A Página Virada escrita por Nicole Baioretto


Capítulo 4
Um Grupo Inusitado


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



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— Você está estudando com o Bastião? Fala sério! — Gabi deu uma risada.

— Não tem graça, Gabi. Eu acho que ele me odeia. E eu, não suporto aquele ser humano. — Laís deu uma mordiscada no lanche de presunto. Seus pais ainda não ficaram sabendo da expulsão da biblioteca, mas eles não precisavam saber. Se nada mais acontecer, nunca descobririam.

— Nossa, que inveja. Isso é incrível, garota!

—Por favor, socorro. — Gabi deu um olhar cético para a colega.

— Sério que você não ficou feliz em saber? Nem um pouquinho? — Laís balançou a cabeça.

Nope. Negativo.

— Eu e a Heloísa vamos ter que estudar naquela sala com ele...

— Heloísa também? Caramba! Boa sorte em ter que lidar com aquela garota.

— Essa é a parte mais estranha, Gabi! Ela estava legal ontem.

— Ah, duvido. — Então Laís explicou como ela tinha pedido sua ajuda e depois elas conversaram de algumas coisas e até da piada que fizeram da Gorette.

— Coitada da Gorette... — Ela olhou sério, mas deu uma risada logo em seguida.

— É muito legal saber que vocês estão começando a se dar bem, mas toma cuidado com ela, Laís... Acho que a Heloísa está te usando.

— Hã? Como assim, Gabi?

— Bem, ela sabe que você praticamente respira livro o dia todo. Deve estar te usando para aprender matemática e passar de ano. — Laís ficou chateada. Primeiro discordaram a respeito do Bastião, mas isso ela podia ignorar. Mas, sobre a Heloisa também?

— Não acredito nisso. De repente a menina está mesmo sendo legal e você está desconfiando demais.

— Bem, mas não diga que eu avisei. Você é sempre tão inocente... — Laís não ficou nem um pouco contente em ouvir isso.

— Acho que seu faro anda enferrujado, isso sim. — Gabi deu de ombros e em seguida ouviu o som de mensagem nova no celular. Sacou-o, deu uma lida rápida e fez um bico.

— Que foi?

— É o besta do Pira, como sempre. O idiota disse que esqueci a carteira na sala de artes e que eu deveria ir buscar antes que ele gastasse tudo. Provavelmente pegou enquanto eu estava distraída. — Disse isso se levantando para ir na sala, mas quando Laís foi ir junto ela a impediu.

— Laís, eu odeio ter que pedir isso, mas eu realmente queria muito comprar um chiclete de morango na cantina, mas agora que aquele moleque pegou o meu dinheiro, terei que pedir pra você fazer isso por mim... Por favor?

— Hmm...

Por favorzinho? — fez cara de cão abandonado. — O sinal vai bater em cinco minutos, preciso muito disso.

— Hahaha, você e seu vício de chiclete... Muito bem, eu compro. — Gabi respondeu com um sorriso.

— Oba! Você é uma linda, já volto! — e sumiu enquanto subia as escadas para a sala de aula. Laís estava sozinha no pátio da escola, o que a incomodou bastante, já que era provavelmente a primeira vez em anos que aquilo acontecia, antes da sua amiga Gabi aparecer. Angela e suas amigas sempre tiraram uma da sua cara, de como ela era inocente ou desligada do mundo, mas ela não conseguia se interessar por moda e papos de garoto, por isso achava mais interessante ficar em casa lendo e assistindo animes e séries.

Decidiu ir logo na cantina, mas para sua surpresa, demorou só dois minutos para comprar.

Estava voltando para subir atrás da Gabi quando apareceu Heloísa, Nicole, Isabel e Jolie no caminho. As quatro são um grupo de amigas que sempre estão andando com a Ângela como grupo de apoio ou algo assim, mas por algum motivo, Ângela não estava naquele dia. Mas é inegável que, mesmo sem a abelha rainha, elas chamavam atenção por onde passavam pela maneira de como se destacavam.

