Uma Doença Chamada Amor escrita por Ephemeron


Capítulo 1
Uma doença chamada Amor


Notas iniciais do capítulo

Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.



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Uma doença chamada Amor

 

 

Era um dia quente de inverno. Sim, era mesmo. Naquela cidade as coisas podiam acontecer quando a gente menos esperava. Mas eu até que gostava, apesar de ficar triste em perceber como tudo passava depressa por nossas vidas.

 

Tinha chegado cedo. Ainda faltava uma hora para o treinamento que eu ia aplicar. O céu estava de um azul limpo e o vento mexia com meus cabelos vermelhos. Os fios teimavam em cair pelo rosto, num comprimento ainda estranho para mim. Eles cresciam rápido. Mais rápidos que a dona.

 

Sentei em um dos bancos da estação de Mogi das Cruzes e deixei mais uma vez aqueles sentimentos me invadirem. Fechei os olhos, recebendo o calor do sol. E aquela melancolia tomou meu coração. Uma solidão arrasadora. A solidão daqueles que se sentem unidos a toda a Terra. Uma solidão conjunta.

 

Mais um trem chegou. O barulho das pessoas na plataforma só me fez sentir ainda mais aquele vazio.  Um pequeno pardal reclamou quando o ar se deslocou dos vagões em movimento e mexeu com o pequeno arbusto em que ele se encontrava.

 

Tudo estava tão interligado... Será que ninguém mesmo sabia? Será que ninguém mesmo se importava? Eu poderia chorar junto com eles. Eles que perderam suas casas. Eles que perderam seus valores de vida. Elas que tinham suas raízes ocas. Elas que se perdiam no mundo. Eu poderia sofrer junto com eles. E sofria. E chorava. Por dentro.

 

Porque eu precisava ser forte por eles. Eles precisavam de alguma coisa para se agarrar. E eu desejava tanto ser essa coisa...

 

Hoy mi tristeza no es pasajera
Traigo fiebre de la verdadera
Y cuando llegue la noche
Cada estrella parecerá una lágrima

 

A dor nas mãos me tirou dos devaneios. Elas estavam inchadas e apertavam com uma força inexplicável o beiral do banco. Mais uma vez percebi que esses pensamentos me levavam a uma tensão que eu não controlava. E isso trazia a dor. Aquela dor que eu odiava tanto.

 

Pesarosa e triste, me encaminhei para o que tinha que fazer. O trabalho, ao mesmo tempo em que cansava, me anestesiava. Me alienava. E eu, durante alguns minutos, não precisava pensar em nada. Esquecia de todo o restante e focava apenas em ensinar, em passar para as pessoas o que era realmente importante: A verdadeira forma de equilibrarmos nossas vidas com todas as outras formas de vida.

 

Os sorrisos dos alunos me acalentavam. Davam esperança. Um pequeno resquício de que as coisas podiam ter um jeito. De que o ser humano não estava tão perdido afinal. E, ainda assim, eu mesma me sentia tão perdida...

 

No me digas nada

 

Quisiera ser como todos
Pasar feliz por la vida
O fingir que estoy siempre bien
Ver el color de cosas con humor

 

Já era noite quando peguei o trem de volta. O cansaço e o longo caminhar até a estação fazendo meus músculos gritarem por uma trégua. Mas não havia uma. Eu tinha uma doença que consumia minhas forças e minha sanidade aos poucos. Evitar tomar analgésicos cada vez mais fortes tinha sido uma opção, mas havia momentos que eu não agüentava mais.

 

Que sentido existia ali? O que eu poderia realmente fazer, se eu não conseguia nem ao menos vencer a mim mesma? Vencer aquela doença... Vencer a dor.

 

Senti a garganta secando e tive dificuldade em engolir. Lembrei de um amigo da família que era médico e dizia que dores de garganta eram causadas por sentimentos reprimidos – o famoso ditado “engolir sapos”. Olhei minha imagem refletida no vidro do vagão com tristeza. E culpa.

 

Eu me sentia tão culpada por tudo aquilo. Sentia que tudo o que eu passava era por minha total incapacidade de lutar contra aquela doença. E sentia-me ainda mais culpada por não poder ganhar dela e fazer ainda mais por aquilo que eu amava tanto: a vida.

 

Só queria poder ter força suficiente. Ter energia suficiente. Ter garra, manha, tempo, inspiração, criatividade... Desejava poder salvá-los todos. Dizer que não estavam sozinhos.

 

Contar para todo mundo que se não aprendêssemos logo, tudo ia desaparecer.

 

Tudo estava desaparecendo.

 

Uma lágrima teimosa passou pelo meu rosto e, tão logo caiu, eu a sequei. Observei por um momento a caixa de remédio na minha mão, um alívio para a dor extrema. O pensamento entrou por um segundo na minha mente. Respirei fundo. Fechei os olhos com força e deixei-me cair no sono rápido que ele proporcionava.

