Os Zumbis de Baker Street escrita por Harmonie


Capítulo 3
O que se foi; aquilo que permaneceu.




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Hesitante, Watson deixou sua mão livre pousar na maçaneta fria da porta de madeira escura. Na outra mão, ainda segurava a correspondência que havia recebido mais cedo naquela manhã. Passara as últimas duas horas sentado no sofá dos aposentos que dividia - ou costumava dividir - com Holmes, tentando convencer a si mesmo de que, se esperasse por mais alguns minutos, seu prezado amigo abriria, afobado, a porta de seu quarto, alegando ter resolvido outro de seus grandes mistérios. Entretanto, quanto mais os minutos se passavam, mais difícil ficava se convencer de tal inverossímil, porém agradável, versão da realidade.

Vez ou outra, olhava a sua esquerda e encarava a porta do quarto de Sherlock. Tentava captar, com seus ouvidos destreinados, qualquer ruído, por mais baixo que fosse, que pudesse vir daquele quarto. Mas nada ouviu, apesar do grande esforço. Tudo o que ali havia era silêncio e solidão. Olhou para o papel de carta áspero, já amassado devido à constante manipulação por dedos nervosos, pousado sobre suas calças cáqui. Não o leria novamente - já havia decorado cada palavra ali escrita -, mas não poderia deixá-lo de lado, precisava ter aquele pedaço de papel em mãos para se convencer de que aquela era a realidade que teria de enfrentar.

Com a correspondência em mãos, levantou-se e seguiu em direção ao quarto de seu amigo, decidido. Pretendia abrir de uma vez a porta do quarto e, assim, acabar com a apreensão que lhe enchia o peito, porém, ao tocar a maçaneta gélida com seus dedos trêmulos, já não sabia se estava pronto para encarar o que encontraria - ou não - atrás dela. Então, permaneceu imóvel, esperando, silenciosamente, que a porta fosse aberta pelo outro lado. Mas, mais uma vez, nada aconteceu. "Vamos, Holmes!", pensou. "Vamos!". Watson suspirou. A porta não fora aberta e ele já não tinha alternativa a não ser fazê-lo ele mesmo.

Seus dedos se fecharam ao redor da esfera dourada e, com uma força que lhe pareceu maior do que a que realmente precisou empregar para realizar a tarefa, girou-a.

A porta se abriu com um som característico e, aos poucos, o interior dos aposentos de Sherlock foi revelado: no chão, garrafas vazias refletiam os poucos raios solares que entravam pelas frestas da cortina e era como se emitissem sua própria luz, como se fossem corpos estranhos àquele cômodo; a cama, apesar de desarrumada, não aparentava ter sido utilizada recentemente. Watson permaneceu em silêncio e imóvel por alguns minutos. Sentia-se confuso e vazio; não se lembrava da última vez que havia se sentido daquele mesmo jeito. Havia se afeiçoado a Sherlock, é claro, após tanto tempo, e não negava já ter imaginado, vez ou outra, que, por algum motivo - fosse por alguma experiência malsucedida, ou uma falha (improvável) em seus cálculos relacionados a algum mistério -, Holmes viveria seu dia derradeiro. Entretanto, por mais mórbidos que pudessem ser seus pensamentos e por mais trágica que sua imaginação chegasse ser, nada poderia tê-lo preparado para lidar com a realidade de estar, permanentemente, sem a presença de seu bom amigo. E o que poderia fazer?

Watson deu um passo incerto em direção às garrafas cintilantes e parou. Não estava certo de que deveria continuar ali. Sentia-se invadindo a privacidade de seu companheiro e se perguntava se isso continuava tendo importância mesmo após sua morte. Ainda hesitante, limitou-se a olhar ao redor. A claridade não era muita, mas havia iluminação suficiente para que ele pudesse distinguir os objetos pouco abundantes que faziam parte da decoração, e um deles, que também refletia alguns poucos raios de luz, chamou sua atenção, por nenhum motivo em particular.

O gramofone de Holmes, pousado sobre uma pequena mesa, parecia estar recebendo a luz solar de maneira exclusiva. Brilhava como se esta fosse sua função e, então, Watson se sentiu compelido a chegar mais perto. Aproximou-se, sem tirar os olhos da corneta cor de ouro reluzente e sem se preocupar com a privacidade que, supostamente, estaria violando. Lentamente, ergueu a mão esquerda, colocou a agulha sobre o disco e, em seguida, levou-a até a manivela. Tentou girá-la, mas nada aconteceu. Franziu o cenho, uma de suas sobrancelhas visivelmente arqueada. Tentou novamente. O resultado que obteve foi o mesmo que obtivera anteriormente, assim como sua reação - a não ser, talvez, por um arquear mais acentuado de sobrancelhas que demonstravam seu estranhamento frente a situação em que se encontrava: os pertences de Sherlock não costumavam apresentar falhas.

– Holmes! Há algo errado com... - entretido com o gramofone, Watson havia se esquecido, por um momento, o que o havia levado a estar naquele quarto.

Inspirou profundamente enquanto sua mente se certificava de que tudo aquilo era, sim, a realidade e, poucos segundos depois, apesar de ainda sentir uma sensação desagradável no peito, já estava recomposto.

– Como isso pode estar quebrado? - disse, como se ouvir o som da própria voz o deixasse mais confortável. Examinava o gramofone, sempre atento às marcas de dedos e arranhões que eventualmente poderia deixar, mas que não agradariam Sherlock. Nada parecia fora do comum, entretanto, ao tentar acionar a manivela novamente, nada aconteceu. Watson franziu o cenho e se afastou, não exatamente convencido de que nada havia de errado, mas certo de que, provavelmente, não era algo importante o suficiente.

Em pé, no centro do quarto, em meio às tantas garrafas vazias que haviam chamado sua atenção anteriormente, ele ficou imóvel, apenas olhando ao redor. Tudo era tão estranhamente familiar que se tornava incômodo: todos aqueles sapatos, palitos de fósforo, resíduos diversos e objetos não identificados espalhados sobre o tapete escuro. Era um caos.

Então Watson olhou para a esquerda, atraído por algo que não soube identificar de imediato. Ao lado da cama desarrumada, sob o abajur pousado acima do criado-mudo, havia um pedaço de papel branco do qual estava visível apenas uma pequena parte. Watson não se alarmaria caso se tratasse de outra pessoa, mas, conhecendo Holmes como conhecia, sabia que aquilo era algo para ser encontrado: seu colega saberia como esconder algo que estivesse destinado a permanecer oculto e, apesar da grande quantidade de porcaria que mantinha em seu aposento, sabia se livrar do que não tinha importância alguma. Ele se aproximou, atento aos objetos no chão, e pegou o envelope que tentava se esconder – ou esperava para ser encontrado. Branco com detalhes dourados, o envelope guardava um cartão onde, com as mesmas letras cor de ouro, havia uma mensagem que deixou Watson intrigado:

Harry Montgomery

O convida para a recepção em sua mansão de Baker Street

Sábado, a partir das 19 horas.

Ele permaneceu em silêncio. Outras dúvidas haviam surgido para se juntar àquelas já existentes e, como se já não fosse suficiente, teria que comparecer em um evento formal naquela mesma noite.


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