava uma sensação tão misteriosa que ele só conhecia dos livros que, durante o recreio em sua tediosa escola particular para a elite (aquele bando de idiotas que podiam morrer todos), lia. ‘Liberdade’ era o conceito mais abstrato de sua vida e, talvez por isso, o mais cobiçado.

...Demyx queria ser salvo.

Desesperadamente.

Tão urgentemente que seus pensamentos eram quase uma oração.

Haveria, algum dia, alguém naquele mundo dourado capaz de tirá-lo daquela vida tão... Ridícula?

Não. Uma pessoa assim não existiria jamais.

E, então, lembrou-se de que sonhar acordado à mesa era uma falta de educação.

 

Os olhos esmeraldinos entreabriram-se, numa expressão carrancuda.

- Já chega de falar sobre isso!

Por outro lado, os dois adolescentes que ocupavam as outras cadeiras da mesa de jantar do pequeno apartamento do ruivo não pareciam muito inclinados a obedecerem aquela ordem dita numa voz seca e impassível.

Em verdade, a cara que Axel fez só contribuiu para que os risos se intensificassem, até o ponto em que Roxas, o loiro do lado esquerdo, respirou profundamente, no rosto uma expressão de hilariante sofrimento.

- Ai, meu diafragma... – gemeu.

- Não sinto minhas bochechas... – Demyx também gemeu.

Axel bufou. – Tomara que morram engasgados com essa comida, vocês dois.

Roxas endireitou-se e limpou uma lágrima que teimava em brotar do canto de seus olhos (enquanto Demyx, fazendo o possível para contribuir para a recomposição do adolescente, estava tentando parar de rir), e respirou profundamente.

- Mas sério, Axel... – ele disse-lhe. – Admita que foi engraçado. A sua cara foi... Foi...

- ...Foi a coisa mais engraçada que eu já vi na minha vida. – concordou imediatamente o outro, do lado direito da mesa.

O ruivo sentiu-se corar um pouco ao lembrar-se da situação daquela tarde.

- Qualquer um faria uma cara daquelas quando uma loira psycho passa a mão... – ele engoliu em seco. – ...Na sua bunda!

Foi, obviamente, o cúmulo.

Tanto Demyx quanto Roxas começaram a rir outra vez, as lembranças das diferentes nuances de vermelho e roxo que o rosto de Axel adquiriu naquela hora apenas contribuindo para mais gargalhadas.

- O melhor... – o moreno quase engasgou, em meio aos risos. – O melhor é o que ela fez após isso!

Tirando do bolso um papel (que a muito custo ficou ali. Axel correu atrás dos dois mais jovens umas boas quadras antes de desistir), Roxas, também rindo, jogou-o na mesa, para a desgraça de Axel, que bateu a mão em sua testa, exausto.

- Olha só! – concordou o loiro. – Conseguiu até o telefone da louca, Axel!

- ...Sério, quem diabos põe a mão na sua bunda para te dar um telefone QUE VOCÊ NEM PEDIU? – ele bufou.

Demyx e Roxas se encararam.

- E isso porque nem mencionamos o tal namorado dela.

- É. Aquele homem alto de cabelo rosa que também olhou pra sua bunda.

...E Axel já estava começando a achar que aquela era a noite onde aqueles dois imbecis na mesa iam morrer de rir. Dele. Ou somente morrerem mesmo.

- Por que essas coisas só acontecem comigo...? – suspirou.

- Olhe pelo lado bom... – Demyx tentou consolá-lo, ainda rindo. – Ao menos você conseguiu aquele CD jurássico que aquela sua colega queria, né?

Roxas concordou.

- É mesmo, Axel! Tem um lado bom nisso tudo! – sorriu. E voltou-se para o outro. – Mas qual era o nome dele mesmo, Dem?

- “Butt Butt”, do Monrose...

O ruivo percebeu, com uma quase pontinha de surpresa, que quando um humano é submetido à uma constante humilhação que não conhecia picos ou variações, acaba invariavelmente se acostumando a isso.

Foi deveras surpreendente ver que o desejo assassino de torcer aqueles dois pescoços alvos fora substituído apenas pela vontade de ir lavar a louça e dormir. Dormir para sempre, quem sabe (e fazer sua dita colega pagar, no dia seguinte, na faculdade, por toda a humilhação que o acometeu naquele passeio)...

