A árvore de memórias escrita por Licht


Capítulo 17
A Árvore e a Conexão.


Notas iniciais do capítulo

seis páginas de capítulo :



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Já era noite - ou ainda era, já que para Itsuki, com seu sono ausente, o tempo não parecia passar nunca. Ela perambulava pelos grandes salões da casa, lembrando de seu irmão e tentando imaginar todas as histórias que dele havia escutado durante o tempo que passaram juntos. A maioria tinha como cenário aquela grande casa, que parecia ter sido muito mais viva do que era agora. Tudo que parecia restar era o grande 'Salão dos Mortos', como Hideki gostava de chamar. Era um enorme lugar repleto de altares de madeira com as fotos de seus parentes - já não podia dizer antepassados. Logo alí, num altar novo, estava a foto de seu irmão. De lá saia uma leve fragrância, mistura do incenso recém aceso e das muitas flores que lá haviam colocado na hora do enterro.

O local era mórbido. Nunca havia ficado muito tempo por lá, já que toda vez seu 'primo' teimava em assustá-la. Mal sabia o jovem Hideki que que o mais próximo de uma assombração estava bem diante dele. Itsuki deu um longo suspiro e se aproximou. Não havia conseguido ir no enterro de Ryotaro de tanto ter chorado, por isso aproveitou a situação para despedir-se.

A meio-yokai estava extremamente desanimada. Sem seu irmão, tudo que restava eram dois estranhos. Por mais que os achasse gentis, não conseguia confiar nos dois restantes membros da família Endo, principalmente no mais velho - que agora era chefe da família.

Olhando para o próprio colo, perguntou-se sobre a própria vida. Porque, durante esse tempo todo, não havia ido embora também? Porque o tempo levava a todos, menos ela? Nessa hora, Naoko Itsuki sequer tinha esperanças de sua mãe estar ainda viva. Por mais que a visita de Natsume a fizesse se sentir bem melhor, era como uma espécie de remédio, que perdia o efeito conforme passavam as horas. Queria estar com ele essa noite, mas não poderia ter pedido isso. - Foi quando ouviu um sussurro.

'Eu lhe dei uma escolha'

A voz falava em tom doce. Itsuki não conseguia definir de quem era a voz, qual seu gênero, nada. Por um segundo olhou ao redor, esperava ver um fantasma.

'Cuidado - Não desista.'

A voz acompanhava uma espécie de fragrância, de música e imagens. Logo, parecia que a meio-yokai havia entrado em estado de transe - em sua cabeça vieram memórias, muitas memórias. Tantas e ao mesmo tempo, que pode reconhecer apenas algumas.

Em uma delas, havia seu irmão, já em seus últimos momentos. Ele a puxava, pedindo para que ouvisse suas palavras finais, “Desculpe-me”, ele dizia. Parecia muito triste, e entre tosses continuou “Desculpe se te enganei. Sua mãe está aqui - próxima. Na pedra.” E foi-se embora desejando-lhe sorte - gostaria que seu último momento fosse mais pacífico do que esse amontoado de sentimentos negativos que emanavam dele. Estava de fato, arrependido.

Depois, veio-lhe a imagem de Daichi, o novo senhor Endo. 'Case-se com meu filho', disse ele em tom imperativo. Depois explicou que sabia onde estava a pedra que selava sua mãe, mas só entregaria depois do matrimônio. Junto a frase que não fazia nenhum sentido para a menina - que não sabia o que significava casamento - veio a memória do olhar do homem. Era um olhar sombrio, decidido e egoísta, inédito vindo de um humano para ela. Itsuki teve muito medo desse olhar. Por isso, calou-se diante da proposta. Daichi, por sua vez, complementou dizendo que a deixaria pensando sobre o assunto.

Itsuki balançou a cabeça. Aquela era uma memória desagradável, e por alguma razão achou que deveria esquecer novamente - mas os sussurros continuavam, apesar de não conseguir definir o que lhe diziam. A menina pôs a mão na testa, um pouco assustada. Foi quando sentiu um leve toque em seu ombro.

— Ah! - Itsuki deu um pulo. Olhou para trás e encontrou Hideki - O que...?

— Haha! te assustei? - O rapaz sorriu de leve. Parecia muito cansado, suas olheiras estavam bem profundas e sua pele era bem clara. - Não conseguiu dormir também, não é mesmo? Eu estava estudando...

Hideki parecia uma pessoa muito ocupada. Estudava muito, parecia dormir numa proporção inversa. Ficava com pena do rapaz, pois sabia que já havia dado muito trabalho para ele - que às vezes precisava passar a madrugada estudando, para ajudá-la em algo durante o dia - por isso evitava falar com ele.

— Uhum. - Itsuki acenou com a cabeça, e então se levantou - Não consigo parar de pensar nele... - suspirou a menina, referindo-se a Ryotaro.

— Venha - disse o rapaz, entregando a mão para a menina - Vou lhe fazer companhia essa noite. É difícil conseguir dormir depois de ficar perambulando no Salão dos Mortos, não é mesmo? - Ele suspirou um riso forçado. Apesar de tudo, também sentia falta do avô.

