O portador da lua escrita por Daughter of Apollo, AAJ


Capítulo 10
A Beleza da Fera


Notas iniciais do capítulo

Olá!
Queríamos agradecer a todos que comentaram no capítulo passado, foi adorável responder cada um de vocês e saber o que estão achando da história. Por mais singelo que seja o comentário, enche nossos corações de alegria e nos motiva a escrever mais.
Aproveitem! Tenham uma boa leitura!



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— Maria é horrível! Uma mulher desagradável, sem postura. Vive semeando o ódio… Não se importe com o que ela diz, Lene, ela é assim com todas nós. — Selene apenas assentia sem realmente concordar com Carmem, que tentava consolar a angústia da amiga.

Ela sabia que não era bem assim. Maria realmente costumava ser uma mulher desagradável, mas dessa vez esse não era o caso. Ela simplesmente havia dito o que todos da vila pensavam e sussurravam para ela com o olhar: que ela era a maldição da vila.

Sentiu seus ombros pesarem com a culpa, pois sabia que não era uma completa mentira. Havia sido ella quem havia atraído o lobo para a vila, quem não havia obedecido a regra da sua mãe de não ir pela floresta, quem havia se escondido dentro da vila enquanto todos os outros estavam sofrendo tentando manter a fera longe de si, e Selene sabia que toda essa proteção que os caçadores tinham consigo sempre havia sido em respeito a sua mãe, e não carinho por si, e agora que esta se encontrava de cama todos revelaram suas verdadeiras opiniões.

Apertou os olhos com força, não querendo relembrar da triste imagem de sua mãe doente, de cama, incapaz de voltar a ser aquela mulher forte de antes. Olhou ao redor, percebendo alguns olhares grudados em suas costas enquanto Carmem tentava manter uma conversa decente. Para si, ter ficado durante um pequeno período longe da vila havia sido perturbador, mas talvez para os moradores da vila houvesse sido um pedaço de paraíso. Sem precisarem se preocupar com a menina amaldiçoada, lobos, mortes violentas, uivos assustadores, toques de recolher, menininhas de capas vermelhas surtando por causa de vinho, feras circulando a vila...

E falando em feras circulando lugares, a mente de Selene fez um estalo. Rapidamente interrompeu qualquer que fosse o assunto de Carmem e indagou:

— Quando aquele caçador que está resguardando minha casa chegou aqui? Não me recordo dele.

— Sinceramente,  não faço a mínima ideia. Parece que ele sempre esteve aqui, mas ao mesmo tempo não fizesse parte da aldeia. — A amiga distraída sem se incomodar por ter sido interrompida, mexendo com a curiosidade da chapeuzinho sem saber. — Lembro de vê-lo poucas vezes acompanhando Stefan nas caçadas, acredito que ele começou a aparecer depois que os ataques do l… Depois que os ataques ficaram mais violentos.

— E que tipo de relação ele e Stefan possuem? — Selene não conseguia segurar a língua dentro da boca, como se sua personalidade infantil houvesse voltado, pronta para quebrar as regras mais uma vez.

— Ambos são tão próximos que até parecem irmãos. — Comentou feliz, alheia a expressão de puro horror no rosto da chapeuzinho. — Ah, cara amiga, está desconfiando do rapaz? Não sei se é o caso, mas caso seja, saiba: — A raposa abaixou a voz para que só a chapeuzinho escutasse. — Saiba que é inútil. Esse rapaz é extremamente fiel a Stefan, não há o que se preocupar.

Cada palavra fazia o estômago de Selene revirar. Cristopher tinha mais moral na sua aldeia do que ela própria, e ele nem era habitante. Não conseguia entender como ele conseguia ser tão manipulador a ponto de ter uma forte amizade com Stefan. Uma amizade com Stefan! O balde de água já tremia em suas mãos e ela se apressava para chegar em casa, ignorando a sua companhia. Só queria derramar aquele balde inteiro de água na cabeça do lobo mau.

— Está tudo bem Selene? Você está tremendo dema… Oh, meu Deus! Como sou descuidada! Você acabou de voltar da floresta, ainda deve estar sem forças! Espere, irei chamar ajuda.

