O portador da lua escrita por Daughter of Apollo, AAJ


Capítulo 7
A História do Caçador




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Selene tremia levemente quando foi empurrada por Cristopher para dentro de um cômodo, e sua respiração começara a se alterar. Seus olhos não conseguiam se acostumar com a escuridão que predominava o cômodo, mas dava pra perceber que as janelas estavam trancadas. Deu alguns passos para trás quando notou que a porta estava fechando, e todos os pelos de seu corpo se eriçaram quando ouviu o impacto da porta contra a parede. Talvez fosse o quarto dele. Ela ainda conseguia enxergar levemente um par de olhos brilhantes que refletiam um estranho vazio. Aquele era Cristopher, ainda sem sair de perto da porta e, apesar de não conseguir enxergar nada, Selene ainda pensava ver um sorriso fraco no rosto do rapaz. As costas de Lene encostaram na parede, e tateando as cegas sentiu que haviam arranhões profundos espalhados atrás de si.

— Você se incomoda com o escuro? — A voz soou tão baixa que a chapeuzinho demorou para processar o que foi dito.

— Por que me trouxe aqui? — Sentiu-se tão fraca ao escutar sua voz. Era um som trêmulo e choroso, principalmente se comparado à voz desinteressada e rouca do rapaz.

— Sente-se bem não respondendo minhas perguntas? — Um silêncio perturbador seguiu após isso, apenas as respirações de ambos podiam ser ouvidas, cada uma num ritmo diferente. A respiração de Lene era rápida e ruidosa, parecia que o ar não entrava em seus pulmões.Sentia seu corpo suando frio e suas mãos e pernas tremerem levemente, mas o suficiente para fazerem com que ela se sentisse frágil.

Odiava essa sensação de que era uma pequena bonequinha de porcelana, queria voltar para o tempo em que não sentia medo de nada, nem de lobos, homens ou bosques. O tempo em que ainda não havia sido corrompida pelo lobo.

Já a respiração de Cristopher era controlada, como a de um predador. Fazia o maior esforço para não fazer ruídos desnecessários, ou então altos demais. Ele não olhava para Selene, encarava as marcas de suas garras na parede. Lembrava-se do porquê de cada uma delas, cada momento em que perdia a consciência. Revirou os olhos e agora encarava uma cama no canto do quarto, escondida na escuridão.

— Quero lhe contar uma história importante, Selene. Você poderia abaixar a guarda só por um momento? Sentar e apenas escutar, como você provavelmente deve estar acostumada a fazer.

— Essa história fala sobre o que? - Apesar de estar incomodada, a garota preferiu ignorar o comentário. Viu os olhos se aproximarem, e então sua mão foi pega levemente por ele. Sem protestar, deixou-se guiar até um canto do quarto onde havia uma cama.

— Crianças travessas, maldições, doces e...

— Parece uma boa história. - Os lábios da moça se esticaram e formaram um sorriso infantil, e esse simples ato fez o coração dele acelerar.

— ... E lobos. — Dessa vez, foi Cristopher quem sorriu, mas apesar do coração de Selene também ser acelerado, não foi por sentir atração... Ela realmente estava com medo agora. Aquele velho medo infantil da história do lobo mal que sua mãe contou para ela dormir.

Selene sabia sobre Contos de Fadas. Aqueles contados para as crianças não andarem sozinhas na rua, não falarem com estranhos e não confiarem em velhinhas oferecendo doces. Mas quem realmente temia a bruxa? Ou quem tinha medo do lobo mal? Selene tinha, com certeza, porém sentou-se no canto da cama que lhe era oferecido. O conto de fadas de Christopher lhe parecia muito mais profundo, tão profundo que ela talvez se perdesse nele. A Chapeuzinho Vermelho voltava a ser uma criança diante de uma grande história, aquela curiosidade irresistível regada pelo medo da Selene adulta. O sorriso não estava mais ali quando ele começou, e Lene deixou-se levar pelas palavras.