Itsuki hesitou um pouco, mas o acompanhou até seu quarto. Lá, o rapaz improvisou uma cama no chão, onde deitou. A menina não tardou a deitar na própria cama, o encarando por um tempo - Ele estava segurando sua mão, e logo começou a roncar já que devia estar cansado . Ela, por outro lado, ainda não conseguia dormir. Pensou em ligar para Natsume, mas já era tarde. Se deu por vencida e encarou a tela do celular. Lá havia uma mensagem, dele:

“Não consegui parar de pensar em você... Quero dizer, sobre hoje.

Devia ter ficado com você. Não é legal ficar sozinha nesses momentos...
Então, se precisar de mim, não hesite em me dizer.”

Não precisou dizer nada. O rosto da meio-yokai estava completamente vermelho e a menina ficou suficientemente nervosa para não parar de pensar sobre aquelas palavras por longos dez minutos e depois cair no sono. Não foi uma noite muito bem dormida, mas foi o suficiente para esquecer tudo e descansar um pouco.

–-

Já era um pouco tarde quando Natsume viu Itsuki chegar na escola. Estava um pouco arrependido de ter enviado a mensagem da noite anterior, principalmente porque não obtivera uma resposta. Ficava pensando se havia exagerado e já estava assim há algum tempo - Seu gato inclusive fizera questão de rir bastante em parte do caminho para a escola.

No seu tempo livre, a menina o chamou. Ambos foram para uma parte cercada de algumas plantas e areia, onde poderiam conversar sozinhos.

— Natsume-san! - evocou Itsuki. Queria falar sobre algo, e isso era explicito

Takashi queria muito evitar o assunto, temendo que fosse sobre a tal mensagem que havia enviado. Por isso puxou um assunto qualquer, sobre a menina chamá-lo pelo sobrenome com honoríficos, quando ele a chamava apenas pelo nome.

— Hm... Como devo chamá-lo então? - Perguntou, prática.

— Pelo nome, justamente como faço.

Itsuki abaixou o rosto, com as bochechas rosadas. Ele podia vê-la tentando proferir seu nome, mal conseguia passar de sílabas. “T-taka...” ela falava baixo. Não pôde evitar achar tudo aquilo extremamente fofo... Segurou uma mão com a outra para evitar fazer algo que fosse estranho.

— E-eu... não consigo! - Reclamou a garota.

— Tente. - ele continuou em tom sério. Estava se divertindo.

— ...T-Takashi-senpai! É o máximo que consigo - bradou a menina, com as bochechas cheias e fazendo careta.

Natsume levou a mão direita até a cabeça dela, onde bagunçou levemente o cabelo da garota. Estava mais do que satisfeito, por isso respondeu com um “ok” risonho.

Itsuki então, o abordou novamente, insistindo que tinha algo para perguntar - dessa vez o rapaz não conseguiu pensar em nada para fugir, por isso resolveu aceitar de uma vez seu destino.

— O que significa casar?

A meio-yokai parecia inocentemente curiosa, enquanto o rapaz estava tão chocado que mal pode responder. Como assim casar?! O que isso tinha a ver com a mensagem que havia mandado? Quando a menina repetiu a pergunta enquanto segurava na ponta de sua camisa para chamar sua atenção, respondeu da forma mais geral possível.

— Ahn... Quando um homem e uma mulher decidem viver na mesma casa...eu acho. - definiu, lembrando-se de seus guardiões, uma das poucas pessoas casadas que conheciam.

— Então Eu, Hideki e Daichi-san somos casados?! - Itsuki continuou a pergunta, num certo tom de alívio.

— Er, não... - Natsume pareceu um pouco irritado com o raciocínio - Eles devem dormir no mesmo quarto - tentou deixar a definição mais completa.

— Então nós somos casados? - perguntou a garota, ao lembrar que havia ficado um tempo escondida no quarto do rapaz.

Natsume parou por um momento. Segurou a face com ambas as mãos para esconder o rubor. Como ela podia ser tão maliciosamente inocente? E aliás, porque diabos estava perguntando aquilo? De qualquer forma, precisava responder.

— Não, não. Eles devem formar um casal, devem se amar, dividir a mesma cama. Esse tipo de coisa, Itsuki-chan. - Respondeu irritado.

O rapaz olhou a expressão da meio-yokai, que aparantemente ainda não havia entendido completamente como isso diferenciava do último exemplo que havia dado, e isso o deixou ainda mais vermelho. De qualquer forma, Itsuki não insistiu na pergunta porque Takashi parecia bem transtornado, e o sino do recomeço das aulas já batia. Porém, conforme a menina andava, um pouco mais a frente, o rapaz pode ouvir algo como “Talvez... Hideki...Bom, ele dormiu no meu quarto noite passada.”

Talvez Natsume nunca houvesse experimentado tal horror na vida. Principalmente quando surgia de algo tão bobo. Num impulso, esbravejou com raiva “Afinal, o que houve?!” fazendo Itsuki olhar para ele um pouco pálida. Após isso, obviamente, pediu desculpas - estava surpreso com as próprias ações. Ainda com bastante raiva, a menina respondeu que contaria depois das aulas.

