Coração Valente escrita por Eu-Pamy


Capítulo 8
Capítulo 7


Notas iniciais do capítulo

Vocês são os melhores leitores do mundo, quero que estejam cientes disso. Esse não será um adeus, ok? Logo nos veremos novamente. Enquanto isso, fiquem com mais um capítulo e um grande abraço!
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Infelizmente, eu não encontrei o capítulo betado. Espero que dê para entender.
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E para quem quiser ouvir a música do começo, aqui está: https://www.youtube.com/watch?v=FnHgKkx-cb8



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CAPÍTULO 7

Antigamente quando eu me excedia

Ou fazia alguma coisa errada

Naturalmente minha mãe dizia

"Ele é uma criança, não entende nada"

Por dentro eu ria satisfeito e mudo

Eu era um homem e entendia tudo.

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Hoje só, com meus problemas

Rezo muito, mas eu não me iludo

Sempre me dizem quando fico sério

"Ele é um homem e entende tudo"

Por dentro com a alma atarantada

Sou uma criança, não entendo nada

Música: Sou Uma Criança, Não Entendo Nada – Erasmo Carlos.

*.*.*.*

O domingo amanheceu calmo e ensolarado, como havia dito a moça da previsão do tempo no dia anterior. As ruas estavam desertas — ainda que já passasse das onze horas —, os comércios fechados e o rádio não tocava nada de bom.

Artur estacionou no meio fio, tirou o cinto e saiu do carro. Foi para a calçada, caminhou até o portão e o abriu com a cópia da chave que recebera há alguns meses, para usar em caso de emergência. Tudo bem que aquela não era uma emergência, mas certamente ninguém se importaria.

Foi caminhando pelo pequeno quintal e seguiu para a porta. Abriu-a, dizendo:

— Oh da casa! — Fechou a porta e seguiu para os quartos. — Vamos acordar, moçada!

Encontrou a mãe parada no corredor, os cabelos molhados, segurando uma toalha de banho. Cheirava a perfume e sorriu quando avistou o filho.

Cintia era uma mulher de quase quarenta e cinco anos, de altura mediana, um pouco acima do peso, de pele morena e cabelos castanhos,

como a cor dos olhos. Possuía um olhar misterioso, triste e ao mesmo tempo sonhador, fruto das experiências que coleciona pela vida.

— Menino, que barulheira é essa? Vai acordar os vizinhos! — repreendeu, mesmo que a fisionomia estivesse tranquila.

Artur se aproximou sorrindo, abraçando-a com força, tirando-a alguns centímetros do chão, recebendo alguns resmungos de reprovação.

— Também é bom vê-la mãe. — Se separou. — Está preocupada com os vizinhos? Mas já são mais de onze horas, daqui a pouco é meio-dia! Esses preguiçosos ainda estão dormindo? Não acredito! Então grito mais alto que é para acordar mesmo! — falou a última parte mais alto, provocando a matriarca. — De certo lhes faço um favor. A essas horas, o povo na roça já está trabalhando faz tempo, e esses preguiçosos estão dormindo! O mundo está perdido. Se eu soubesse, teria passado de carro buzinando na frente da casa deles para acorda-los — brincava, extremamente bem-humorado.

Cintia riu, dando um tapinha fraco no ombro do único filho homem, que era bem mais alto que ela

— Faz isso mesmo, o senhor Souza está louco para encontrar um motivo para nos despejar, você estará dando um presente de setenta anos antecipado para o velho. Além de conseguir de uma vez por todas ganhar a antipatia desses vizinhos falsos e interesseiros... Que não me escutem, pelo amor de Deus! Essa corja tem ouvidos de águia!

— Normalmente as pessoas dizem: “olhos de águia”, nunca ouvi ninguém falando “ouvidos de águia”. Nem sabia que elas ouviam bem. — Artur achou graça.

Cintia deu de ombros.

— Devem ouvir. Esse bicho é incrível. — Fitou o primogênito por um longo momento. — Mas certamente você não se desembestou até aqui para me escutar falando de animais, não é? — Segurou o rosto do filho e deu três tapinhas afetuosos em sua bochecha. — Anda, têm bolo de fubá em cima da mesa — disse e deu-lhe as costas, entrando no quarto.

Artur alargou o sorriso. Como era bom estar em casa. Afinal, casa, para ele, é onde estão as pessoas que você ama.

Mas antes de ir para a cozinha, seguiu para o seu antigo quarto, onde agora é ocupado pela irmã mais nova. A porta estava encostada. Abriu com cuidado, sem fazer barulho, espiou para dentro do cômodo, vendo a irmã ainda deitada na cama.