           “Era uma vez... Uma mulher, de um vilarejo distante, deu à luz seu sétimo filho. Todos disseram que era uma criança amaldiçoada, pois todos os outros seis eram homens. Mas a mãe não lhes deu ouvidos.

Era uma família inicialmente grande, mas a mãe morreu de doença quando a criança atingiu seus sete anos. E quando tinha seus catorze anos, o pai morreu atacado por ursos na floresta. E desse jeito os irmãos ficaram sozinhos, m grandes para cuidarem de si mesmos. O sétimo filho, ao fazer dezesseis, já caçava sozinho e vendia o excedente para sustentar a si mesmo e ajudar os outros irmãos. Esse era o Cristopher daquela época.

Um dia, acordou de madrugada com a lua cheia sendo sua única fonte de luz. Pegou o arco e as flechas, a faca de caça e a sacola, como havia se acostumado a fazer desde a morte de seu pai.

Quando já estava saindo de casa ouviu um barulho perto dos arbustos. Armou o arco, esperando que fosse algum bicho, mas viu uma garotinha. Ele a conhecia, na verdade. Era Greta, filha do seu irmão mais velho.

— O que está fazendo aqui, sua pestinha? - Perguntou, entredentes. A garota olhou para ele com os olhos castanhos grandes e assustados.

— Eu... Não... Eu... Por favor, tio Christopher, não conta pra ninguém! Principalmente pra mamãe, ela vai me dar uma surra se descobrir!

Olhou sério para ela.

— Eu devia realmente te entregar, Greta. O que você pensa que está fazendo?

— Jack disse que, se eu conseguisse pegar um duende, ele me daria a faca de caça dele pra pegar coelhos. Mas aí eu não sabia onde achar um duende. Então eu lembrei uma vez que a tia Lily disse que os duendes visitam você todas as noites e lhe dizem onde encontrar todos os animais, e é por isso que você sempre consegue boa caça. Em troca você dá a eles alguns doces do padeiro. Então eu pensei em ficar esperando aqui e ver se conseguia pegar um duende quando saísse da sua casa.

Ela disse tudo quase que de um fôlego só. Cristopher sacudiu a cabeça, lentamente, de um lado a outro.

— Greta, Greta... Não há duendes aqui. – Ela baixou os olhos e murchou visivelmente – Mas sabe o que há? Bruxas. Elas adoram vir pra essa parte da floresta. - Aproximou-se mais dela. - E sabe o que elas fazem?

— O quê? – A crédula menina engoliu em seco.

Ele invocou sua voz mais ameaçadora.

— Elas pegam as criancinhas mexeriqueiras e... levam elas embora pra outro mundo, pra sempre, e ás vezes as devoram. - Greta se afastou – Elas nunca mais voltam para as mães. É verdade, eu já vi isso acontecer. É melhor você ir logo, antes que elas apareçam. – Cristopher agarrou o arco com mais força, a expressão preocupada. – Não sei se consigo deixá-las longe de você se a virem.

A garotinha olhou com medo para o caminho escuro que levava até sua casa, onde ainda todos dormiam; olhou para Cristopher, então, com expressão pedinte. O rapaz suspirou alto.

— Tá, eu te levo até lá. Mas vai ficar me devendo uma por não contar à tua mãe.

Greta agarrou sua mão. Ele deixou-a em casa e saiu de fininho, de volta à floresta.

A caçada foi ruim. Assim decidiu se aventurar por lugares não explorados, nas partes mais temidas da floresta.  Avistou um lobo e, frustrado por aquele ter sido o único animal que havia visto aquele tempo todo decidiu caçá-lo. Era lindo. Um animal de grande porte, pelos negros e olhos amarelos brilhantes. O grande lobo tinha uma de suas patas machucadas, e quando seus olhos se encontraram com os de Cristopher ele não fugiu, ou relutou.

Depois de matar o animal, o Cristopher se preparava para colocar o animal nas costas e voltar para casa, quando de repente escutou um som estranho. Parecia um grito muito distante, tão fraco que parecia ter sido sua imaginação.

Seus olhos esbarraram em algo no chão: uma migalha de pão. Aquilo só poderia significar que alguém estivera ali.

