Nova Terra escrita por Raposa das Bibliotecas


Capítulo 4
Malmer




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À tarde chuvosa do Sul às vezes é entediante e combinadas com uma troca de roupas pioram cada vez mais. As persianas do quarto de Malmer estão fechadas, as lamparinas acesas e o alfaiate medindo a circunferência da cintura do Príncipe.

–Alguma preferência pelo tecido, meu Príncipe?

–Seda, vermelha.

–Irei trazer.

O alfaiate correu para fora do quarto deixando o Príncipe e a mãe no quarto.

–Você gosta dela?

–De quem?

–Da filha do Leste. Da Qimin. Que nome ridículo, ela é uma menina muito fresca, você viu a cara que fez quando disse que está comprometido?

–Não fale mal dela, mãe. Ela é uma garota legal.

–Mas um Príncipe não pode ficar se divertindo o tempo todo com meretrizes ricas.

–Não existem meretrizes ricas.

–Ela é uma. –Sua mãe sorriu. –Você sabe que só quero o melhor para você, não é?

–E por que ela não seria? Ela é bonita, inteligente, já aflorou. Ela poderia me dar belos filhos, filhos estes que manteria o trono na nossa família.

–Assim como os filhos com a garota mais ao Sul poderia te dar. Você merece o melhor- disse ela ajeitando a manga longa da camiseta branca, uma camiseta surrada, bem velha, mas que Malmer adora. Ganhou de sua avó no décimo terceiro dia de seu nascimento.

–Eu a beijei.

–Eu sei.

–Eu a beijei de novo. Na torre do castelo, perto das gárgulas.

–Como eu havia dito: eu sei.

–Como? Não contei a ninguém.

–Meu querido, já chegou o momento de você ter em mente que, nem tudo pode ser escondido de uma Rainha e que ainda existem empregados a meu favor.

–Você anda me espionando?

–Desde que essa meretriz do Leste chegou, é melhor manter cuidado.

–Ela é uma SULISTA- a última palavra saiu gritada.

–Eu sei, eu também sou e nem por isso mantenho total confiança em todos por aqui.

–Desconfiaria de mim, mamãe?

–Sim e não.

–“Sim e não.”- Ele repetiu.

A porta se abriu, revelando o alfaiate com um monte de tecidos vermelhos sobre os braços. Ele colocou-os sobre um banco e começou a colocar um após o outro sobre o ombro do Príncipe para que este escolhesse.

–Quando vamos para o Norte?- Ele perguntou.

–Assim que suas vestes ficarem prontas. Ah, meu bom servo, gostaria que estampasse um grifo nas costas. Ficaria fabuloso- ela bateu palmas, entusiasmada.

–Para que isso, mãe?

–É uma viajem de reconciliação. Acha mesmo que devemos entrar estampando nossas rosas negras pela cidade do Rei do Norte?

A luz da lamparina crepitou e à tarde entediante passou lentamente. Assim que as provas de roupas terminaram, Malmer sentou-se junto com a mãe. Está o fez deitar em seu colo, passando as mãos em seus cabelos lisos e perfeitamente negros como carvão, como a rosa do Sul. Malmer gosta da mãe, gosta tanto que deixaria seu pai por ela. Ele nunca gostou de seu pai, um homem gordo, não bêbado. Tá, ele bebe de vez em quando, mas não era o tipo de homem que se vangloriasse. Nunca venceu uma batalha, é um porco medroso, sempre que ouvia um bater de espadas, corria para a sala do trono e se escondia entre as pilastras que jamais o protegeriam.

–Mãe?

–Sim meu querido.

Ele ficou em silêncio por um momento, pensando se era vantajoso falar naquele momento, mas falou por fim.

–Quando a morte chega a um Rei?

–Os deuses são muito bons com os Reis e maus com os camponeses. Os anos que dá aos Reis são tirados dos camponeses.

–Não entendi.

–A cada um camponês entre a morte por conta do Rei através da fome, da pobreza, um ano de vida é entregue ao Rei em recompensa. A cada dia morre três camponeses por fome e por feridas nas ruas de nossa cidade.

–Três anos por dia ao meu pai.

–Exatamente.

Malmer não queria a morte de seu pai, mas queria ser Rei o mais rápido possível, ele seria muito bom ao povo e não ajudaria a morte, dando-lhe três camponeses por dia.

–Acha que serei um bom Rei?

–O que você faria se ainda estivermos de guerra com o Norte?

–Tentaria conciliar novamente. Bom, é óbvio que temos ligações políticas e tentaria usar isso para obter uma aliança.

–E se o Norte se negar a conciliar?

–Cortaria as ligações políticas.

–E você sabe que o Norte e o Oriente tem uma ligação política muito mais forte. Se você o fizer, com certeza o Norte faria com que o Oriente cortasse essas relações e com isso uma desvantagem. Mais pobreza para o Sul. Como acha que mantemos nossos exércitos? Você sabe que não fabricamos armas, o Norte sim. Compramos deles, claro, isso é ruim para nós, gastar tanto dinheiro em armamento, mas ajudaria em uma guerra.

–Entendo. Ainda há muito que pensar. O que o papai disse, sobre Dragões, é verdade?

–Não sei. Ninguém sabe. Agora durma meu querido. É hora de sonhar, assim que acordar, iremos para a Longa Caminhada rumo ao Norte e que os deuses nos protejam.

A casa rolante da família real do Sul faz um barulho tão alto quanto uma mulher no parto. Alguns dos cavalos se assustaram nos dois primeiros dias, mas aos poucos se acostumaram com o barulho ensurdecedor. A viagem de fato não tem sido nada fácil para a família real, lama, chuva, homens bêbados, alguns ladrões no meio do caminho (que não roubarão mais, já que sem as mãos fica difícil) e animais selvagens: cobras, cães do mato e até ursos têm ameaçado a viagem. Mais de três mil Soldados das Rosas estão com eles, escoltando. Claro, isso não ajudará muito quando chegarem ao Norte e lá, o Rei resolver atacá-los.