Ah, mas Roxas dormiria ali de novo, não é? ...Ótimo. Nem dormir em paz sem ter alguém rindo em seus ouvidos.

Sua vida era mesmo perfeita!

- Bom, já que vocês vão ficar aí esmurrando a mesa e rindo da minha cara, eu vou trabalhar...

- Ah, não!

Bradando em uníssono, ainda com os sorrisos respectivos no rosto, Demyx e Roxas agarraram a camisa do ruivo, que virou-se, a sobrancelha erguida.

- ...O que é agora? – rosnou.

- Não vamos fazer nada, prometemos! – Demyx sorriu.

- É! – concordou o mais novo. – Só queremos você aqui com a gente!

- Sim! Quem mais poderá nos servir os sagrados noodles[60]?! Sem sua vossa pessoa, não sobrevivemos, Axel!

O mais velho suspirou e, depois de alguns segundos pensativos, voltou a sentar-se, cruzando os braços.

- Certo, eu continuo bancando o cheff... Mas só se pararem de rir!

Engolindo prontamente o riso (ou tentando, com todas suas forças), os dois jovens assentiram vigorosamente.

- Sim, senhor! – outra vez, responderam em uníssono.

Momentos depois, quando a sessão “riam da cara de Axel o quanto puderem” havia acabado (para o alívio do mesmo), Demyx empurrou para o ruivo sua (não exatamente sua, mas sempre que vinha para a casa do amigo, era ali que comia) tigela, para que este a enchesse de mais noodles, e virou-se para Roxas.

- Ei, Roxy... – ergueu a sobrancelha. – Não vai voltar para casa hoje?

O loiro, surpreso e parecendo um tanto desconfortável, meneou a cabeça.

- Não... Hoje vou ficar por aqui. Axel disse que não se importa, né?

- ...E eu lá tenho escolha? – o mesmo respondeu com outra pergunta, devolvendo, devidamente cheia, a tigela de Demyx. – No fim, sempre sobra pra mim o papel de babá.

- Heh, sabemos que você nos ama mesmo assim!~ – o loiro sorriu, maroto, tentando atacar a comida do outro com seus hashis.

- EI!

Encarando num súbito silêncio a cena que desenrolava-se diante de seus orbes azulados, o herdeiro permitiu-se sorrir, sentindo a felicidade preencher seu corpo, célula a célula, completamente, como se fosse o próprio oxigênio.

Ali, naquelas paredes tão simples, naquele apartamento que devia ser menor que seu quarto... Era ali seu lar.

Era apenas ali que Demyx sentia-se livre.

A antigamente tão misteriosa liberdade que ele sempre sonhou em alcançar.

Mesmo que estivesse apenas por algumas horas, mesmo que depois tivesse de voltar para sua gaiola de ouro, o herdeiro estava feliz.

Porque, afinal, era aquela sua verdadeira vida.

O lugar onde podia sorrir e ser apenas o bom e velho ‘Demyx’.

- Quero mais, Axel! – ele sorriu.

- Quê?! Já acabou?! – o ruivo surpreendeu-se. – O que você tem no estômago?!

O moreno apenas sorriu outra vez.

 

~x~x~x~

 

- Chegamos, garoto.

Demyx despertou de seus pensamentos, que pareciam, naquele momento, mais reais que a própria realidade, num súbito, diante da voz de Xigbar.

Os olhos, que mesmo abertos não estavam enxergando a paisagem que o vidro do carro deixava entrever, fixaram-se, então, naquele apartamento banhado pela luz de mais uma manhã. Um lugar que o moreno reconheceu de imediato.

- Obrigado, Xiggy. – ele sussurrou. – Não vou demorar.

Descendo do carro, o herdeiro caminhou até a porta, enquanto tentava lembrar-se do número do apartamento. Seu abismar naquela hora, possivelmente, o impediu de gravar estes detalhes tão necessários. Mas, bem... Ninguém podia julgá-lo por isso (ou podiam? Enfim!). Ele sempre imaginou uma coisa completamente diferente de apenas um lar normal.

Uma pena não ter consigo nenhum relógio. Queria ver se chegara tarde demais para conseguir falar-lhe.