Isabel é uma morena de olhos azuis, que apesar das espinhas e de uma barriguinha, é estilosa e tem um charme notável. Nicole é uma ruiva tingida que tem respostas prontas para tudo e uma resistência impressionante a álcool. E Jolie tem uma pele de tom de chocolate, o corpo mais absolutamente perfeito que uma garota poderia ter e uma personalidade animada. Porém é bastante conhecida por partir corações e ter vários garotos atrás dela o tempo todo. E por fim a Heloísa, uma morena de cabelos encaracolados com mechas tingidas, expert em saber de tudo que acontece com os outros e plantar intrigas.

Laís fingiu não vê-la, como sempre, mas quando Heloísa a viu chamou-a na hora, super animada.

— Laís, querida, e aí? — As quatro a cercaram e Laís começou a sentir uma espécie de claustrofobia social.

Ok, calma garota, é só uma conversa. Sendo cercada, como se eu fosse uma presa. GABI SUA SUMIDA, POR QUE VOCÊ TINHA QUE DESAPARECER AGORA? Ok, respira devagar ou elas perceberão... Sorria e acene, sorria e acene...

Por fora, dava um sorriso simpático. Por dentro, queria sair correndo.

— Gente, ela me ajudou tanto ontem, é inteligente pra caramba. Ei, a gente se vê hoje, às 14, hein? Hoje avançamos para a divisão de equações. — Sorriu, deu uma piscadela e se virou para as amigas. Laís sentiu preguiça só de pensar em virar professora de novo. E então se lembrou do que a Gabi tinha falado. — Vocês acreditam que eu vou estudar hoje com o Bastião?

Elas deram uma risada de empolgação e Nicole se virou para Laís.

— Nossa, seu cabelo é lindo, colega... É natural mesmo?

— Sim, nunca pintei nem nada. — Seu cabelo loiro dourado era uma das poucas coisas que amava na sua aparência. Não conseguia entender como alguém como Nicole tinha coragem de descolorir tudo e tingir de ruivo.

— Ele é lindo... — Disse, mas quando seus dedos chegaram à base dos seus cabelos, seu sorriso evaporou. — Ah, não, mas você não vai querer deixá-lo seco assim, não é? Parece palha. Eu hidrataria, não acham?

As outras assentiram.

Quem é ela para criticar meu cabelo loiro? Bem, ele é um pouco ressecado, mas é muito bonito e não preciso de alguém ditando minha aparência.

— Eu cortaria de uma vez por todas esse cabelão todo. — Jolie interviu, com a voz ácida. — Do que adianta, se está ressecado, não? Ficaria bem melhor.

Era uma péssima piada interna. Na sexta série, Ângela colou escondido um pacote inteiro de chicletes no cabelo dela depois de uma discussão feia e teve que cortar mais de dois palmos. O episódio foi comentado na escola toda por meses.

Laís ficou tensa.

O que é isso...? O esquadrão da moda resolveu me atacar?

O clima estava sério. Até que Jolie abriu um sorriso caloroso.

— Eu repicaria tudo e faria uma franja, ficaria lindo. E soltaria ele, você sempre está prendendo ele em rabo de cavalo. — As outras sorriram e Laís ficou aliviada. Faltava pouco pro sinal finalmente tocar e ela podia usar uma desculpa para ir no banheiro e sumir dali. Já não aguentava fingir um sorriso de que estava bem e confiante.

— Eu gostaria de continuar, mas... — Seu sorriso evaporou quando Bastião surgiu atrás da Jolie e das outras garotas. Perdeu as palavras.

— ...Mas? — ele perguntou, dando um sorriso e arqueando as sobrancelhas, com o olhar frio como sempre. As garotas ficaram animadas.

— Bastião, estávamos falando de você... — Heloísa começou.

— E quando não estão? — ele olhou para ela e deu um sorriso convencido, para receber um tapa no ombro como resposta. — Ei, você tem que ter minha permissão para me tocar. Acha que sou barato assim?