Malmer não está muito preocupado com isso, durante os dois dias de viagem ele não tirou os olhos da Filha do Leste, que foi obrigada a ir com eles. Aos poucos a casa rolante foi parando. Não estava chovendo, os tecidos que cobrem cada canto aquecia cada vez mais a casa de madeira. Não é bem uma casa, claro. É puxado por quatro cavalos, imagine uma caixa, não muito grande e nem muito pequena, mas confortável e com rodas. A Filha do Leste preferiu andar a cavalo, mas logo, logo ela se renderia.

–O que está acontecendo?- A Rainha perguntou a um guarda.

–Chegamos a Cripta Azul minha Senhora.

A Rainha bufou de insatisfação e voltou para dentro da casa rolante. Por ela eles sairiam dali e chegaria o mais rápido possível no Norte.

–Vou ver o que é. –Disse o Príncipe Malmer saltando na terra fofa e ainda lamacenta.

Malmer caminhou lentamente por sobre as pedras de uma estranha coloração azul. Elas não eram lisas, eram lascadas de alguma forma esquisita e começavam a se erguer, formando um cone em espiral. No ponto mais alto do conjunto de pedras se via uma rosa preta. Não era de pedra, era de verdade. Malmer não sabia como ela tinha chegado ali e nem como tinha brotado.

–É uma arte dos deuses, não acha?-Disse sua mãe.

–Cadê papai?

–Está lá dentro, visitando seus antigos pais, avós, irmãos, todos mortos que apodreceram lentamente e federam por mais de meio século. –Ela riu.

–Devia ter mais respeito para com os mortos.

–O que eles podem me fazer? Nada. Sabe por quê?

O menino balançou a cabeça em negativa. Sua mãe se agachou, olhando nos olhos do filho e falou em um sussurro frio:

–Porque estão mortos. Não tenha medo dos mortos, meu filho. Tenha medo dos vivos e principalmente dos sedentos por poder.

Ela se levantou e caminhou. Um rastro vermelho, suas sedas sempre eram vermelhas e indo para o Norte, era a cor certa a se usar. Malmer começou a caminhar rumo à cripta. Era grande, muito maior do que de longe, a campina verde, quase amarela dava um charme ao local. As árvores pareciam longe o suficiente para nunca brotarem ali. Ainda se via tocos, com certeza foram cortadas para não avançarem e não cresceram mais. Atrás da cripta, há uns dez metros, um pequeno riacho corre rapidamente, fazendo um barulho quase mudo.

Malmer continuou andando e conseguiu distinguir dois guardas de armaduras negras na porta da mesma com lanças nas mãos. Aos poucos conseguia distinguir alguns pequenos animais: um gato, um guaxinim e uma lontra, todos azuis em volta da cripta, como se a guarnecessem.

–Não pode entrar meu Príncipe. Ordens do Rei- disse um dos guardas, impedindo a entrada do mesmo com as lanças cruzadas.

–Por quê?

Os dois não responderam. O menino continuou andando e os guardas não o impediu de entrar, somente o avisaram:

–Não se pode entrar em uma cripta sem a benção de um sacerdote.

–Eu a tive quando nasci.

Tudo estava escuro. Não tinha tochas flamejantes ou alguma janela no qual a luz pudesse se esgueirar. As paredes que as mãos do Príncipe acariciavam eram frias, tão frias quanto gelo, de um frio cortante e a mão do menino começou a sangrar.

–Pai?

Pai? A voz soou em sua cabeça
Onde está seu pai menino? Está sozinho? Venha conosco?

Malmer não sabia de onde a voz vinha. Ela ecoava em sua mente e agitava seus pelos dos braços, mostrando o quão acovardado ele estava.

Venha ver... De repente Malmer caiu e quando se levantou, estava em uma floresta fria. Seus dedos tocaram a terra gelada e ele viu uma pessoa encapuzada. Malmer começou a correr, não sabia o porquê, simplesmente correu.

As árvores tentavam impedi-lo com seus galhos secos que se prendiam a suas roupas, uma das raízes foi à causa de seu tropeço e ele começou a descer a ladeira, como uma bola, rolando. Quando parou de cair, tateou sua costela esquerda, debaixo para cima, sentindo a dor nauseante, então, um galho se quebrou e o garoto já não conseguia andar. A dor era muita, e se escondeu atrás de um arbusto. Os passos começaram a ser mais audíveis à medida que algo se aproximava.

–Garoto- disse uma voz quase indistinguível-, venha cá, não vou te machucar.

De alguma forma, ele sentia que era o fim e teve a certeza quando uma massa escura apareceu e o levantou, cravando alguma espécie de faca, gélida como nunca tinha sentido antes em sua barriga e brincou, fazendo algum tipo de movimento. Enquanto ainda tinha o sentido da visão ativo, viu a lâmina maldita cortar sua garganta e ele sentiu-se engasgar com o próprio sangue.

Malmer acordou com um pulo quando o Mestre passou um unguento que ardeu até sua alma.

–O que está fazendo?- Perguntou vociferado o pequeno Príncipe ao Mestre.

–Você caiu. Machucou-se todo.

Sua mãe estava ali. Olhando para o filho ensanguentado. Malmer deixou sua cabeça cair sobre o travesseiro e ficou com medo de dormir de novo, não queria ter aquele sonho, mas ele o perseguiu durante toda a viagem.


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Notas finais do capítulo

Olá, espero que tenham gostado e não deixem de comentar.