E então as horas que talvez tenham sido as mais lentas da vida do rapaz começaram a passar. Sentado em sua cadeira, não conseguia parar de imaginar mil possibilidades que explicavam o evento que acabara de ocorrer - algumas boas, outras ruins.

–-

Itsuki passou o resto do dia refletindo. Tentava lembrar se conhecia algo relacionado ao assunto, enquanto periodicamente perguntava para alguns de seus colegas o que significava casar. Para sua surpresa, a única coisa em comum entre as respostas, é que todos agiam de maneira bem estranha: Alguns perguntavam se Takashi havia proposto casamento para ela - isso, porque todas achavam que estavam em algum tipo de relacionamento - Itsuki olhava para todas elas cheia de dúvidas. Porque ele faria isso?

Existia ali algum detalhe que Itsuki estava deixando passar. O que fazia duas pessoas se tornarem um casal? Era isso que não entendia. Mas agora sabia que casamento era algo que um casal fazia quando decidiam dividir suas vidas, fazer uma família.

Ter uma família não parecia uma ideia ruim para a meio-yokai. Era, ao contrário, tudo o que mais gostaria. Por um segundo pensou que não haveria problema em aceitar a tal proposta.

Resolveu então, perguntar para última criatura que poderia responder. Madara, que estava perambulando pelos arredores da escola. O encontrou no topo da árvore, e em forma de yokai - para evitar ser vista - sentou-se ao lado dele.

— Huh? Casamento? - perguntou o gato desconfiado.

— Sim! Tentaram me explicar, mas...

— Isso não é para nós yokais. - respondeu, suspirou por alguns segundos e lembrou que Itsuki também era humana - Mas para meio-yokais, bem... De qualquer forma, porque a pergunta?

Nyanko explicou que sabendo do contexto, ficava mais fácil explicar. Esperava que a menina lhe contasse sobre alguma novela ou coisa do tipo, por isso ficou surpreso quando Itsuki finalmente contou sobre a proposta de Daichi.

Madara não conseguiu segurar o riso. Estava surpreso com a Inocência da menina, e ao mesmo tempo com pena do rapaz que o seguia. Já a meio-yokai não entendeu o porquê das gargalhadas - mais uma reação estranha.

Nyanko pegou a bolsa da menina. De lá tirou um pequeno livro ilustrado, do qual Itsuki ainda não tivera oportunidade de ler. Se tratava de um romance adolescente. Percebendo isso, o gato entregou para ela

— Aqui deve explicar.

Foi quando o rapaz esquecido chegou. Itsuki havia combinado de finalmente contar o que estava acontecendo para Natsume, que saiu das aulas desesperado com toda a situação. Achou que a menina ainda estava com raiva, quando na verdade apenas havia o esquecido por alguns instantes, já que sua cabeça estava cheia de perguntas.

Nyanko, ao perceber o rosto do rapaz, bem como o clima estranho que havia tomado o local, escolheu dar a notícia com um trocadilho, da forma mais horrível possível, porém bem típica do gato.

— Hey, Natsume. Parece que foram mais rápidos que você. Aquele menino Endo pediu sua Itsuki-chan em casamento - falou a última parte em tom de ironia.

Natsume deu um pulo para trás. Primeiro, gostaria de matar seu gato por abrir a boca de forma tão audaciosa. Mas antes disso, precisava processar a informação.

— C-como assim pediram em casamento? - Era sobre isso a tal história de casamento? Era por isso que a menina havia dormido com seu ‘primo’? Havia um tom de desespero no olhar do jovem, que tentava se acalmar dizendo para si que Hideki não parecia um garoto ruim e que ela provavelmente seria feliz. Mas nada disso parecia suficiente.

— Nats....T-Takashi-senpai - Embolada na fala, Itsuki começou a dizer, em tom explicativo - É o que eu estava tentando explicar. Daichi-san disse que sabe onde está minha mãe, e que me diria se eu casasse com o seu filho. Mas eu não sei o que significa casar! - E por fim, adicionou em tom mais baixo e irritado - por alguma razão, quando eu pergunto só me respondem se você falou algo...

A expressão do rapaz mudou repentinamente, então. Agora seus olhos demonstravam uma raiva incrível. Ele agarrou os braços da menina, fazendo-a descer do galho de árvore, e então apertou suas mãos olhando diretamente para ela. A meio-yokai estava muito assustada com todo movimento, mas o olhar direto fazia com que ela ficasse atenta ao que o rapaz falaria.

— Você, não, pode, fazer, isso. - Disse pausadamente, tentando manter a calma. - Isso não é brincadeira. É claro, se você for apaixonada por ele é outra coisa, mas... Não pode fazer isso porque é obrigada, entende?

— A-acho que sim... - A menina tentou responder, mas estava nervosa. O assunto parecia muito mais sério do que esperava. - M-mas...

— Além disso, casamento é para adultos. Você ainda é muito nova para isso - O menino cortou o assunto rapidamente.

— Ela tem mais de cem anos, Natsume... - Respondeu o gato risonho, recebem apenas um “shhhh!” raivoso do rapaz.




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