— Só quando deixar de ser um convencido... — Ela respondeu sorrindo.

Err, esnobe...

O sinal estava demorando para tocar, então deu uma espiada rápida no celular e viu que na verdade faltava um pouco mais de dez minutos para acabar o intervalo.

O quê?! Eu não sobrevivo tudo isso.

— Eu preciso muito ir agora. Bem, até as duas horas! — Ela cortou, virando de costas e andando apressada para as escadas. Mas antes de olhar em outra direção, viu Jolie olhando para ela com um sorriso maligno no rosto.

Socorro. Jolie me dando uma fria, Bastião com olhar psicopata... Porque quanto mais eu rezo para essas criaturas não aparecerem, mais eles aparecem?! Vou chegar amanhã com um pacote de sal grosso para ver se queima quando toca nelas.

***

Laís apareceu correndo nos corredores da escola que nem uma louca porque esqueceu que havia estudo obrigatório das 14h às 17h, e quando chegou no terceiro andar, ficou assustada com a mudança do lugar. De manhã ele ficava vazio e inóspito, mas naquele horário estava fervilhando de universitários, conversando em todos os cantos e entrando e saindo das salas livremente, sem pedir autorização dos professores.

Todos eles pareciam seres de outro planeta porque tinham permissão para não usar uniforme, muito ao contrário dos estudantes do ensino médio.

Quando ela apareceu no corredor, algumas pessoas pararam de conversar para observá-la. Havia uns caras muito altos, alguns barbudos, com blusas de bandas que nunca viu conversando com moças estilosas, usando colares e roupas diferentes do que via. Se vestiam, conversavam e agiam de maneira diferente das garotas do ensino médio. Pareciam mais peitudas também.

Err, cadê os meus peitos?

Parecia uma criança, baixinha e despeitada no meio daquela gente.

Uau, o pessoal daqui parece ser tão mais livre e solta que o ensino médio.

Sentiu uma pontada de inveja. Não conseguia entender o diretor, que parecia ser rígido com o resto da escola. Passou apressadamente no meio do corredor, ignorando olhares ou comentários, mas tinha tantas salas que ficou ali mais uns minutos até finalmente encontrá-la, no final do corredor.

Socorro, tem muitos humanos por metro quadrado nesse corredor a mais do que minha timidez suporta. Vou ter claustrofobia social de novo, err... Será que vou ter que passar por toda essa gente todo dia... Por três semanas?

Quando entrou na salinha, encontrou Heloísa sentada na ponta da mesa com alguma revista feminina e Bastião completamente entediado no computador jogando cartas. O almoxarifado era uma sala pequena, entulhada de livros, com cheiro de papel velho e nenhuma janela.

Heloísa ergueu o olhar quando ela se sentou na mesa.

— E aí, pronta para outro dia de estudo? Você chegou atrasada, mas não tem ninguém aqui até agora. — E continuou, diminuindo o volume. — Viu que lá fora tá cheio de caras gatos no corredor?

Ela parecia completamente perdida com a ideia de ir beijar alguns deles.

— Ah... Claro. — Laís respondeu, sem graça e desviando o olhar. Quis desviar de assunto. — O que você está lendo?

Heloísa olhou para ela, provavelmente sacando como Laís devia ser tímida e fechada com tudo, então começou a falar enquanto folheava a revista de qualquer jeito.

— Ah, é algo bobo para passar o tempo. Estava te esperando enquanto lia algumas coisas. — Quando viu que Laís espiava com curiosidade, ofereceu a revista. — Quer ler?

— ...Claro, se você não liga... — E ela abriu um sorriso do tipo ela-mordeu-a-isca e entregou a revista que tinha uma foto de reportagem de duas páginas.

O que é isso? “Dez maneiras de apimentar com o gato na cama”...? MAS QUE IMAGENS SÃO ESSAS?