Mais adiante, havia outra. E, depois dela, bem mais longe, outra. O caçador seguiu a trilha até encontrar marcas mais evidentes de pequenas pegadas de sapatos infantis, quando o solo foi se tornando um fétido pântano.

Sentia um fedor de putrefação mascarado por um aroma de doces e açúcar. Mais um grito cortou o ar. Ele apressou o passo silenciosamente, como durante tanto tempo havia feito para se aproximar das presas rapidamente sem ser visto.

— Hansel! Hansel, não!

A voz era infantil e feminina. Havia uma casa bem arrumada de madeira escura numa parte mais elevada do terreno. Flores enfeitavam no jardim e a porta estava trancada. O fedor se misturava ainda mais ao cheiro doce, criando algo enjoativo no ar. A garota continuava a se escabelar, mas algum tipo de rugido atrapalhava seus gritos. Sem perder tempo, Cristopher chutou o trinco da porta com toda a força que possuía, quase indo ao chão quando ela cedeu tão facilmente. O material de que era feita não poderia madeira, com certeza.

Os gritos pararam por um instante, só o suficiente para ele processar a cena.

Alguém... Algo... Com olhos vermelhos e dentes afiados e pele cinzenta. Parecia uma mulher, mas ele não pensou muito sobre isso. Ela segurava o pescoço de um garoto entre as garras e a garota a atacava pelas costas com um espeto de lareira.

O caçador não esperou eles se recuperassem do susto; puxou a corda do arco e lançou uma flecha no peito da coisa. Ela não caiu, no entanto, só se irritou ainda mais. Largou o garoto e soltou um guincho. Ele novamente atirou enquanto aquela coisa vinha em sua direção e a flecha atravessou seu pescoço, mas ela não parou; lançou suas garras em seu peito abrindo sulcos profundos com um som nauseante. O caçador caiu para trás e bateu com força no chão. Rios de sangue escorriam do seu ferimento, então percebeu que não vinham exatamente dele: a coisa estava em cima dele e um sangue escuro escorria da flecha que atravessara sua traqueia. Ela arrancou aquilo dali com uma explosão de sangue e ossos. Instintivamente, o rapaz pegou no cinto a última arma que tinha ao seu alcance: a faca de caça. E quando a coisa vinha dar o bote em sua jugular, ele cravou a faca bem fundo em seu estômago. A coisa parou por um momento e olhou para o ferimento que jorrava o líquido escuro.

Foi o suficiente.

O caçador teve tempo de pegar a faca de caça que havia em sua bota, e cravou-a no olho do demônio. Ela rugiu e saiu de cima do caçador, cambaleante, com as mãos tapando o rosto. Cristopher levantou-se rapidamente. Estava tonto e os cortes profundos em seu peito sangravam copiosamente. Não via os garotos em lugar algum. Saiu cambaleando dali, não ficando para assistir a coisa morrer.

O sol ainda não nascera, mas estava quase. O caçador cambaleava pela floresta ainda escura tentando manter sua consciência, tentando não morrer, quando desabou perto de sua casa, mas ainda longe demais para ser visto. O ferimento ardia como o inferno, mas Cristopher não teve tempo de se preocupar com isso.

Ainda estando no chão ele sentiu uma segunda presença. A corrente de adrenalina o fez se levantar e ver: um segundo demônio, dessa vez macho, olhando-o com ódio puro.

— Desgraçado. — Rosnou, avançando lentamente na direção do caçador. — Ninguém nunca lhe ensinou a não se intrometer na vida dos outros?

— O ser amaldiçoado aqui é você. — Cuspiu de volta, sem medo, mas com na sua faca de caça.

— Tem certeza? — Riu o demônio, irônico, e após isso deu seu bote. Tentou pegar o caçador pelo pescoço, mas o caçador foi mais rápido e decepou a mão do demônio, fazendo com que mais líquido negro esguichasse para si.

Assustado, o demônio tropeçou num galho de árvore que havia atrás de si e Cristopher aproveitou-se para pular em cima dele. Ergueu a faca e mirou no pescoço do demônio, que surpreendentemente não reagiu. Estava com os olhos focados no lobo que estava preso nas costas de Cristopher.

