O portador da lua escrita por Daughter of Apollo, AAJ


Capítulo 9
As flores já não crescem mais


Notas iniciais do capítulo

Obrigada pelos comentários tão carinhosos. É ótimo saber como vocês estão gostando da fic e como estamos atingindo vocês. Aproveitem a leitura :3



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Quando seus olhos encontraram-se com os de Stefan, Selene não soube o que dizer. Estava com medo, apavorada, dentro de sua própria paranóia, mas quando o encontrou foi como se um estranho alívio dominasse seu corpo e mente. Aproximou-se do rapaz esquecendo-se momentaneamente dos bons modos e abraçou-o buscando apoio.

— Meu Deus, Selene, o que…? — Stefan não conseguia terminar sua frase. Estava com os olhos arregalados e boca levemente aberta, surpreso por vê-la viva.

Sem hesitar, Stefan abrigou a garota indefesa e trêmula em seus braços e a confortou como pôde. Ainda sentia-se confuso, pois jurava que a menina tivesse sido morta pelo lobo. Selene inalou profundamente, como se estivesse respirando novamente depois de tanto tempo sendo sufocada pela presença ameaçadora do lobo, mas sentiu seu estômago revirar ao sentir o cheiro do rapaz. Não que fosse ruim, mas algo a incomodava.

Desvencilhou-se dele, dando-se conta do contato tão íntimo que estavam tendo, e observou ao seu redor. Esperou encontrar olhares de compaixão e felicidade, mas tudo o que viu foi a desconfiança estampada na expressão de todos os caçadores. Eles a observavam de maneira estranha, dos pés a cabeça, com o rosto contorcido em uma careta descrente. Sentiu-se novamente acuada, mas ao invés de fugir como sempre preferiu fingir não ter percebido nada anormal.

— E-eu… — Selene começou a dizer, mas foi interrompida.

— Como você pode estar viva? — Um dos caçadores questionou em alto e bom som, aproximando-se ameaçadoramente dela e sendo parado por Stefan. — Achávamos que estava morta. Encontramos seu vestido rasgado e completamente manchado de vermelho, como…?

— Bem… — Iria começar a se explicar, mas interrompeu-se quando percebeu a situação que se encontrava. O que iria dizer para eles? Que havia passado um tempo sozinha com o lobo, numa cabana, sendo bem alimentada e cuidada, arrumando a casa e tendo conversas amistosas com ele? Que tipo de desculpa era aquela? Encolheu os ombros ao perceber que teria de mentir. — Eu não me lembro direito. Onde está minha mãe?

Os caçadores encaravam-se como se estivessem conversando entre si somente com o olhar, e por fim Stefan suspirou e deu um passo a frente. Selene não gostou da reação deles. Sentiu seus olhos marejarem antes mesmo de perguntar o que havia acontecido com sua mãe, justo sua mãe. Se o lobo tivesse feito algo com ela… Não sabia o que faria.

— Assim que você desapareceu nós começamos a procurá-la pelos arredores, mas não encontrávamos nada. Nenhum indício da besta, o que não era comum. Ontem, antes de anoitecer, vimos o vestido que você estava usando pendurado no varal de sua casa, manchado de sangue. — Stefan começou a explicar, tomando cuidado com as palavras que utilizava. — Sua mãe não aguentou e enlouqueceu. Ela gritava e esperneava, estava raivosa, inconformada, e somente se acalmou quando anoiteceu. Mas… — Stefan coçou a nuca, incomodado com o olhar tristonho cheio de expectativa que a chapeuzinho direcionava para ele. — Ela acabou por adoecer.

— Deixe-me vê-la. — Interrompeu Stefan, ansiosa demais para ver sua mãe. — Talvez se ela me ver, possa melhorar…

— Ela está muito fraca, dorme a maior parte do tempo. — Mesmo assim, Stefan não conseguiria dizer não para Selene. Não quando ela estava trêmula e desamparada daquele jeito. — Siga-me, vou levá-la até Antenodora.

