A árvore de memórias escrita por Licht


Capítulo 18
17. A árvore e a inveja.


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo é uma espécie de flashback, onde eu procurei trabalhar os dois outros OCs (Daichi e Hideki, ambos da familia Endo) já que eles vão ter papel importante no final da fic.
já vou avisando que os outros personagens não tem participação grande.
Mas enfim, estamos chegando no final e eu estou assustada com o tamanho dessa fic '3' boa leitura



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O fim de tarde chegava com uma leve brisa que parecia estar a seu favor; Daichi varria o chão da varanda com o fervor de costume, porém desta vez com a certeza de que poderia começar a mover as coisas de acordo com o que acreditava.

Seu pai havia morrido e com ele estava enterrado também os dias de fracasso da família Endo. Agora livre, Daichi resolveria todos os assuntos pendentes e traria a tradição familiar a tona - talvez não em sua geração, mas voltariam a ser um grande clã de exorcistas, como um dia foram.

Apesar de todo o ânimo, que quase escondia a tristeza que a morte de Ryotaro trazia, Daichi estava preocupado e de orgulho ferido. Seu plano, apesar de bem simples - casar seu filho inútil com a meio-yokai que havia batido em sua porta - envolvia misturar o sangue de sua família com a de um yokai, para que seus netos fossem fortes espiritualmente e que portanto, pudessem ser bons exorcistas.

Ainda confiante, o homem de longos fios negros chamou seu filho, que apareceu quase que instantaneamente.

Hideki era um jovem adulto, mas não parecia fazer muito de sua própria vontade. Aliás, pouco se sabia dele, do que gostava e do que deixava de gostar - desde sempre fora treinado para suceder as tradições familiares, tanto as antigas - o exorcismo - como a que havia se instalado há apenas 3 gerações - a da medicina. E, ainda assim, falhava miseravelmente em uma delas, já que não conseguia ver e nem ouvir yokais.

O que lhe faltava de talento, o rapaz tentava compensar com lealdade. O pai chamava, e ele ia. Calado, fazia o que era pedido - Sua disciplina era perfeita. Os dois andaram quietos até o salão onde ficavam os altares da família, onde Daichi obrigou o filho a rezar para os antepassados pedindo que olhassem por eles e seu plano. Obviamente, deixaram Heishi e Ryotaro longe de suas orações, já que sabiam que eles nunca concordariam com toda a ideia.

O clã Endo, em seus anos de ouro, era uma grande família que preenchia sua propriedade numa espécie de vila. Logo de cara para a varanda, havia a grande casa onde a família principal morava. Ao seu redor, uma série de outras casinhas que não tinham cozinhas, já que todos faziam suas refeições juntos. As casas eram cercadas por um grande muro de pedra, que davam a sensação de feudo. A propriedade era enorme e a maior parte dela estava fechada desde que Daichi era jovem.

Uma grande epidemia havia passado pela cidade, matando a maior parte dos membros do clã. Logo, as pequenas casinhas que antes abrigavam tios e primos, transformaram-se em depósitos de velharias e então foram fechados. Apesar de dinheiro não ser um problema para a família, não havia o suficiente para manter todos os cômodos abertos e vazios. Atualmente, apenas a grande casa - a única que era completa - ficava aberta, porém grande parte de seus quartos vazios estavam trancados também.

Daichi nunca pôde ver os dias de ouro de sua família. Quando criança, gostava de ouvir Ryotaro contando as histórias das pequenas casas cheias de velharias e por muito tempo se perguntou quando elas estariam cheias de alegria novamente.

Mas esse tempo nunca vinha, e seu pai, cada vez mais velho e doente, parecia se preocupar apenas com suas histórias. A vida dele era apenas contar, repetitivamente as mesmas coisas, já velhas e sem graça. Daichi notou que, dependendo de seu pai, ele nunca veria seu clã brilhar.

O menino decidiu, e o homem começava a praticar.

Daichi terminou suas rezas com o filho e depois seguiu parar abrir as antigas casas como quem abria tumbas. Aquele era o começo de uma nova era.