— Não creio — murmurou, sorrindo maroto. Adentrou o pequeno cômodo cor-de-rosa. — Que bonito! Que bonito, Rafaela! Dormindo até às três da tarde! — exagerou, se aproximando mais, até ser capaz de ver seu lindo rostinho. A pequena Rafaela estava toda coberta com o grosso edredom, com a exceção de parte da sua cabeça, onde um sorrisinho sem-vergonha estava querendo aparecer. — Ah, então quer dizer que a senhorita

está dormindo? Dormindo profundamente, eu imagino? — continuou, num tom irônico, que divertia a menina, mesmo que se esforçasse para não rir.

— Estou — confirmou, sem abrir os olhos, com seu jeito infantil que tanto provocava adoração no mais velho.

Artur riu em silêncio e continuou com a brincadeira:

— Hmm... Entendo. Então certamente, por estar dormindo, você não conseguirá ver nada que eu fizer no seu quarto, não é mesmo?

— Não vou... — a frase soou meia hesitada — Só não pode brincar de quebrar — advertiu.

O moreno balançou a cabeça, apaixonado pela meiguice da caçula.

— Sei... Mas nem um pouquinho? — quis ter certeza.

— Não — disse firme.

— Entendo, é justo. Mas... se você não está vendo... — foi até o final da cama — com certeza não vai notar quando eu... — pegou o edredom e o jogou no estreito espaço entre o colchão e a parede — fizer... — foi até ela e sem pensar atacou a sua barriga — cosquinhas em você!

Os olhos da pequena se arregalaram, enquanto interjeições de negação saiam engasgadas de sua garganta, sufocadas pelas gargalhadas. Começou a se contorcer na cama, rindo e gritando à medida que os ataques de cosquinhas se intensificavam.

— Mamãee!! — gritou em meio às gargalhadas gostosas e vibrantes. — Me ajuda!

— Ah, então quer dizer que agora você está acordada? — indagou divertido, fazendo cosquinhas no pescoço e depois nos pés da irmã.

— Não! Eu estou dormindo! — engasgou de tanto rir, ficando sem fôlego. — Dormindo! Eu juro! Para! Para! Para! Eu juro!

Artur riu.

— Não quero nem saber. Não terei piedade.

Sem precisar de muito esforço, pegou a pequena de surpresa da cama e a pôs em um dos ombros, segurando suas pernas para que ela não caísse, já que continuava a se remexer, enquanto batia com as pequenas mãosinhas nas costas do moreno, gritando para que a colocasse no chão. Saiu do quarto com ela assim.

— ‘Tur, me põem no chão! Põem! Põem!

— De jeito nenhum! Se eu por, você vai voltar a dormir, não vai? — Caminhou com ela até a cozinha.

— Vou! — disse sem pensar, até que percebeu que talvez não fosse isso que o outro desejava ouvir, e corrigiu — Mas só um pouquinho.

Com cuidado, retirou-a de cima do ombro e colocou-a sentada em cima da mesa de madeira da cozinha, avaliando seu estado.

— Cabelos bagunçados, roupa amassada... — fingiu desaprovação — Eita Rafaela, até parece uma indigente. Só falta aprender a esmolar.

A Rafaela riu, passando uma mãozinha pelos cabelos rebeldes, com certo orgulho do seu desleixo.

— E você parece o Rubber*! — acusou, fazendo biquinho e cruzando os braços. (*Rubber: o vilão do filme “A espada mágica – A lenda de camelot”)

— O Rubber? — perguntou incrédulo e teatralmente ofendido. — Mas eu sempre pensei que eu fosse o Rei Artur, o meu xará. Tem certeza que eu não sou o Rei Artur? — Rafaela assentiu convencida. — Mas nós temos tanto em comum, veja: Eu sou bonitão, ele também; eu sou forte, ele também; eu me chamo Artur, ele também; eu sou...

— O Rubber! — completou, sorrindo maldosa.

— Ah é? Então me diga, espertinha, porque eu sou o Rubber e não o Rei?

— Porque o Rei Artur é bom. — respondeu simplesmente.

— E eu não sou?

Rafaela pareceu refletir, a ponta do dedo indicado batendo algumas vezes no queixo.

— Às vezes. Só quando trás bolachas.

— Hm, que conclusão mais equilibrada e livre de interesse… Demonstra bastante da sua personalidade. Parabéns — soou debochado, mas a menor não percebeu.