Enquanto seguia Stefan, a chapeuzinho sentia o olhar dos caçadores grudados em suas costas. Caminhava cabisbaixa e abraçada a si mesma, tentando se proteger dos olhares curiosos e acusadores dos aldeões que a encaravam cada vez mais a medida que ela entrava na aldeia. Sentia-se estranha, de uma maneira que jamais havia experimentado. Parecia até mesmo que estava mais confortável na cabana de Cristopher do que ali, em seu próprio lar.

— Chegamos. — Stefan apontou com a cabeça para uma das casas. A casa de Selene. A menina surpreendeu-se quando levantou sua cabeça e deparou-se com, não somente a sua casa, mas todas as casas daquela parte do vilarejo com as portas cobertas de arranhões e marcas de garras. Lembrou-se então da Colheita e da tragédia que o lobo deve ter acarretado naquele dia.

Abriu a porta e subiu rapidamente, tentando escapar daqueles pensamentos perturbadores. Não queria, mas sabia que alguma hora teria de descobrir quantas pessoas morreram aquela noite. Aquela noite que deveria ter sido tão feliz e símbolo da prosperidade da sua aldeia, mas que tornou-se um dia manchado de vermelho.

Entrou no quarto de sua mãe e quis chorar.

Antenodora que antes esbanjava a imagem de uma mulher forte e batalhadora estava agora deitada em sua cama, pálida, com olheiras abaixo de seus olhos e os seus cabelos sem brilho. Ela parecia tão fraca, tão pálida, tão doente. A imagem chocou Selene de uma maneira terrível, fazendo um soluço cortante escapar de sua garganta e lágrimas gordas escorrerem por suas bochechas.

Selene caiu de joelhos no chão chorando desesperadamente. A imagem doía em seu peito, machucava ter a pessoa que mais prezava daquele jeito. Fraca. Doente. Definhando. E tudo por sua culpa, tudo porque ao invés de ir pelo caminho do rio decidiu ir pelo da floresta. Tudo porque não passava de uma garotinha travessa que havia amaldiçoado sua aldeia, sua família e a si mesma.

Ergueu-se do chão e segurou as mãos de sua mãe, assustando-se com a pele tão fria. Preocupava-se com a possibilidade de a mãe não se recuperar, de que sua tristeza aumentasse, que sua fraqueza agravesse e ela…

Não. Não queria pensar naquilo.

— Mãe… — Chamou-a baixinho, apertando a mão da matriarca carinhosamente entre as suas. — Eu sinto muito, mãe. É tudo culpa minha. — Confessou em voz baixa, sentindo-se horrível. — Fique boa logo, por favor. Eu preciso de você, mãe. — Fechou os olhos com força, rezando à Deus para que não levasse sua mãe. Não desse jeito. Quando terminou, ergueu-se do chão e beijou a testa de Antenodora, largando sua mão gelada e tendo que contentar-se em deixá-la descansar.

Desceu as escadas sentindo-se mais frágil do que já estava e limpou as bochechas, querendo expulsar as lágrimas de seu rosto. Voltou para o lado de fora encontrando Stefan e uns poucos caçadores que continuaram esperando-o e quase desmoronou novamente com os olhares que lançavam para ela, mas ao invés disso estufou o feito e ergueu sua cabeça.

— Eu não sei o que dizer para lhe confortar, Selene. — Stefan confessou, demonstrando extrema tristeza na voz.

— O que aconteceu com você para ficar afastada por tanto tempo? — Um dos caçadores perguntou rudemente, ignorando a tristeza do casal.

— E-eu… — Tentou responder, mas ainda não havia pensado numa mentira digna.

