Contando histórias escrita por Julieta


Capítulo 2
Lar, doce lar.


Notas iniciais do capítulo

Segundo,espero que gostem.



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O amor entre eles era difícil e cheio de arestas. O avô, solitário depois da morte da mulher, queixava-se da empregada, que lhe controlava os passos, e da neta, que não respeitava seus cabelos brancos. A neta, esta reclamava do avô , que vivia repetindo sempre a mesma pergunta: "Que dia é hoje?". O neto, impaciente, preparava cartazes com as datas, que colocava debaixo do nariz do avô a cada dia. E, entre avô, neta e neto, circulava a empregada, resmungando que, se não tivesse tantos anos de casa e apego ao menino, que vira nascer, já teria ido embora, cansada de descobrir tudo sujo logo após sua limpeza: "Eles trazem bichos para cá e sou eu que tenho de cuidar".

Os bichos, estes eram os moradores mais tranquilos da casa: duas cachorras, o gato e o papagaio, fora os animais em trânsito, como cães de amigos, hamsters
e o bando de pintinhos que a garota prendera no banheiro, como cobaias para o seu trabalho de Biologia. O avô abrirá a porta, seus ouvidos tinham tido um sobressalto com o coro inusitado de piu-pius. Aliás, o que o avô tinha de mais apurado eram os ouvidos, que supriam a deficiência da vista, que o impedia de ler e de ver televisão. Não se podia falar baixinho que ele logo reclamava: "Que foi?...que foi?". Isso sem falar nas falhas da memória, cada vez mais acentuadas: "Que dia é hoje?...que dia é hoje?". Ao que a garota, frequentemente, explodia: "Não aguento mais!... Algum dia vou embora desta casa!". Mas, antes de ir, tinha de escutar as ponderações da mãe,separada do marido e funcionária pública, que passava o dia trabalhando: "Pode ir,assim que arrumar emprego. Ou acha que vou sustentar você a vida inteira?...".

Indiferentes aos atritos, conviviam pacificamente com os bichos da casa. As duas cachorras - uma delas já bastante doente - passavam o dia dormindo na lavanderia e atravancando o caminho de quem se dirigia ao quintal, onde o papagaio atormentava a vizinhança: "Loro! Loro!" Enquanto isso, passeava impassível pela sala,enrodilhando-se numa das poltronas ou alcançando de um salto o parapeito da janela, de onde ficava observando a rua. E assim a vida corria entre resmungos, recíprocos, gritos, latidos, miados e currupacos, numa harmonia dissonante que já havia virado rotina.

Mas, como toda rotina um dia se quebra, isso aconteceu na tarde em que a garota ligou chorando para a mãe, no serviço: "Corre aqui! A Vupt está morrendo!". A mãe chegou esbaforida, mas só teve tempo de fechar os olhos da cachorra, inerte no chão da cozinha, ao lado da companheira que lhe farejava a morte num granido triste. O gato circundava o corpo, sem miar, enquanto, no quintal, o papagaio parecia ter-se calado em sinal de luto. Até que o avô, que se postara diante de uma cena que não conseguia vislumbrar direito, quebrou o silêncio: "Que dia é hoje...". Então a neta, limpando os olhos marejados, respondeu com inesperada doçura: " Hoje é sexta-feira, vovô". E ficaram todos ali, unidos pelo mesmo afeto e reverência, ao redor da morte de um dos membros da família.


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Notas finais do capítulo

Obrigada pelo lindo comentário,Carol.