...E se, por acaso, chegasse mesmo tarde demais? Xaldin pularia em seu pescoço se pedisse para ficar mais um dia ali. Xigbar apontaria a arma para sua têmpora, no mínimo, e o obrigaria a entrar no carro. Ajudado pelo mais alto. É. Não podia passar de hoje, daquela manhã.

Mas e se ela realmente já tiver saído...?

Porque, afinal, Demyx calculara um horário padrão para o início de seu expediente e, a partir dele, usando uma distância imaginária dali até seu trabalho, estivera esperando. Ele, porém, não era um gênio. E também não tinha todas as informações para a conta perfeita. Mais uma vez, aquele era um plano feito às pressas e cheio de furos.

Mesmo assim, respirando profundamente, ele esperou que desse certo. Pediu apenas uma última ajuda da sorte.

Uma pessoa saiu poucos minutos após ele ter suspirado pela décima vez. Não era a pessoa que estava esperando. E, mais uma vez, pensou no quê iria fazer se por acaso chegara tarde demais.

...Ele queria fazer aquilo. Como uma última missão, talvez.

Porém, ao contrário de Zexion, que podia ser muitíssimo inteligente, mas não costumava considerar os “estímulos externos” em seus planos, Demyx sabia que aquilo não era nada mais do que um “empurrão”. Ele não mudaria nada fazendo o que queria fazer: só pioraria, quem sabe... Ou daria a inspiração inicial.

O resto dependia apenas daqueles que ficariam. E isso é o que fazia aquela idéia tão perigosa e, ao mesmo tempo, tão tentadora.

A porta do prédio abriu-se outra vez, e ele observou, com uma onda súbita de adrenalina, a conhecida pessoa atravessá-la.

A figura pequena e esguia (tão jovem, meu Deus! Será que um dia ele se acostumaria com a idéia de que ela é mãe de dois filhos?) olhou seu relógio, parecendo não perceber a presença do rapazinho.

Somente quando ele se aproximou, com um sorriso, ela reconheceu-o.

- Ah... Você é o... “Demyx”, não é? – ela perguntou, surpresa. – Bom dia. O que faz por aqui a uma hora dessas?

- Bom dia, senhora Ayumu. – ele cumprimentou-a, numa mesura formal. – É que... Bom, eu...

- O Zexion não está. – ela apressou-se em dizer (mesmo achando, de fato, estranho alguém que viesse tão cedo para falar com um amigo. Talvez desconhecesse os novos hábitos desta juventude?). – Acho que já voltou para Tokyo. Desculpe, ele saiu tão rápido... Nem eu achei que...

- N-não, senhora... Eu não vim pra falar com ele...

- Hã? – mais surpresa ainda.

Ele respirou profundamente:

- “Cheguei”. A senhora disse “cheguei” quando estive em sua casa.

- Sim, eu disse, mas...

- A senhora disse “cheguei” antes de enxergar nossos sapatos. – ele disse. – Ou seja, a senhora todos os dias diz “cheguei” por costume, mesmo morando sozinha, e não necessariamente porque nos percebeu... – Demyx pausou-se, engolindo em seco. O que estava dizendo para a mãe de Zexion? – O Zex...Ion... – quase traiu-se. – Ele também não respondeu “bem-vinda de volta”.

Demyx tomou a mão pálida entre as suas, e encarou-a tão firmemente que a jovem mãe viu-se impossibilitada de olhar para outro lugar que não os orbes azuis.

- Mas não é isso que eu vim falar... Apesar de ter a ver... Ah... A verdade é que eu... Eu vou embora, agora. Pra muito longe... E, possivelmente, não vou poder voltar nunca mais... – sussurrou-lhe, como se confessasse um segredo indizível. – Por isso, a senhora será a única pessoa que restará. Ienzo-kun se foi, eu também vou embora... Você será, portanto, a única aliada do Zexion...

- Como você...

Meneando a cabeça, o mais novo não a deixou terminar a pergunta:

- Por isso... Se possível, eu gostaria que vocês tentassem mais uma vez. – e sorriu. – Pode não ser hoje. Nem amanhã, nem daqui a uma semana... Pode ser daqui a um ano, dois, daqui a dez anos... Mas eu gostaria muito que tentassem uma vez mais. Sei que a perda de um... Não, de dois membros foi um trauma terrível na vida de ambos, mas... É possível continuar a viver. Uma flor pode crescer nos escombros de um incêndio... – “Será que foi um bom exemplo?”, pensou. – Vocês podem recomeçar.