— Obrigada — aceitou o elogio, empinando o nariz.

— Bom, é uma pena... — virou o rosto para o outro lado, ainda que continuasse a fitando com os cantos dos olhos — Eu ia te levar no parque hoje, sabe... — Rafaela pareceu prestar mais atenção depois disso — Mas como eu sou o Rubber, acho que não poderei ir. Talvez quem sabe outro dia eu te leve em um passeio mais apropriado para o “Rubber” ir, como em um presídio ou um sanatório... Ouvi dizer que nesses lugares as pessoas falam com as paredes. Acho que você vai gostar mais do que ir ao parque...

— Não, ‘Tur, quero ir ao parque! — protestou, descontente.

— Mas eu não sou ruim?

— Não, você é bom agora.

— Agora, né? Safadinha. — A pegou e a colocou no chão. — Vai se arrumar espertinha, se não eu vou sem você. — Não precisou falar nem duas vezes para que ela saísse correndo, voltando para o quarto. — E vê se não vais dormir! — gritou rápido.

Alguns minutos depois Cintia apareceu na cozinha, se deparando com o filho se servindo de um generoso pedaço do bolo caseiro, sentado à mesa, tomando acompanhado de seu café forte. Ficou o observando por um bom tempo, até que foi notada.

— Mãe. Está ótimo! — falou, com a boca cheia. Cintia riu, caminhou até ele e limpou os farelos ao redor da sua boca.

”Vinte e seis anos, e ainda não aprendeu” concluiu ela mentalmente.

— Eu te amo, você sabe disso, não sabe? — perguntou de repente, o olhar melancólico.

Artur estranhou.

— Claro que sei. Mas porque isso agora?

Cintia deu de ombros.

— Só é bom dizer.

O moreno sorriu com ternura, colocou o bolo sobre o prato, levantando e a abraçando novamente, desta vez sendo abraçado de volta.

— Eu também amo você, mãe.

Cintia não demonstrou mais nada depois disso, se afastando em silêncio e indo lavar a louça. Estava estranha, mas isso não era de hoje.

Quando Rafaela terminou de se arrumar, se despediram da mãe e foram embora de carro, a caçula sentada na cadeirinha própria para crianças da sua idade — que o irmão havia comprado especialmente para ela — no banco detrás. Artur passou boa parte do trajeto — que durava cerca de quarenta minutos — conversando com a irmãzinha sobre todo o tipo de coisa. Sempre ficando impressionado com a inteligência que esta apresentava, apesar da pouca idade.

Rafaela era uma criança extremamente curiosa e sagaz, atenta a tudo que se passa ao seu redor, até mesmo as pequenas coisas, que normalmente ninguém percebe e que era justamente o que normalmente ela mais gosta de observar. Tinha um senso-crítico incrivelmente apurado, era geniosa e divertida, apesar de muitas vezes as pessoas a interpretassem, tomando-a por mal-educada. Também era intuitiva, espontânea, sensível e dificilmente se aborrecia de verdade com alguém. Adorava filmes e músicas do tipo pop internacional, sendo capaz de dança-las em qualquer lugar, até mesmo em mercados e hospitais. Possuía aquela inocência infantil que as pessoas tanto amam, mas também era capaz de surpreender e assustar quando decidiu contar suas reflexões e teorias mirabolantes a respeito do universo e comportamento humano. Era do tipo de criança que sabe muita coisa, e o que não sabe tenta descobrir, e se não consegue acaba inventando as respostas, o que não pode é acabar com dúvida. É carinhosa na medida certa, sincera e totalmente interessada pelo próximo, fazendo dela totalmente sociável, o tipo de pessoa que é quase impossível odiar, além de adoravelmente linda.

Passaram a parte final do caminho cantando as músicas do rádio, até que finalmente chegaram à casa dos Young.

— Então lembre-se do que eu falei: Sem morder ou pular em cima da minha namorada, ouviu bem? Ela não está acostumada com esse tipo de brincadeira, e eu suspeito que ninguém esteja. — Rafaela deu risada. —

Quero que você se comporte, Rafa, porque dá ultima vez você me fez passar vergonha. A Barbara ficou muito triste por você chama-la de Grinch.

— Mas ela parece ele!

— Não parece não.

— Ela nem sabia quem era! — defendeu-se.

— Mas depois que você fez questão de explicar, ela ficou sabendo.

Rafa sorriu sádica, ao lembrar-se da expressão da outra. Daquela vez, não tinha argumentos.