–-



Os dias passavam estranhos, e mais do que o tempo, o que preocupava Hideki eram suas múltiplas provas. O Rapaz olhava pela janela de seu quarto enquanto massageava a área da têmpora de sua cabeça. Fazia dias que não via nada além de seus livros, e nem que quisesse poderia - seu pai estava sempre vigiando seus estudos... Ou pelo menos pensava desse jeito, já que fazia um tempo que o rapaz não parava para conferir. E, pensando bem, não achava isso anormal. Depois de muita batalha, havia conseguido uma ótima bolsa de estudos numa universidade de prestígio, e se continuasse no mesmo ritmo, poderia fazer um intercâmbio. O que, para ele era uma questão muito maior de mérito do que de necessidade - a família Endo não passava por problemas financeiros, mas ninguém nunca havia precisado pagar os estudos, e ele também não faria.

Nos últimos dias, em especial, estavam sendo extremamente difíceis. Sua ‘prima’ havia chegado da Holanda, e apesar de falar bem, parecia estar totalmente alheia a cultura do país. Seu avô havia pedido gentilmente que fosse o responsável por ela, e apesar de não acreditar que encontraria tempo livre para isso, não podia negar um pedido dele. Principalmente depois que seu pai, apesar de no começo rejeitá-la, dizendo que atrapalharia ‘os estudos de seu amado filho’, agora estranhamente apoiava a ideia.

Hideki não pensava, apenas consentia. Passou a estudar durante as madrugadas e acompanhá-la durante o dia. Logo os passeios se transformaram em lições, o que tornaram o tempo um pouco mais útil para ele - infelizmente não muito, já que a faculdade de medicina era tão específica.

Uma semana e meio já havia se passado, quando começou a se perguntar por quanto tempo aguentaria tudo aquilo. Sua cabeça doía - destacava mentalmente o menino, quanto massageava a própria têmpora. Obviamente de cansaço.

Mas ainda não podia descansar. Só tinha mais uma hora para estudar, e então teria que ficar com sua ‘prima’. Sabia muito bem que ela provavelmente não era sua parente. Ou talvez fosse, mas toda aquela história estava muito mal contada... Porém, novamente se lembrou: Não pensava, apenas consentia.

Itsuki entrou no quarto quietamente. O menino, por sua vez, não gritou ou esboçou reação.
Ao invés disso, parou e respirou por alguns segundos sem olhar. Trabalhou então o sorriso - típico sorriso que dava, principalmente para Itsuki - e olhou para ela. Estava esgotado...

— Já é hora de nossa lição? Não vi o tempo passar.

A meio-yokai carregava consigo uma espécie de bandeja, para espanto do rapaz. Nela, havia uma caneca que expelia fumaça e um prato com alguns biscoitos.

— Não. - respondeu Itsuki de forma um tanto seca - Trouxe para você porque sei que está cansado.

Hideki havia paralisado de surpresa, não estava acostumado com pessoas preocupadas com seu estado. Quando mais novo, seu avô costumava trazer chá e biscoitos, justamente como a garota estava fazendo. Mas não tardou para que o pai proibisse, com medo de atrapalhar seus estudos.

Itsuki seguiu colocando a caneca na mão do rapaz, depositou também, sobre a mesa dele, o prato com os biscoitos. Depois disso, sentou-se na cama pedindo para que o rapaz pelo menos sentasse ao seu lado.

Novamente, não negou. Degustou aquilo tudo porque estava a sua frente. Durante o processo pensou diversas vezes em agradecer ou pedir desculpas, mas estava tímido demais para isso. Continuou tentando ler seu livro ao lado da menina, mas logo seus olhos começaram a pesar... Não demorou muito para que o rapaz simplesmente desmaiasse no colo da meio-yokai.