Era apenas umas ilustrações toscas de bonecos fazendo posições... embaraçosas. Laís ficou vermelha em tempo recorde e entregou a revista de volta, enquanto Heloísa dava risada.

— Hahaha, você está vermelha como um tomate! Diz aí, Laís... Qual foi a última vez que você ficou com alguém? — perguntou com um sorriso maligno.

— Eu não vou responder isso do lado do Bastião! — Ele continuava ignorando as duas. Ou fingindo estar.

— Oh, por favor, Bastião já fez quase tudo desse guia. — Ela respondeu, fechando a revista e revelando a capa com um modelo sem blusa. Olhou para ela e abriu um sorriso malicioso. — Ou vai me dizer que... Você nunca beijou?

— Eu, err... — Nessa hora, ele olhou para ela. Seus olhos tinham um misto de curiosidade... E maldade.

— Caramba, você nunca beijou? — ela ficou vermelha.

— É claro que eu já beijei. Só que não é frequente, só isso. — Mentiu da melhor maneira que tentou. Heloísa olhou, incerta se estava diante de uma mentira ou não. Bastião estreitou o olhar.

Há, ainda tenho meu talento de mentir muito bem.

— Você mente muito mal. — Ele disse, cortando seus pensamentos. Laís olhou assustada.

— Claro que não, eu não mentiria. Quem é você para me conhecer melhor que eu? — Ele pareceu irritado com a última resposta.

— Oh, por favor, tudo em você é inocente. Nunca deve ter tocado num ser humano do sexo oposto. — Ele a observou de cima para baixo. — Qual foi a última vez que se vestiu como uma garota?

OH SEU MALDITO...

— Ela me parece bastante feminina. — Surgiu uma voz atrás da Laís e ela se virou, assustada. Era Higor, na porta da sala, com uma cara de reprovação e uma pilha de papéis debaixo do braço. Quando seu olhar se encontrou com o dela, deu um meio sorriso.

...É possível ficar mais vermelha que agora?

Estava imensuravelmente desconfortável, mas no fundo sentiu seu coração bater mais rápido. Desviou o olhar, ignorando o elogio.

— O que você está fazendo aqui? — Heloísa perguntou, com um livro aberto na sua frente.

Quando foi que ela trocou a revista pelo livro?!

Higor fez uma cara de frustração.

— Eu sou o monitor de salas, esqueceram? — depois um silêncio coletivo embaraçoso, do tipo “sim, Higor, ninguém deve se lembrar que este cargo sequer existe”, ele continuou — sou eu que vou inspecionar vocês. Para saber se estão estudando de verdade ou jogando no computador.

Terminou a última frase se virando para o Gabriel, que já tinha substituído a tela do computador por algum site de “Comportamento de Ondas na Física” e o encarava de volta.

— Você chegou bastante atrasado para um monitor de salas. — Isso obviamente foi para alfinetá-lo, que respondeu prontamente.

— Não tive escolha. Tive que resolver uma discussão idiota dos universitários. — Por fim percorreu seu olhar até Laís. — E você? Cadê seu livro?

— Ah, isso...

— Temos prova surpresa de matemática, não se esqueça. Fique esperta. — Disse, dando-me uma piscadela. Ele sozinho conseguia desconcertá-la tanto quanto os outros dois.

Ei, eu sei disso! São esses dois que estão me atrapalhando, err...

Mas quando parou para ver, parecia que só ela estava sendo vagal quando ele entrou na sala.

...Droga.

Abriu seu material em cima da mesa e a lista de exercícios que tinha selecionado para estudar. Mas quando estava prestes a pegar na caneta, Heloísa debruçou sobre seu caderno.

— Laaaaaís! Esqueceu que você ia me ajudar? — fez um bico. Laís suspirou, e sem escolha, começou a ensiná-la de onde tinham parado, que era muito atrás da matéria. No fundo do seu cérebro, uma vozinha cantava:

Quem vai repetir? Batam palmas!

E uma outra respondia, com uma pontinha de desespero:

Yay, nós duas!