Artur desceu do carro e foi ajuda-la a sair da cadeirinha. Em seguida foram até o portão e o maior apertou a campainha.

— Aqui só tem casão! Ela é rica? — quis saber a pequena, impressionada com a beleza do lugar.

— Se diz: casarão ou mansão — corrigiu — E sim, ela é, mas isso é o de menos. O importante nela é o interior.

— O interior da sua namorada ou o interior da mansão? — perguntou genuinamente confusa.

Artur riu com a pergunta, sem se surpreender.

— Da minha namorada, é claro.

Alguns instantes de silêncio, até o que o mais velho sentiu a camisa sendo puxada. Fitou a outra.

— O interior da sua namorada é melhor do que o interior da casa?

Artur assentiu, sem precisar pensar.

— Claro.

O rosto infantil murchou.

— ‘Tur, quero ir pro carro.

Artur franziu o cenho.

— Por quê?

— Estou com medo de entrar... — soou sincera, até mesmo apreensiva, porém, sorriu sapeca alguns instantes depois.

Artur ficou sério, depois gargalhou, levando a mão à cabeça.

— Você não existe. — Viram a empregada se aproximar com a chave. O moreno se agachou em frente à irmãzinha, ajeitou sua blusinha, reparando no desenho de carros da estampa, se questionando se aquela se tratava de uma camiseta masculina, mas se tratando da irmã, não duvidava. Em seguida, sussurrou bem perto do seu ouvido: —Tenha modos na frente de Barbara e da família dela, caso contrário e eu te mato. — Em seguida piscou com um olho, sorrindo torto. Levantou-se e cumprimentou a empregada, que já abria o portão — Olá Elisa, essa é minha irmã.

Elisa, uma jovem senhorita de pouco mais de trinta anos fitou a pequena criança, curvando-se para tocar a bochecha infantil, apertando.

— Coisa fofa!

Rafaela massageou a bochecha, que certamente ficaria vermelha.

— Tem carne no açougue, moça, não precisa arrancar pedaço!

Desnecessário dizer que Artur não soube onde enfiar a cara depois disso, principalmente Elisa, que empalideceu alguns tons.

— Rafaela! — o maior disse alto, assombrado — Desculpe Elisa, hoje ela está impossível. — Olhou-a sem jeito.

Elisa sorriu compreensiva.

— Não sei por que está se desculpando, ela é uma graça.

Entraram em silêncio, Artur segurando firmemente as mãos da irmã, como se garantindo que esta não saísse correndo para cima do primeiro que cruzasse seu caminho.

Encontraram Katia sentada no sofá, mexendo em um moderno notebook preto. Elisa começou a se afastar.

— Tchau Elisa — disse a menininha de repente, de modo espontâneo, acenando.

A empregada lançou-lhe um sorriso rápido e sumiu entre os muitos cômodos da mansão.

Katia colocou o notebook de lado, se levantou e foi até eles.

— Artur, que bom vê-lo — sua voz era mansa e seu olhar doce, mudando um pouco ao ver que ele trouxera uma companhia. — E vejo que trouxe uma bela acompanhante. — Levou as mãos à cintura e se curvou um pouco, encarando bem a menininha de frente. — Posso saber qual o nome da senhorita, mon cher?

Foi estranho e inusitado, mas Rafaela pareceu perder a voz e ao invés de responder, se escondeu atrás do irmão, meio assustada.

Katia voltou a ficar ereta, o semblante confuso.

— Eu a assustei? — indagou ao rapaz, dando um passo para trás.

Artur pareceu totalmente sem reação. Isso nunca havia acontecido, pelo menos não na sua presença.

— Eu não sei.

A loira sorriu com compaixão.

— Deve ser timidez. Bonitinha — tirou suas próprias conclusões.

Artur achou melhor não dizer nada, virando para a irmã. Agachou-se na sua frente.

— Que foi Rafa? Está se sentindo mal?

A pequena o fitou com os olhos perturbados, muda. Artur franziu o cenho, não sabendo como interpretar a mudança do seu comportamento.

— Se você estiver passando mal, me diz está bem? — falou devagar, um pouco preocupado.

Rafaela olhou para o chão, se encolhendo, mas acabou por assentir. Artur se levantou e voltou a falar com a sogra, respirando fundo.

— Provavelmente ela só está estranhando o ambiente — Katia disse, para despreocupá-lo, sabia mais do que ninguém como crianças podiam ser afetadas por mudanças de ambiente.

— É, deve ser isso.