E antes que pudesse responder qualquer uma das exclamações, Selene foi deixada para trás por Carmem, que apressou o passo o quanto pôde. Por fora, a chapeuzinho tentava demonstrar tranquilidade e indiferença. Afinal, não era uma situação incomum estar caminhando de volta a sua casa, sozinha. Por dentro a história se modificava. Estava surtando de raiva com cada olhar que lhe era lançado. Com Carmem era fácil ignorar, mas sozinha aquilo se tornava insuportável.

Seus olhos estavam baixos e seus ombros novamente estavam caídos. Não sabia o que fazer para provar sua inocência, que jamais havia cooperado com o lobo, que nunca quis que aquela onda de desgraças ocorresse, que era apenas uma criança querendo chegar mais rápido a casa da vovó. Queria culpar Cristopher no lugar, mas depois da história que ele havia contado para si não conseguia. Ele também havia sofrido apesar de tudo…

Selene parou de andar e bem lentamente arregalou seus olhos e fez uma expressão surpresa.

Não acreditava que estava defendendo o cretino que havia destruído sua vida, sua reputação, sua família, sua aldeia e a si mesma. Não acreditava que ele a estava manipulando também, e tão bem que ela nem havia sentido a influência dele sobre si.

Apertou o passo, irritada e resmungando palavras desconexas sobre como esperava que lobos odiassem água tanto quanto gatos, quando sentiu uma mão carinhosamente segurar seu pulso e apertar em um cumprimento silencioso. Ergueu o olhar esperando encontrar Stefan ou Carmem, mas a visão que teve foi dos belos olhos caramelos dourados de Cristopher.

— Precisa de ajuda, garotinha? — Quem olhasse de fora, veria apenas um caçador tentando ajudar uma moça a carregar um balde de água., mas Selene sabia reconhecer por trás do seu sorriso encantador de bom moço o brilho sarcástico que brincava em seus olhos.

— Não preciso do seu tipo de ajuda. — Respondeu incomodada com o toque do rapaz em seu pulso já que não poderia empurrá-lo por estar sendo observada.

— Se você prefere ficar aqui sendo admirada por esses moradores enfurecidos, fique a vontade. — Soltou o pulso da chapeuzinho, tendo o cuidado de acariciar a pele dela com a ponta dos dedos antes de o soltar completamente.

O coração da chapeuzinho apertou sabendo que não seria só Maria que teria coragem de dizer algumas verdades para si, então apressou o passo tentando alcançar Cristopher, que por ter pernas compridas e bem trabalhadas por ser um caçador — tanto humano quanto lobo — só por andar já se encontrava a vários passos de distância da garota.

— A culpa disso é toda sua. — Resmungou baixo, ofegante por ter tido que correr.

— Minha? — Cristopher diminuiu um pouco os seus passos, dando tempo de Selene respirar. Era tão meigo a fragilidade dela, nem correr ela conseguia direito.

Se bem que a chapeuzinho sabia correr muito bem quando a situação lhe convinha.

— Você que fez com que todos pensassem que sou uma criatura amaldiçoada. Você e esses seus malditos joguinhos.

— Não me arrependo de nada do que fiz.

Os olhos de Selene arregalaram-se e seu rosto angelical se contorceu numa expressão de raiva e incredulidade. Como poderia ser tão frio?

— Você estragou minha vida. — Acusou baixo, não querendo chamar atenção para a conversa deles. Por que sua casa de repente havia ficado tão distante?

— Não vejo por esse ponto de vista. — Cristopher parecia distraído quando disse aquilo, como se tudo o que houvesse feito realmente tivesse valido a pena.

Chegaram a casa de Selene, ambos imersos nos seus próprios pensamentos e deixando o silêncio dominar. A raiva pelo comentário infeliz do lobo fervia dentro de Selene, que entrou em casa sem olhar para trás, não sendo acompanhada por Cristopher, que manteve-se junto a porta como havia lhe sido ordenado. Cristopher não estava obedecendo as ordens dadas por Stefan, mas somente respeitando o espaço da Chapeuzinho. Sabia que ela precisava de um porto seguro, e por conta disso surpreendeu-se quando Selene abriu a porta e fez sinal para que ele entrasse.

O rapaz prontamente obedeceu, fechando a porta quando já estava dentro, e virou-se para a jovem.