Higor ficava lendo uns papéis que provavelmente eram papelada, enquanto Bastião continuava lendo os artigos de física, ou pelo menos fingindo ler.

— Ei, você não vai estudar matemática?

— Eu não preciso disso. — Soltou um suspiro. — Que saco, eu não preciso estudar para esta merda.

— Não chore quando repetir de ano. Não sei como era sua antiga escola, mas essa daqui é para valer. — Ele encostou na cadeira, encarando Bastião de maneira reprovadora.

— Não preciso da sua encheção de saco. Que tal se você parar de dar uma de mãe e cuidar da sua vida?

Uô, toma essa! Pera, estou me desconcentrando um pouco aqui. Err...

— Laís? Alô? Acabei de fazer uma pergunta. — Heloísa cutucou ela com a ponta da lapiseira.

— Ai! Foi mal, viajei agora. — Higor e Bastião olharam para ela ao mesmo tempo. Ela desviou a cara. — Vão estudar, vocês dois.

— Não. — Bastião respondeu. Ela apenas o encarava furiosamente, que levantou uma sobrancelha como se dissesse “E aí, algum problema?”.

Parabéns, cara, pelo dèjá vu ensaiado. Quer um trófeu?

Higor espiou no livro das duas e soltou um suspiro audível, do tipo “isso nunca vai dar certo”.

— Heloísa, como você conseguiu ficar tão para trás?

— Eu tenho dificuldade com isso, não é minha culpa.

É sim.

Laís respondeu mentalmente, mas não tinha coragem de falar. Higor olhou impaciente para ela, mas disse em seguida:

— Eu vou te ajudar com a matéria. Deixe a Laís estudar a parte dela. — Quando disse a última parte, o olhar da Heloísa até brilhou.

— Uhu, ok! Então me ajude nisso. — E apontou para um dos exercícios. Laís nem acreditava na própria sorte.

— Valeu, cara!

— “Cara”? Hahaha, você parece um mano falando assim.

— Ah, foi mal, err...

— Não, tudo bem, pode me chamar do jeito que quiser. Eu deixo. — Ele disse com um sorriso. Ela fingiu que não viu, encarando a parede para não ter que olhar cara a cara.

— Opa, alguém tá gostando de alguém aqui! — Heloísa disse empolgada, mas Laís arremessou uma bolinha de papel na cabeça dela na hora que disse isso. Bastião abafou uma risada.

— Não ria de mim!

— Vai estudar, Heloísa.

Então passaram o resto do período estudando enquanto Bastião simplesmente colocou os fones de ouvido no último volume e sacou o celular do bolso para ficar jogando.

Quando finalmente era 17h, Heloísa estava derrotada em cima da mesa. Todos pareciam bastante cansados.

— Não sabia que você era bom em matemática. — Ela comentou.

— Bem, eu quase fui o monitor de matemática, mas o coordenador me ofereceu uma vaga de monitor de salas. — Respondeu com uma pontada de orgulho. As duas olharam surpresas para ele.

— VOCÊ É LOUCO? — Laís disse do nada. — Os monitores ganham dinheiro por isso! Porque você quis algo tão...

— Porque eu posso. — Ele cortou. — Por mais que eu goste de matemática, ser o monitor de salas me é mais conveniente.

— Você é pelo menos pago por isso? — Bastião perguntou.

— Sou, embora o salário seja menor que o valor mínimo.

— Mas não é lei? — Laís perguntou.

— O pagamento é feito de uma maneira informal.

É bastante comum as escolas empregarem os monitores de maneira informal, que costuma ser só metade do salário mínimo, mas na Cheval D’Or isso não acontecia com frequência. Nas leis de Poranta, menores de 19 podem apenas trabalhar se fosse em instituições de ensino ou com afazeres domésticos, como monitor ou faxineiro. No caso deles, ser monitor implicava receber bastante dinheiro mas tinha um processo de seleção acirrado. E até aquele ano, “Monitor de Salas” era um cargo inexistente e adicionado de última hora.