— Criança amaldiçoada, sétimo filho, escute minhas palavras! — Vociferou, mas o caçador pouco se importou com o que o demônio queria dizer. Apunhalou seu pescoço com força, mas a coisa não parou de falar. — Irá cumprir seu destino como um filho da Lua. — Mesmo estando com o pescoço cortado, sua voz continuava imponente. — Irá pagar por seus feitos. — Mais um golpe. — Irá sujar suas mãos e sua alma com o sangue dos seus. — Mais um golpe, e a cabeça estava quase fora do corpo. — E a cobiça será seu maior pecado, lobo.

Após o ultimo golpe, a cabeça rolou para o outro lado e o caçador sentiu uma tontura forte. O choque de adrenalina havia passado e agora, ele caía na inconsciência.

Quando acordou, estava em casa e o sol estava alto. Teria pensado que tudo não se passava de um terrível pesadelo se não estivesse deitado sobre a maior poça de sangue que já havia visto. Era para ele ter morrido, na verdade. Procurou pelos ferimentos, mas sequer havia cicatrizes. A pele estava normal, como se nunca tivesse existido ferimento algum. Algo estava errado com seu corpo. Ele se sentia fraco.

Sentia-se esquisito nos dias que se seguiram, pois sabia que algum tipo de veneno corria em suas veias e que iria morrer. No entanto as curandeiras da aldeia falavam que ele nunca esteve em melhor condição. Uma semana depois do que aconteceu, sentia-se cansado das falsas esperanças que alimentava em sua família e fugiu para o meio das árvores. Queria morrer longe de todos, era sua natureza.

Vagou e vagou, sentindo que algo o seguia. Ele era a presa na floresta que outrora dominara com seu arco e sua faca. Pouco havia restado daquela ferocidade.

Ouvia suas patas ao seu redor, uivos, rosnados. Eram os caçadores que iriam acabar com ele. O dia virou noite e sob a lua cheia, o primeiro deles mordeu sua perna. Outro agarrou seu braço. Desabou com a terceira mordida, na coxa. Cristopher só tinha forças pra gritar, e foi o que fez. Era horrível morrer daquela forma, sentindo os pedaços da sua carne sendo arrancados enquanto ainda respirava.

Viu os dentes de um deles diante de seu rosto. Presas cruéis. Rosnado cruel. Pelo vermelho como as chamas do inferno. E havia presas se enterrando em todas as partes do corpo do rapaz, mas aquele foi direto para o ponto principal, a jugular.

A última coisa que viu foi a lua cheia, e ela sorria pra ele.

Perdeu a consciência pela dor, caindo num profundo sono. Gradativamente voltou a consciência, com barulhos irreconhecíveis, e percebeu que nunca havia dormido. Sempre esteve acordado, mas só agora estava lúcido.

Estava em movimento, numa corrida através da noite, e suas patas se enterravam no solo como se conhecessem o terreno. Havia outro como ele à sua frente, de pelos brancos. E outro atrás de si. Conseguia ouvi-los; conseguia ouvir a floresta como jamais havia ouvido antes. Aquilo sim era caçada, e agora ele se tornava um caçador de verdade, sentindo cada parte do seu corpo em contato com o que o cercava.

Essa era a melhor sensação de todas.

Apesar da confusão, não parou de correr. Aquilo aliviava o peso de não saber o que estava acontecendo. Descobrira quem realmente era, quem havia se tornado. Não queria pensar sobre como aconteceu. Apenas seguia seus instintos. Eu só agia, seguia, caçava e matava. Conhecia cada parte do meu corpo, desde a cauda que permitia meu equilíbrio até minhas presas.

Havia aquela ferocidade, aquela sede tão grande que vinha dentro de mim tão intensa... Nunca havia me sentido tão... Vivo.

Eu sou um caçador, pensava. O caçador. O Lobo.

Fim”.


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Notas finais do capítulo

Esse não é fim da história



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