“Eu sei que você ainda ama seu filho. Da mesma forma que sei que seu filho também ainda a ama. Enquanto existir o amor, enquanto vocês forem mãe e filho, enquanto estiverem vivos... Sempre poderão recomeçar. Por isso... Desculpe-me, desculpe mesmo se eu estiver sendo muito metido, mas... Mas eu quero que Zexion seja feliz, mesmo depois que eu já tiver ido embora. E eu sei que ele iria querer que a senhora também fosse feliz. Acredito que foi isso que ele sempre quis. Por isso... Por isso... Sejam uma vez mais aliados um do outro. Só mais uma vez...”

E, então, Demyx soltou a mão de uma Ayumu sem palavras, para a mesma ver nela um grande maço de notas. Valiosíssimas notas.

- Considere isto, Ayumu-san... – e seu sorriso tornou-se de uma melancolia tão palpável que foi doloroso. – ...Meu estímulo. Pode fazer o que quiser com isso. Até mesmo jogar tudo isso no meu túmulo e cuspir nele, se quiser. Mas apenas... Ame-o na minha ausência. É só isso que peço.

Virando-se, então, ele acenou para a jovem mulher, que continuou parada.

- Desculpe, eu preciso ir agora... Adeus, Ayumu-san. E obrigado por me ouvir.

Ao voltar para o carro e fechar a porta, Demyx suspirou, finalmente sentindo aquela adrenalina que enchia seu corpo fazer efeito e sacudi-lo.

- ...O que foi aquilo? – ouviu Xigbar perguntar.

- Eu só... Tinha uns negócios pendentes. – sorriu o herdeiro. – Mas eles acabaram agora. Vamos voltar pra Tokyo, Xiggy.

Zexy vai me matar quando souber disso”, completou somente para si. Um amargo pensamento veio-lhe, e até mesmo lhe fez sorrir. “Uma pena que eu já estarei morto neste momento.

 

~x~x~x~

 

Devagar, Zexion abriu os olhos.

O sol iluminava o quarto, que antes mesmo de mover a mão para o outro lado da cama, já sabia estar vazio.

Constatando a certeza de seu pensamento, ele revirou-se.

Demyx não estava mais em lugar nenhum.

...Sua viagem havia acabado.

 

~x~x~x~

 

- Ei... Por que você não foge?

Demyx virou-se, surpreso com aquela súbita pergunta.

- O quê?

- É. Por que não pega umas trouxas e se manda?

Por um momento, o mais novo cogitou perguntar se o amigo estava falando sério mesmo ou se era mais uma brincadeira estranha, apesar do olhar dele não ser o de alguém que brincava.

- Err... Mas fugir é...

- Você viveu toda sua vida, até o câncer, tentando agradar seus pais, né? – o ruivo revirou os olhos. – Até mesmo se anulou pra isso.

- Bem, sim... Mas...

- E agora você finalmente percebeu que desperdiçou toda a sua vida tentando ser algo que não é e que não pode mais voltar atrás do erro, né?

Ouvir aquelas palavras que ele havia confessado sob o efeito de sake (que mostrou-se um poderoso inimigo. Álcool de arroz era horrivelmente mais forte que o álcool normal. HORRÍVEL, ele dizia!), Demyx estreitou os olhos, desgostoso.

- É verdade, sim... Mas fugir, Axel...

- Pense bem: seu pai não vai deixar você sair. Nem sua mãe. – devolveu. – Não quando você está aí, à beira da morte.

De fato, eles iriam jogar sua carcaça na mesa de cirurgia e matá-lo ali mesmo.

- Então... – concluiu o ruivo. – ...Só lhe resta fugir.

- Mas é que... Fugir... – tudo bem, a idéia parecia rebeldemente agradável. Demyx adoraria dar aquele susto em seus pais. Mas...

- Cê tem dinheiro. Tem tempo e tem recursos. É fácil.

- ...Mas e os remédios?

- Ah, é só você levar!