— Que bobeira, Higor. — Heloísa comentou. Ele deu de ombros.

— Então você não passa de um substituto de Inspetor de Salas, só que bem mais mal pago. — Bastião disse.

— Continuo recebendo bem mais dinheiro que você. — Ele retrucou.

Poxa, quem me dera ser monitora... Eu seria de artes, e encorajaria o concurso de talentos com a oficina de dança...

E então se lembrou de como seu currículo nem tinha sido selecionado na primeira fase porque suas notas não eram altas.

Err, ser monitora não é só ter notas boas!

— Eu vou virar monitor. — Bastião retrucou. Todos olharam surpresos.

— Mas hein...? — Laís estava entendendo nada.

— Já acabou o período de seleção dos monitores! — Higor respondeu.

— Sim, mas a monitora de Artes foi destituída, não foi? — ele respondeu com um sorriso maldoso. A pouco dias atrás, a ex-monitora foi pega na sala de Artes sozinha com o namorado dela durante o intervalo. — Vão abrir o processo de seleção novamente. Vou pegar a vaga dela.

Sem chance! O nariz de napa pegando minha vaga?

— Você nem gosta de arte! — ela protestou.

— Quem disse? — ele respondeu presunçosamente. — Te vejo na fila da entrevista de emprego. Se conseguir chegar lá.

— Como você sabia?!

— O quê? Você acha que ninguém nota sua cara quando falam da vaga em artes? Cuidado com a baba.

— Você é um babac... — Mas ele já tinha ido embora.

Seu grosseiro!

— Vou embora, também. Até! — Higor se despediu, saindo da sala com uma pilha de papéis. Provavelmente ainda tinha mais coisas para fazer.

— Angela sabe dessas coisas, deve ter contado para ele que abriu a nova vaga. — Heloísa disse. — Você vai tentar de novo?

— ... — Sabia que, se dissesse algo, Heloísa deixaria o resto da sala sabendo.

— Olha a sua cara! É claro que vai. — Olhou ela dos pés à cabeça. — Mas não vai conseguir vestida desse jeito. Me deixa te vestir para sua entrevista de emprego?

— Você nem sabe se eu vou chegar lá! E eu quero me vestir como eu quiser.

— Só estou adiantando um pedido. E não estou criticando seu estilo, só estou dizendo que você podia ser mais... Aplicada, só isso.

— Haha, se por milagre eu chegar lá, eu deixo.

— Então você vai tentar!

— Ih, droga. — Apesar da sua preocupação, Heloísa soltou uma risada.

— Eu vou embora em vinte minutos, mas vou tomar um refri na cantina. Quer ir comigo? — ela olhou para a Heloísa como se ela fosse uma alienígena. — Que foi? Só estou chamando para ir junto, só isso.

— Hm, ok.

O que ela quer?

***

Já fazia um tempo que as duas estavam sentadas no banco da cantina e Laís continuava sondando a Heloísa para desvendar alguma intenção oculta, mas ela parecia mesmo a fim de ficar apenas tomando um refri, o que era assustador.

Quem é você?E o que fez com a Heloísa?

Laís apenas encarava o pátio vazio com cara de paisagem.

— Laís, precisamos conversar. — Disse do nada. — E é sobre o Higor.

— O quê que tem ele?

— Ele está a fim de você. — Ela simplesmente respondeu e piscou pra ela.

Ele podia estar só sendo legal naquela hora. Ok, talvez ele estivesse flertando um pouco.

— ...Quê? — ela só conseguiu responder, tendo uma diarreia mental ou algo assim.

— Ele quer te chamar para ir com ele na festa de aniversário da Angela, em setembro.

— Mas eu nem fui convidada!

— ... Até agora. — Ela olhou de lado. Sacando do bolso, tirou um envelope branco selado por uma fita de cetim azul, com “Laís” escrito em letras estilizadas. — E vai comigo e as meninas.