 

No me digas nada

 

Que lo malo siempre pasa
El futuro será bueno
Todo pasa

 

- Não existe mais ou menos pra você, não é?

 

Subitamente senti o orvalho do gramado abaixo de mim e um perfume bom de praia e mar. O vento tomava meu rosto. Alguém estava ao meu lado, mas eu não conseguia distinguir quem era.

 

- Tudo é levado ao extremo. Para cima ou para baixo. E se não for da maneira como você imaginou, então você sofre. Acertei?

 

Quando o vento cobriu meu rosto com meus cabelos compridos até a cintura, eu soube que estava sonhando. Mas a pergunta não era essa, na verdade. Assustada, eu tinha outra dúvida na mente.

 

- Mas isso não importa muito, sabe. Eu não estou aqui para te dar nenhuma bronca.

 

Sinto que ele sorri. O chamei de ele por hábito, porque não sei se era ele ou ela. E digo que o senti sorrir porque é dentro de mim mesmo. Eu não via o sorriso dele, eu só... Só sentia.

 

Um perfume de rosas embriaga minha percepção.

 

- Eu sei que doeu muito quando eles foram embora, menina. Não precisa ter medo. Você não é fraca. Não importa muito saber disso, mas eu só quero que você entenda que pode chorar de vez em quando.

 

Cuando todo está perdido
Siempre queda una salida
Cuando todo está perdido
Siempre brilla una luz

 

Meus olhos se arregalaram de espanto. Meu medo fez as imagens da paisagem distorcerem um pouco. Mas algo ou alguém me apoiou. Alguma coisa segurou meu medo, minha tristeza profunda, meu rancor terrível. A voz saiu um pouco mais embargada do que eu gostaria e ainda assim eu percebi que não abri os lábios para isso. Minhas palavras ressoavam diretamente para o ser na minha frente.

 

- O tempo é muito cruel.

 

- Mas você não pode impedi-lo, criança.

 

Ouvi meu próprio coração batendo. A dor vindo com toda a força. O que quer que seja que estava ao meu redor me abraçou.

 

- Tudo tem um tempo certo para acontecer. Você entende isso. O que você não consegue aceitar é a perda deles, não é? Você sente que não os amou o suficiente, mas isso não é verdade.

 

- Como pode saber disso?

 

- Porque você ainda os ama fortemente. E amar é muito bom, querida. E seu amor é uma das coisas mais lindas que já vi. Porque ele percorre todas as coisas.

 

O nó aumentava cada vez mais em minha garganta.

 

- O que acontece apenas, é que você mesma não acredita nele.

 

Lágrimas começaram a rolar por minha face. Um furor guardado em meu peito, saindo em forma de grandes gotas que caiam sobre a terra. E dali surgiam as mais lindas flores que eu poderia imaginar.

 

- Algumas pessoas, às vezes, são muito à frente de seu tempo. E isso as faz sofrer, porque elas sabem o que é preciso para o mundo ser um lugar melhor. O sofrimento não é causado por sentimentos mesquinhos... Ao contrário. É pela luz que emitem em todos os lugares que passam.

 

Mais uma vez a sensação de abraço, de carinho, de acalanto. O colorido de um por do sol no oceano tomou minha visão.

 

- Linda menina, tu não precisas encontrar a luz em outros lugares, não é? Você sabe, aí dentro, que é a própria luz.

 

Mañana es otro día mejor
Pero hoy, por qué me siento así?
Baja del cielo un ángel triste cerca de mí
Y esta fiebre que no cesa
Y mi sonrisa se secas

 

Aquela sensação me tomou. A sensação de ser única com o mundo. De fazer parte. Não importava do que, importava era estar ali. Fazendo parte. Sendo instrumento de algo maior. Sendo algo maior, simplesmente. Sem pretensões. Apenas sabendo dentro de mim, que este planeta inteiro era interligado por apenas um sentimento. Um único sentimento que estava tão esquecido.

 

E doía tanto saber isso. Doía tanto perceber aquele descaso por tudo. Doía tanto dentro de mim, que acabava doendo fora.

 

- Você ama demais, criança.

 

Mais próximo de mim, pude identificar contornos humanos na intensa cor branca que o rodeava. Pude ver seus olhos azuis, no estranho mundo embaçado pelas minhas próprias lágrimas. E ele, de alguma forma um tanto surreal, tomou minhas mãos.

 

- E então você transfere toda a dor desses que ama para si mesma. Em cada fibra do seu ser, você deixa a dor deles repousar. Para que eles não precisem passar por isso. E é tão grande o seu amor, é tão grande seu sofrimento... Que você adoeceu.

 

Sinto meu rosto se transfigurar. O choro vem sem nenhum controle.

 

- Não é sua culpa, querida. Não é!