E onde dormiria? Com o quê fugiria? Não podia levar nenhum carro ou saberiam. Não podia levar nenhum cartão de crédito ou rastreariam.

Demyx queria muito conhecer o mundo, é verdade, o mundo que lhe foi privado por uma educação rígida e direcionada para o futuro... Mas, “fugir de casa apenas com algumas poucas bagagens e remédios de um doente terminal” parecia um pouco... Perigoso demais, diria. Arriscado.

Ele não podia descuidar do tratamento. O câncer que consumia seu cérebro iria aumentar e machucar desnecessariamente.

E, além disso, ele nunca esteve um dia longe da mordomia de uma boa vida. Mesmo quando estava na casa de Axel, o rapaz lhe ensinava os pontos de ônibus que devia pegar, cozinhava para ambos... Até Roxas o ajudava em algumas coisas, é verdade (mesmo que o herdeiro tentasse ao máximo parecer um adolescente normal nesses momentos).

Sozinho, sem celular, sem cartão de crédito, sem empregadas, sem nada... Sozinho num país imenso e com uma doença matando-o...

...Por que isso parecia tão irresistível?

- Você acha que daria certo...? – Demyx questionou, então, dedilhando distraído as cortas de sua sitar.

- Não custa tentar, né? – Axel deu de ombros.

- Eu precisaria planejar bastante...

- Você ainda tem tempo, né?

O moreno baixou os olhos. – Um pouco, sim...

- Então, o que está esperando? Vá fugir!

 

~x~x~x~

 

Axel ouviu o toque de seu celular e, olhando para os lados no metrô onde estava sentado, viu que ninguém o encarava de volta. Atendeu-o.

- Demyx? – reconhecera o número do idiota de muito longe.

Mas só não achou que ele ligaria assim tão cedo...

E aí, Axel?

A voz do outro lado era desanimada. Até demais para o Demyx que ele conhecia. Uma sensação ruim atravessou-lhe o estômago.

- O que foi? Onde você está? – perguntou, a sobrancelha erguida. – Por que está ligando assim tão cedo?

Eu...

Um longo suspiro, como quem toma coragem, separou-os da resposta que faria o ruivo levantar-se e parar no primeiro terminal que se apresentasse.

“...Estou voltando pra casa, Axel.


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Notas finais do capítulo

[56] Faixa 25 do segundo CD da OST de Kingdom Hearts I.

[57] Neste caso, não se trata de funcionárias de bares fetichistas, e sim do termo que designa as funcionárias (sexo feminino, sempre) que trabalham executando serviços domésticos em outras casas. Mesmo sentido, basicamente, do termo português “empregada”.

[58] Hashi são as varetas, feitas geralmente de bambu ou madeira, utilizadas para as refeições no Japão como talheres.

[59] O peixe é servido junto com sopa de miso, uma tigela de arroz, chá e natto (soja fermentada), e é um dos pratos mais comuns de um jantar japonês.

[60] Citação sem vergonha e na cara dura a “Arts n Hearts”, de AkaneKittsune.


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Btw, recebi uma pergunta interessante dia desses. Sei que essa pessoa provavelmente não lerá por aqui, mas não custa, acho, respondê-la:

P: "Como os pais deles reagiriam ao saber do relacionamento deles?"
R: Bom... Possivelmente a família do Dem é que daria trabalho. Myde-san parece ser o tipo de homem rígido e que preza a imagem pública limpinha, limpinha. Um filho homo não seria exatamente o exemplo. -q *isso porque Demikins já tem aquele seu cabelo maravilhoso -qq* ...E a mãe dele, nem se fala. Choraria ainda mais, a pobre mulher. Mas o bom é que a Ayumu, ao menos, não daria nenhum problema. Ela não é assim tão sem noção pra se meter na vida de um filho que infelizmente mal criou. Ela confia no Zexy, e sabe que se ele escolheu isso então é porque sabe o que é melhor pra ele. -q *plus, Dem tem dinheiro. COMO A MAMÃE NEGARIA UM GENRO COM DINHEIRO? -QQQ*


...E sério. "GRIS" só precisa de um epílogo agora, o qual eu não sei como será. NÃO SEI.
E eu sinto que vou precisar de muitos pontos depois da chuva de pedras. -qqq



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