— Eu não sei se vou... — Sair com Angela?

— Não se preocupe. É a minha maneira de agradecer pela sua ajuda e força que tem me dado, você é um amor. Você tem que me ajudar a ficarmos quites. — Em seguida, abriu um sorriso malicioso pela segunda vez naquele dia. — Aliás, fiquei sabendo que ele estava doido para conversar com você sobre o que vocês fizeram dois anos atrás. Garota, o que vocês fizeram?!

Heloísa soltou uns gritinhos de empolgação enquanto Laís congelava totalmente e ficava quase tão sem graça quanto ficou ao ler a reportagem.

Oh, santo pai, será que ele quer falar...

— Estou morta de curiosidade! Do o quê ele falou?

— Faço a menor ideia! — mentiu, ruborizando.

— Laís... Vocês se beijaram?

— Não! É sério. — Olhou cara a cara por uns segundos tensos, até que finalmente Heloísa desistiu.

— Caramba, menina! Você consegue ser enigmática demais às vezes. — Ela respirou fundo, estava nervosa.

— Não fuja do Higor, Laís... Menina, aqueles lábios...! — Disse, revirando os olhos.

— Pare. Com. Isso! — Falou, vermelha da cabeça aos pés. Heloísa dava risada.

Pelo canto do olho, percebeu que tinha um homem sentado nas mesas ao longe enquanto lia uma revista e tomava um café, o que era incomum de se ver já que era um adulto. Ele era alto, negro, se vestia como um jovem mas parecia ter pelo menos trinta anos. E discretamente espiava na direção das duas.

...?

Ele se levantou e começou a andar na direção delas.

Mas será que...

O celular da Heloísa tocou.

— Ah, já estou indo. Laís, querida, te vejo amanhã!

— Err... Não quer que eu vá junto?

— Preciso chegar lá rápido já que meu pai já está atrasado para a reunião dele, então não precisa me acompanhar. — Ela deu um beijo rápido de despedida e se levantou correndo até a saída da escola.

Acho que vou indo embora também.

Sai andando, mas o homem aproximou-se dela antes. Ele era alto, sério e tinha um estilo que lembrava um pouco o hip hop. Ele podia ter saído de um clipe de rap, só que não vestia as joias nem carregava bebida.

— Você é a Laís? — Sua voz saía arrastada, como se estivesse cansado, e era o tipo que combinaria perfeitamente com um cigarro e uma garrafa de cachaça.

— Err, não, meu nome é Roberta. — Disse de última hora. Para a sua surpresa, o homem suspirou e rolou os olhos.

— Ah, que entediante. — Olhou ela de cima a baixo. — E nem sabe mentir.

Ela olhou surpresa.

Estou mentindo tão mal assim?

— Licença, mas nos conhecemos? Vi você espiando nós duas... — Ele deu uma risada.

— Escuta, criança, não vim aqui para aturar briguinha infantil de colegial. Te confundi com outra pessoa, só isso. — Começou a dar meia volta.

O quê? — Ela não entendia mais nada. Briga de colegial? Para aumentar a quantidade de dúvidas, ele se virou como se estivesse furioso com ela, mas depois amenizou a expressão.

— Você acha que sabe mentir alguma coisa, mas não sabe nem enxergar o que está a um palmo da sua distância. — Dito isso, apontou para o lado com os dois dedos e ela viu um homem desconhecido andando pelo pátio com um casacão cinza. Quando se virou para ele, já estava andando.

— Ei!

— Me deixa quieto, menina!

Laís não conseguia entender absolutamente nada. Um estranho veio do nada, deu uma de cigana-que-lê-futuro e agora estava indo embora.

— Mas qual é o seu...

— Cornélio! — Uma voz de uma garotinha surgiu do nada e espantou os dois. Uma pequena criança, morena, de olhos azuis e um vestido imundo encarava o homem com a expressão séria e braços cruzados. — Aonde você estava o dia todo? O Lou está te esperando.