— Deixe Selene descansar, depois ela poderá responder qualquer pergunta. — Stefan repreendeu o caçador, um pouco irritado com a insensibilidade do homem. Mal sabia ele que estava ajudando a menina a esconder a verdade. — Como Antenodora está doente e você está sozinha, deixarei um dos meus homens para ficar com você, tudo bem? Talvez com a sua volta aquela besta volte a nos atacar. — Sorriu sem graça, tentando acobertar o clima estranho que havia se instalado.

— Tudo bem. — Selene concordou cabisbaixa.

— Certo então. Cristopher, pode vir aqui por favor? — Stefan chamou olhando além das costas da menina.

Selene arregalou os olhos e abriu a boca numa careta de susto e pânico, mas como estava cabisbaixa ninguém havia notado. Uma presença moveu-se atrás de si, aproximando-se lentamente como o predador que já conhecia. Ergueu sua cabeça lentamente deparando-se com o que mais temia.

— Oi. — Saudou-a amistoso o grande lobo mau, também conhecido como Cristopher.

O coração de Selene falhou uma batida dolorosa e depois latejou em seu peito em um ritmo frenético. O que ele está fazendo aqui? Seus pensamentos gritavam, sem obter respostas. Ele a seguira. O jogo do caçador não acabou quando ela alcançou a aldeia. Ele estava ali, bem diante dela, com a expressão amigável do lobo em pele de cordeiro.

— Olá — Saudou de volta, incerta, um gosto ruim na boca. O que ela podia fazer? Com excessão de Cristopher, Selene era a única que sabia quem ele realmente era. A única que sabia que a pessoa que devia protegê-la era a besta que a espreitava. Selene sentiu  ânsia de gritar, de contar tudo. Mas o que podia fazer? Fora ela quem apareceu do nada e, aparentemente, Cristopher já estava lá. Eles já o conheciam.

Os outros caçadores continuaram com os olhares desconfiados, mas pelos motivos errados. Eles não notaram a mudança sem Selene.

— Vou deixar você para ficar de olho nas coisas por aqui, está bem? Em caso de o lobo voltar. — A ironia daquelas palavras ecoou na mente de Lene. Eles estavam deixando o perigo para trás, isso sim.

—Tudo bem. Vou cuidar dela. — Cristopher deu de ombros. Havia um arco de caça nas costas. Uma ferramenta de caçador. Era engraçado, já que ele não precisava dela, na verdade.

— Certo. Vamos, pessoal. — Os outros o seguiram, apesar do ressentimento. Com uma última olhada para trás, Stefan se dirigiu a ela. - Fique bem, Selene.

O nome soou tão diferente nos lábios dele! Não era o que ela esperava. Nem o que ela queria. Faltava algo.

Ela assentiu, um pouco transtornada. E então, eles desapareceram, indo para fora da vila. E a deixaram sozinha.

    Ela não queria olhar para Cristopher.

    — Não precisa ficar com medo. — Disse ele.

    Um sorriso triste e tenso pousou nos lábios de Lene.

    — Eu já não ouvi isso antes?

    —Devia ter aprendido da primeira vez, então.

    Selene não sabia exatamente o que fazer. Voltou para a casa e fechou a porta bem forte atrás de si para manter o perigo do lado de fora. Hora de voltar a ser filha.

    Como a casa não estava muito bem arrumada, Selene pegou a vassoura e foi varrer o chão. Tentou fazer tudo em silêncio para não perturbar a mãe - também não chamar a atenção do lobo. Uma agonia crescente a atormentava - ele estava ali, do lado de fora, falara com Stefan e ela não podia contar a ninguém que ele era o lobo. Afinal, quem acreditaria?

    Pelo menos estava em casa, no seu lar.

    De repente, a porta abriu de supetão e Selene pulou com o susto. Da cozinha, onde estava, lavando o chão, só tinha um vislumbre parcial de quem entrava, lentamente, na casa. O coração de Lene bateu mais rápido, imaginando ser Cristopher. A Chapuzinho pensou em mil objetos para tentar se defender - e defender a mãe, que, no quarto, definhava. Mas quem entrou tinha cabelos vermelhos com fogo e um rosto sardento.