Na manhã seguinte, o jovem Endo Hideki seguiu para sua prova se sentindo um fracassado. Não havia estudado, e além disso deixou de cumprir as ordens de seu pai para aquele dia. Apagou num momento de fraqueza e até que o documento chegasse em sua frente, tudo que conseguia pensar era em xingar sua ‘priminha’. Mas, uma vez que avistou o documento e teve a oportunidade de lê-lo, não pode deixar de agradecê-la mentalmente.
Ela havia o salvado. Foi uma prova cansativa, mas por ‘sorte’ havia dormido bem no dia anterior. Se não fosse por isso, nunca conseguiria ter se saído bem. Depois disso, nunca mais pode ver Itsuki da mesma forma.

–-

Hideki não sabia exatamente o plano de seu pai. Acerca de Itsuki, ninguém nunca havia lhe contado nada além de mentiras ou meias verdades. E também não perguntava ou expressava qualquer desconfiança das informações que recebia. Mas no fundo sabia que havia algo diferente nela.

De qualquer forma, o tempo foi passando e mesmo sem querer, estava mais próximo dela. Conforme os dias passavam, enxergava cada vez mais de si mesmo na meio-yokai. Via como ela detestava ficar sozinha. Via toda aquela força empregada em se tornar independente porque não queria atrapalhar ou decepcionar as pessoas que se importavam com ela. E acima de tudo isso, via uma busca certamente desesperada por uma família... E pelo significado dessa palavra.



A chegada de Itsuki havia mudado a todos. Estavam com certeza mais relaxados, e isso significava também um certo descuido. As notas de Hideki caíram - não tão expressivamente - porque quando não estava com a menina, estava pensando nela. Isso normalmente seria motivo para um terremoto de ira de seu pai, mas ele parecia tão distraído quanto, sempre olhando para o céu pensando em si mesmo. Porém, de todos seu avô é quem havia sofrido a mais drástica mudança. Seus olhos voltaram a brilhar e, sem querer, começou a se reaproximar da família novamente.

— Quer dizer que suas notas caíram? - disse o velho senhor Endo, quase que saindo das sombras da cozinha, numa madrugada.

— ...V-vovô? - Hideki deu um salto. Primeiro pela aparição, depois pela informação.
— Acho que não tem tanta importância se for só de um 10 para um 9, certo? - Respondeu com uma risada, e quase sem conseguir controlá-la continuou -Você anda meio distraído com sua prima...Sabe muito bem o que isso significa, não?

— Eu sei exatamente o que isso significa, vovô... - Hideki já não era mais um adolescente, sabia exatamente o que aquilo significava - sabia que provavelmente gostava dela. Mas não esperava ter que conversar sobre isso com o avô, que no momento parecia mais uma menina fofoqueira.

— Sendo assim eu desejo boa sorte... E se quer um conselho, é melhor que seja mais rápido que o outro rapaz. - Com um tom misterioso, o velho e brincalhão senhor Endo se misturou mais uma vez com as sombras, deixando seu neto sozinho.

Hideki passou o resto de seus dias pensando. Sabia que o Natsume Takashi, o amigo e provavelmente responsável por todo o desenvolvimento e interesse da prima pela escola provavelmente sentia algo por Itsuki. Bastava saber se Natsume sabia disso também... Ponderava também se deveria fazer algo, já que não tinha certeza de seus sentimentos. Na verdade, o que o rapaz não tinha certeza era se, apesar deles, gostaria de se dar ao trabalho de lutar por algo.

A falta de ação do mais jovem Endo fez com que sua observação se desenvolvesse mais que tudo. Dado o clima de sua casa, após a morte de seu avô, não ficou surpreso quando seu pai lhe propôs que casasse com ela.

Daichi não havia dito detalhes, como de costume. Talvez seu pai temesse que fosse atrapalhar o plano por alguma razão, mas duvidava que fosse questão de confiança. Daichi, o metódico estava acostumado a dar ordens, simples e puras. A disciplina não precisa de explicações.

Um bom filho soldado não faz perguntas, acata ordens. Mas Hideki não pode deixar de pensar, pelo menos por um segundo, se todo esse plano obviamente egocêntrico de seu pai, que não aparentava ter a menor intenção de buscar sua felicidade - ou sequer sabia o que ele sentia - não era por em jogo a única pessoa viva que parecia se importar com ele.


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