 

Jogo-me no colo de quem quer que seja. Talvez apenas uma parte de mim guardada no fundo da minha alma. Talvez algum anjo que Ele enviou para me trazer a paz que merecemos todos. Ou apenas um espírito de luz que acompanhou meus passos.

 

- Ninguém pode culpá-la por amar demais, criança. Então não se culpe por isso. E se o teu grande amor a faz doer, isso quer dizer que precisamos melhorar em algo, não acha?

 

Ele me ajuda a levantar. Sinto o calor carinhoso de sua mão segurando a minha e olhando o precipício abaixo de nós.

 

- Porque o amor tem que ser neutro, minha doce menina. Para isso, você tem que aprender a confiá-lo a alguém.

 

O som de gaivotas encheu meu coração de alegria. E o vento me fez desejar a liberdade.

 

- Que tal começar confiando em você mesma?

 

Tudo pareceu ficar em silêncio por um milésimo de segundo. Naquele pequeno instante em que meus pés saltaram para o vazio. E quando, dentro de mim, eu pude escutar apenas: “Voe”... Eu voei.

 

Cuando todo está perdido
Siempre queda una salida
Cuando todo está perdido
Siempre brilla una luz

 

O teto era branco. As paredes eram brancas. Tudo era impecavelmente limpo. Um incômodo em minhas narinas me fez entender melhor. Era um hospital.

 

Minha mãe ressonava, dormindo no sofá do quarto. A pouca luz não deixava ver todas as cores das flores e cartões que ali se encontravam, mas eu poderia imaginá-las ali. Possivelmente entregues pelos meus amigos. Eu não sabia quanto tempo eu ficara assim.

 

Eu só sabia que eu aprendera a voar. E jamais sentiria dor novamente. Porque eu descobrira que a cura da minha doença estava dentro de mim.

 

Na verdade, não havia doença alguma.

 

De repente, senti o peso em minhas pernas e o calor em minha mão. A emoção tomou conta de todo meu ser. Era ele. Com os olhos cheios de amor, toquei seus cabelos com carinho, com certo esforço para meus braços frágeis.

 

Jamais imaginei que seria ele a me encontrar. Jamais imaginei que seria ele a ficar em meus pés, dormindo até eu retornar. Quanto sofrimento eu não causaria se... Não. Não era esse o sentimento que eu deveria ter agora. Naquele momento, reconheci que tudo não passava de uma nova chance para poder apropriar-me do próprio amor que tanto habitava em meu coração.

 

Na verdade, eu deveria me apropriar de meu amor próprio se quisesse, enfim, ser livre.

 

Ele abriu os olhos sem pretensão e me observou por segundos sem acreditar no que via. Seus olhos se encheram das mesmas lágrimas que os meus. Nunca pensei que pudessem estar tão preocupados, que pudesse ser tão importante naquele mundo. E minha maior felicidade, foi perceber que minha vida era o mundo de alguém.

 

Meu amor era o mundo dele. E o dele, parte do meu.

 

Toquei seu rosto com meus dedos finos. Ele balbuciou meu nome devagar. E eu me esforcei um pouco para falar:

 

- Eu vou deixar...

 

Suas mãos tiraram uma mecha de meu cabelo.

 

- Vou deixar vocês cuidarem de mim.

 

Fechei os olhos diante do abraço que ele me deu, chorando e feliz. Pude perceber que o abraço era o mesmo. Era o mesmo daquele do sonho. Era a mesma proteção, o mesmo carinho, a mesma meiga força que me tratava e tranqüilizava.

 

Agradeci mentalmente a tudo e todos aqueles que, sem eu saber, dividiram comigo esse amor. E acreditei firmemente que a vida me foi dada para vivê-la.

 

Aceitei em mim que a história do amor à vida não tem um fim.

 

Mas um começo.

 

 

No me digas nada

Mírame en silencio
Y muchas gracias por pensar en mi!


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Notas finais do capítulo

N/A: Não há o que dizer dessa história. Minha primeira original é também a primeira vez que abro tão escancaradamente meu coração. Peço que comentem para que eu saiba se ela pode ser mesmo um romance ou apenas mais um desabafo desta louca escritora que vos fala. Espero com todas as minhas forças que ela traga a você uma mensagem de amor e vida.
Abraços da Ephe-chan

"Essa história foi baseada em uma paciente com fibromialgia. Essa doença acomete pessoas que viveram grandes traumas (físicos ou emocionais) e é considerada um transtorno do sono. Os fibromialgicos não tem a fase reparadora do sono e, por isso, liberam noradrenalina constantemente (um neurotransmissor que nos “agita”). Essa substancia faz com que o corpo não descanse, gerando dores musculares. A dor gera depressão, que faz o sono ficar pior, que gera mais dor e assim por diante. O tratamento são anti-depressivos, relaxantes musculares e analgésicos potentes. Não existe cura. Ainda faltam muitos estudos para dizer qual é exatamente a causa da fibromialgia."