— Ora, or… — Ele não pôde terminar sua frase. Em um segundo, entrava calmamente pela porta, e no outro estava completamente encharcado de água da cabeça ao peitoral, e o balde antes cheio agora jazia vazio nas mãos de Lene.

Os olhos de Selene o encaravam com um brilho incrédulo, como se nem ela mesma acreditasse no que acabara de fazer. O balde havia sido abandonado no chão, sua mão cobria a boca reprimindo uma risada ou uma careta de espanto — Cristopher não saberia dizer ao certo qual das duas.

A Chapeuzinho prendeu a respiração ao perceber o que havia, de fato, feito.

Ela não planejara direito, somente havia feito o que queria, e sabia que havia errado absurdamente nessa decisão impensada. Conseguia notar claramente o brilho estranho nos olhos do lobo, como uma pequena ameaça silenciosa. A raiva que fervilhava dentro de si mesma como um turbilhão, entretanto, após ter derrubado a água no causador de sua íra, havia sido substituída por um sentimento de triunfo.

Até que não havia sido tão ruim assim.

— Sua…

— Nem tente. Você sabe que mereceu! — Ela disparou. Não deixava de ser verdade, mas isso não melhoraria sua situação. Ai meu Deus, agora ele vai me matar.

A Chapeuzinho não sabia especificamente por que fizera aquilo. Não iria melhorar nada, mas a raiva que sentia por conta de tudo simplesmente a havia dominado. Raiva pela sua mãe, que resolvera adoecer, de Cristopher, que decidira persegui-la, e da aldeia, a qual a odiava e rejeitava por motivos errados. Que culpa tinha ela sobre os acontecimentos? Nenhuma, correto? Era assim que ela pensava, mas não fora ela quem pegara o caminho do rio?

De qualquer forma, ainda sentia raiva — e cansaço. Estava cansada da culpa constante. Cansada de olhar para as manchas de sangue no vestido como se fossem desaparecer, cansada de fugir. Talvez tenha sido por isso que jogara a água em Cristopher, que agora a olhava ameaçadoramente com o brilho da caça nos olhos dourados e um sorriso de lobo estampado nos lábios.  

Selene recuou instintivamente ao perceber isso, sendo acompanhada por Christopher, que deu um passo adiante. A água pingava dos cabelos castanhos e escorria pelo rosto masculino, traçando seus contornos do maxilar até o pescoço, finalmente sumindo em sua blusa encharcada. Ele aproximou-se da Chapeuzinho, um passo de cada vez, com ela recuando um passo e ele adiantando outro, até que a cintura da moça bateu contra a mesa atrás de si, deixando-a sem saída.

Ambos os rostos estavam bem próximos, respiração contra respiração. Selene sentia seu coração disparando dentro do peito por conta da adrenalina — se era medo ou atração, ela já não saberia responder. Cristopher aproximou ainda mais seu rosto e, quando seus narizes estavam prestes a se encostar, sacudiu a cabeça bem forte na direção da Chapeuzinho como um cachorro molhado.

Selene tentou desviar da água, assustada com o ato repentino, mas mesmo assim acabou com respingos no vestido. Uma risada inesperada, surpresa, saiu dos seus lábios. Algo tão delicado e tão forte ao mesmo tempo, como um fantasma de quem ela já fora tentando sair.

— Chega, chega! — Pediu Lene, antes que se molhasse ainda mais. Cristopher recuou com um sorriso no rosto.

— Bom ver seu sorriso doce novamente.

Assim que suas palavras ingenuas foram pronunciadas, o sorriso aberto de Selene se desmanchou com um suspiro.

— É, parece que a última vez que dei uma risada assim foi há muito tempo. — Disse a garota enquanto arrumava o vestido respingado de água. — Mas agora terei de ir pegar mais água.

Queria rir de si mesma por ter sido tão estúpida. Ter derrubado o balde de água no lobo não tinha resolvido nenhum de seus problemas, e agora teria que voltar para fora e encarar toda aquela repulsa que a aldeia tinha de si.  

— Eu vou — Christopher ofereceu-se. — Não seria bom você ir lá fora por enquanto.