— Então, vocês três vão sair? Está um dia bonito. Tiveram sorte.

— Na verdade, nós quatro — corrigiu.

— Sua mãe também vai?

— Não, o Nick.

— Que Nick?

— Seu Nick.

Katia riu, achando que foi piada, mas parou quando viu que era sério.

— Não entendi. Você está dizendo que o meu Nick vai passear com vocês? Mas ele está doente.

“Doente?” — sua mente demorou a prosseguir a informação.

— O que ele tem? — sentiu a necessidade de saber.

— Não é nada de mais, provavelmente só o início de um resfriado. O que é normal, com tantas mudanças repentinas de temperaturas e a pouca umidade do ar... Se bem que hoje o clima está bom, uma verdadeira raridade, não acha? Estão todos ficando doentes nos últimos tempos, incluindo meu Nick, pobrezinho.

— Que pena.

— É verdade. Mas eu não sabia que vocês estavam querendo leva-lo.

— A Barbara não te contou?

— Não.

— Talvez ela deixou para última hora.

— Deve ter sido, mas mesmo assim...

— O quê?

Katia sorriu sem humor, dando de ombros.

— Cá entre nós, é estranho imaginar o Nick saindo por essa porta para um passeio sem mim... É meio angustiante, entende?

Ia dizer que não entendia, mas neste momento viu a namorada descendo as escadas, sorrindo para ele, o distraindo.

— Amor! — Barbara aproxima-se, cheirosa e bem arrumada, como sempre. Deram um selinho rápido. — Porque ninguém me avisou que você já havia chegado? — questionou, uma pitada de aborrecimento na voz.

— Eu já ia fazer isso — Diz Katia.

— Sei. — Agarrou-se ao braço do namorado, possessiva. — Você fica ai, flertando com o meu namorado em vão, porque ele é todo meu. Contente-se com seu made in Japão.

O queixo de Katia caiu levemente, espantada e chocada com a falta de respeito e atrevimento da primogênita.

— Não diga insanidade menina! Olha o respeito, onde já se viu! Sou uma mulher fiel ao meu marido. Respeite-me — exigiu ela, ofendida.

Barbara riu, mudando de assunto, focando-se em seu namorado.

— Sua irmã não pôde vir? — Havia certa esperança em sua voz, mas ninguém percebeu.

Artur franziu o cenho.

— Do que é que está falando? Ela está bem... — Quando se virou não encontrou nada—... aqui.

Seu coração acelerou, mil pensamentos invadindo a sua cabeça.

— Que foi? — Barbara perguntou confusa.

— Ela sumiu — constatou com espanto, sem acreditar, piscando atônico.

— Quem sumiu? — a morena não entende o que está acontecendo.

— Minha irmã! Ela estava bem aqui! — Seu olhar passeia pela sala, a procura da criança. — Não acredito que ela saiu de perto de mim!

Katia tentou apaziguar a situação.

— Calma, não tem como ela ter saído de dentro da propriedade. Provavelmente ela deve ter ido brincar em algum cômodo por aí. Fique calmo, já vamos encontrá-la — usou o bom senso.

— Ela não podia ter feito isso... — Suspirou.

— Isso é sério? — Barbara parece surpresa, desconfiada que se tratasse de uma piada. Avaliou bem a expressão de ambos, não demorando muito para tomar uma atitude quando viu que era sério. — Vou procurar no quintal — decidiu, saindo da casa.

Katia também se afastou, dizendo:

— Vou pedir para as empregadas ajudarem.

— Certo, vou dar uma olhada lá em cima, enquanto isso.

— Faça isso, Artur.

O moreno subiu as escada,s e já no corredor, entrou no primeiro cômodo, o coração acelerado, raiva e preocupação se misturando aos pensamentos. Deparou-se com um enorme quarto vazio, que sabia ser o da namorada. Foi para os próximos cômodos, abrindo um banheiro, dois quarto de hóspedes, uma pequena biblioteca, até que abriu a porta do terceiro cômodo do lado direito do corredor, outro quarto, mas não qualquer quarto.