A garotinha olhou de relance para Laís e encarou Cornélio como se o censurasse.

— Eu sei, querida, eu apenas queria ver se estava tudo indo bem aqui. — Sua voz saiu estranhamente doce, como se ele fosse o pai da menina ou algo assim.

— Você está atrapalhando. Vamos embora. — Ele deu as mãos com ela e ambos começaram a ir embora, deixando Laís sozinha no pátio.

Mas o quê... O quê... Eu não tenho palavras nem para expressar minhas dúvidas.

Viu os dois se distanciando mas também tinha a opção de ir atrás do homem que o Cornélio apontou, porque ele estava andando também.

Socorro, qual dos dois eu sigo? Calma, Laís, a situação exige raciocínio lógico. Minha-mãe-escolheu-este-daqui... Ah, o homem tá sumindo de vista! Err, vou atrás dele.

E correu atrás do homem de cinza.

***

Fazia quase meia hora que estava lá, se espremendo atrás de uma pilastra para ver o que é que tinha de tão impressionante no homem de cinza, mas ela estava começando a se arrepender. Tudo que ele fazia era trocar mensagens de texto.

Quando ela se virou para ir embora deu um susto ao ver Jolie surgindo na outra direção. Ela se escondeu rapidamente e por sorte não foi vista.

— Você está atrasada. — O homem de casacão cinza disse, obviamente irritado com a demora dela.

— Você não queria um lugar pior para a gente se encontrar, Marcos? — Ela falou com desprezo.

— Não. — Respondeu sarcasticamente. — Eu fico muito satisfeito com a escolha do lugar, Senhorita Jolie.

Laís não se atrevia a tentar espionar, mas o que ouviu a seguir foi apenas um silêncio misterioso. Ela estava se matando para não espionar, mas ainda assim decidiu ficar quieta e parada até eles sumirem, até que... Começou a ouvir som de beijos. Ela estava de queixo caído. Cuidadosamente, sacou o celular e finalmente esticou o pescoço para fora da pilastra.

O que viu foi o homem de quarenta e poucos anos beijando Jolie de maneira meio forçada, e antes que pudesse pensar em algo, filmou por alguns segundos voltou a se esconder.

Não, pera. O que eu estou fazendo? Isso pode acabar com a Jolie.

Seu coração batia a mil, suava frio e não sabia se interrompia o beijo ou saía dali. Por bom senso, continuou escondida até eles saírem lado a lado. Observou eles indo embora calmamente. Poderiam ser confundidos como pai e filha.

Esperou mais dez minutos até sair correndo, mas quando saía do pátio deu de encontrão com o Higor e derrubou a pilha de fichas dele.

— Oh meu deus, Higor!

— Laís! — ele deu um sorriso, mas notou sua expressão assustada. — Você está bem?

— Não! — ela respondeu, mas não sabia o que ia dizer. — Me deixe recolher seus papéis.

Ela se agachou e começou a juntar as folhas enquanto ele olhava perplexo para ela. Ela queria que ele a ignorasse, mas ele se abaixou e colocou as mãos nos seus ombros.

— Você pode contar para mim, relaxa, eu sei guardar segredos. — Mas ela continuava encarando o chão. — É alguma das garotas?

— Não! — ela respondeu, enquanto bolava em alguma mentira.

— Você precisa contar o que tá rolando. — Ele começou a pressioná-la, mas ela começou a sentir uma familiar sensação de torpor e tudo começou a querer apagar de novo. Ele reconheceu que algo errado estava acontecendo e passou a mão por trás das suas costas.

Ela queria dizer que estava se sentindo bem, mas desmaiou antes que qualquer palavra saísse da sua boca.


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Notas finais do capítulo

O próximo já foi escrito e está sendo betado, então não vai demorar muito ^-^

Sei que a introdução ficou gigaante, mas o próximo capítulo finalmente será uma explicação e início da história de verdade (eu sei, devo ter escrito mais de quarenta páginas hahah)



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