— Nunca seria bom, você quer dizer, não? — Selene resmungou, sarcástica, ignorando a súbita gentileza do rapaz. — Nunca terei a vida que tinha novamente. — Lamentou lembrando-se de como anteriormente era respeitada por todos.

Com exceção de Maria, é claro.

    — Você quer que eu vá ou não? — Ele interrompeu seus devaneios, parecendo levemente irritado.

    Ela não queria aceitar a ajuda de Cristopher. Não queria aceitar qualquer coisa que vinha do lobo, na verdade. Uma parte sua gritava para que ela fosse o denunciar à Stefan, mas havia aquela parte mais racional que sabia: o que foi feito, o que aconteceu, não poderia ser desfeito, e talvez nem Cristopher houvesse tido controle sobre o acidente de tantos anos atrás.

    E outra, ela não tinha ninguém além dele.

    Resignada, Selene lhe entregou o balde grata — sem querer admitir — por não ter que enfrentar a horda furiosa novamente e continuou seu trabalho, tentando fazer silêncio para não incomodar a mãe.

    Cristopher voltou um tempo depois aparentando tranquilidade. Deixou o balde cheio no chão diante dela e olhou-a com expectativa, como um cãozinho feliz com a tarefa cumprida. Ninguém o encararia de modo hostil, Lene pensou. Ninguém sabia quem ele era ou o perigo que representava, e, apesar de estar se fazendo útil, Lene não conseguia parar de temer a instabilidade do rapaz. Não tinha como saber quando, nem por que ele mataria novamente.

    Se é que alguma vez houve um motivo.

— Não é como se eu tivesse motivos para confiar em você, não é? — Disse ela, como que para si mesma. As palavras simplesmente saíram intensas e mais altas do que pretendia enquanto ela se virava para ele para pegar a água — Eu não tenho mais um lar porque todas essas pessoas me odeiam, preciso ficar longe da minha única amiga para que você não a machuque e minha mãe está doente. E eu temo que ela… que ela… — Ela engasgou com as palavras — E não posso dizer a ninguém quem você é, ninguém acreditaria; estou completamente sozinha nisso, e não tem nada que eu possa fazer.

Selene virou o rosto para o lado. Não queria chorar na frente dele. O peso da situação caiu em seus ombros. Estava completamente sozinha. Toda a muralha que havia construído ao redor de si desmoronando como areia ao vento; a pose de boa moça, recatada e submissa, a obediência, ruindo até que não sobrasse nada, somente a consciência de que não havia ninguém com quem contar.

Sentiu algo quente em seus ombros e parou; as mãos de Cristopher enviaram os costumeiros arrepios de medo por seu corpo. Já estava a espera de um ataque, mas desta vez foi apenas uma carícia, um calor bem vindo.

— Shhh, não chora. Você é forte. — Ele puxou a jovem para perto, até que a cabeça de Selene recostasse em seu peito. Os braços dele a envolveram em um abraço reconfortante, e de repente ela percebeu que aquele era o abraço que precisava. — Irei lhe ajudar,  estarei aqui por você.

Aquelas palavras derrubaram as últimas defesas de Lene — seu medo, seu receio. Ela estava cansada de se retrair, de temer Cristopher. E por isso, retribuiu o abraço com toda a pequena força que tinha, sentindo o peso sair dos seus ombros. Aquele era Cristopher; não havia como mudá-lo. Ele queria estar perto dela — por algum motivo —, e assim o faria. Selene inspirou o aroma amadeirado, de floresta e de cachorro molhado, aproveitando a carícia das mãos dele em seus pelos vermelhos…

De repente, um barulho afastou Cristopher de si. Selene não pôde ouvi-lo de imediato; o lobo passou a mão pelos cabelos castanhos, desalinhando-os ainda mais, e afastou-se com uma última olhada âmbar. Alguém se aproximava da porta de sua casa com pisadas fortes. Selene pensou em Carmem, que tinha ido pedir ajuda, e iria abrir por conta própria, mas Cristopher tomou a frente, escancarando a porta e deparando-se com um homem estranho.

Por um segundo Selene apenas observou ambos os homens se encarando ameaçadoramente, até que ela finalmente reconheceu o estranho e um arfar saiu de sua boca sem permissão.

— Pai?


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Notas finais do capítulo

Obrigada por lerem, meus amores.
Até o próximo!



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