    — Carmem - reconheceu Lene com um suspiro de alívio.

    — Selene! — A Raposa se apressou para a amiga e elas se abraçaram como só melhores amigas sabem. — Eu fiquei tão mal! Pensei que você tivesse morrido! Por que ficou tanto tempo afastada? O que aconteceu!?

    — Eu sei, eu sei. Senti sua falta também — Lene a acalmou. Que estranho. Normalmente era o contrário. — Olha, foi tudo muito confuso. Eu não consigo lembrar direito. Eu… Ainda estou muito abalada.

    Carmem olhou para a amiga, preocupada. Parecia que algo a perturbava profundamente.  Algo escondido em seus olhos. Mas teve que deixar para lá, afinal, a Chapeuzinho estava mesmo muito abalada.

    Selene, por sua vez, imaginava o perigo que a amiga correra só de se aproximar da casa com um aperto no peito. Ela sabia que Carmem corria perigo só por ter se tornando sua amiga.

    — Sinto muito pela sua mãe — disse Carmem — Eu tentei ajudar do jeito que pude, mas… Não me deixavam… Não queriam que… — Pausa — Eu tentei ajudar. — A garota suspirou com o olhar triste.

    — Tudo bem, obrigada — agradeceu Selene — Eu acho que vou continuar aqui; preciso ajeitar as coisas.

    — Quer ajuda?

    Selene queria dizer sim. Ela sentia falta da mãe, da amiga, queria esquecer de tudo que havia acontecido. Mas o homem lá fora impedia que tivesse esse privilégio. Ela não poderia por em risco a vida de Carmem.

    — Não, obrigada. Preciso de um tempo para pensar.

    Isso era mentira, já que pensar era a última coisa que ela queria. Pensar trazia todo o tipo de imaginações. Ela provavelmente teria um infarte nas próximas horas se continuasse.

    — Certo. Eu vou indo, então. — Carmem afagou o ombro de Lene e se dirigiu à porta. Selene temeu novamente e seu estômago se contraiu. Ela foi correndo em direção à amiga

— Eu te acompanho até o poço. Preciso pegar água.

Não era uma total mentira.

Selene passou pela porta de cabeça baixa, levando o balde com ambas as mãos, como se fosse uma cesta de doces. Apesar do olhar cabisbaixo, ela prestava atenção aos arredores com o olhar enviesado. Já estavam na metade da manhã. Muitas moradores saíam de suas casas para fazer suas tarefas diárias e os que tinham uma visão da casa da garota amaldiçoada pararam o que faziam para encarar com olhares hostis. Nenhum deles se dirigiu ao rapaz que, inocentemente, montava guarda um pouco afastado. Todos os olhos estavam grudados na garota cuja capa vermelha esvoaçava a cada passo.

Carmem também se mexeu, desconfortável.

O poço não ficava longe da casa de Selene, porém foram os poucos passos mais longos da vida da garota. Ela podia sentir a animosidade queimar em si. Quando enfim pôde pegar a água de que precisava, o silêncio ainda reinava. Ninguém ousava se mover. Apenas Carmem distoava.

Ela se despediu de Selene com um aceno de cabeça, quando ambas estavam prontas para ir embora. Selene deu um passo decidido para casa, mas algo quebrou a tensa quietude. Uma voz irritantemente conhecida.

— Sua garota amaldiçoada. Devia ter morrido em vez de voltar para cá. — Maria a olhava com ódio e repugnância, o nariz repuxado numa careta que era imitada por todos em volta.

O coração de Selene afundou naquele sentimento conhecido. A incredulidade impedia que ela proceçasse a cena. Aquele era para ser seu lar. Ela não correu por horas para chegar até lá? Todos aqueles rostos familiares agora a rejeitavam. A mensagem era clara Você não devia ter voltado. Ou pior, e isso parecia ainda mais plausível. Você deveria ter morrido.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por lerem o/ até o próximo!!