O espaço era grande, iluminado pela luz que adentrava a enorme janela sem cortinas, tingindo tudo com o brilho intenso dos seus raios de sol. A primeira coisa que notou foram as paredes, pintadas todas de branco, onde várias prateleiras e armários foram embutidos, lotados de livros de todos os tipos e tamanhos, uma grande coleção de discos de vinil, CDs, porta-retratos com dezenas de elefanta e mini carrinhos de modelos antigos de cores frias, a maioria ele não sabia nem que existia. s . “Elefantes?” Perguntou a voz curiosa na mente do moreno, repentinamente sem lembrar

o motivo de estar ali, a medida que adentrava-o mais Havia mais coisas também, é claro, mas nada muito extraordinário, comuns para um quarto de adolescente. Uma cama de solteiro em um canto, com lençóis meticulosamente alinhados, um guarda-roupa de tamanho médio, se comparado ao de Barbara, algumas mobílias simples: escrivaninha, estante e uma pequena mesinha ao lado da cama, com um abajur bege, e uma porta que supôs ser a do banheiro.

Na estante, um aquário redondo com dois peixinhos azuis chamou a atenção do moreno, que caminhou até ele, aproximando o rosto do objeto de vidro. Ficou algum tempo parado ali, sentido a atmosfera do ambiente, uma sensação nova entorpecendo a pressão em seu peito, acalmando o sangue em suas veias e as batidas do seu coração. Estar ali o fez experimentar um sentimento de conforto, alívio, como uma presa que depois de tanto sentir-se ameaçado, encontra um esconderijo; um abrigo em meio à tempestade.

— O que está fazendo? — Katia soou preocupada ao que surgia pela porta, olhando para os lados para se certificar de que Nick não estava ali.

— N-nada. — Artur por um momento, sentiu-se sendo pego fazendo algo errado, mas não entendeu o motivo, talvez fosse o olhar da mais velha que o fizesse se sentir assim.

— Vamos, aqui não é um bom lugar. — Pegou o rapaz pelo pulso e o arrastou para fora, fechando a porta quando saiu. Pararam no corredor. Artur a olhou sem entender. — Meu filho não gosta que pessoas entrem no quarto dele — explicou.

Não foi a intenção da loira, mas Artur entendeu por “pessoas”, aqueles que não eram íntimos do garoto, mais especificamente, seus desafetos.

O moreno assentiu, em sinal de que entendia.

Desceram as escadas, enquanto a loira contava que Barbara havia encontrado Rafaela, perto da piscina, no quintal dos fundos. Seguiram para lá, demorando alguns minutos para percorrer a grande extensão da mansão. Quando finalmente atravessaram a porta para o enorme espaço nos fundos da propriedade, a primeira coisa que chamou a atenção dos olhos azuis foi a maneira como Rafaela olhava Barbara, as mãos na cintura, numa postura quase adulta, uma de frente para a outra, parecendo em meio a uma discussão.

— Eu não ia me jogar lá dentro! — bradava a criança, sem paciência, fazendo biquinho. — Eu nem sei nadar!

— Isso por que eu apareci — Barbara acusou genuinamente irritada. — Sabia que você poderia ter morrido? — a forma como seu rosto se fechou ao perguntar, fez a pequena se perguntar se era por preocupação ou deceção.

Não muito longe dali, Nick estava sentado em uma cadeira de tomar sol, olhando a água transparente da piscina, apertando os dedos das mãos, sem humor. Mas ninguém pareceu notá-lo.

— Hei, o que há? — Katia se aproximou da filha.

— Ela estava na beirada, mãe, tenho certeza que planejava pular.

Os olhinhos de Rafaela se arregalaram quando viu a loira, mas estava tão ofendida que não se deixou afetar com a sua presença.

— Mentira! — defendeu-se, o tom alto.

— Rafaela! — Artur sentiu-se tonto de vergonha, foi para o lado da irmã, fuzilado-a com o olhar. — Que modos são esses?

— Não se preocupe amor, ela não tem culpa de nada. Crianças são assim mesmo.

O modo como a descendente do japonês a olhou com desprezo, toda irônica e se fazendo de vítima, foi a gota d’água.

— Criança é você, sua galinha choca!

O queixo dos três caiu, a expressão piorando ainda mais quando Rafaela simplesmente zarpou até a namorada do irmão e mordeu sua mão com força, sorrindo satisfeita quando esta gritou, surpresa e chocada. Barbara mal teve tempo de pensar em se defender, e já se viu sendo empurrada pela menor, com uma força desproporcional para o seu tamanho e pouquíssima idade. Como estava de salto, foi difícil para ela manter o controle da situação, acabando por sapatear alguns passos para trás, ao que tentava recuperar o equilíbrio, parando na beirada da piscina. Cairia na água se não fosse a mãe rapidamente oferece-lhe apoio, segurando a filha pelo braço, impedido o desastre.

As coisas depois disso só pioraram. Rafaela gritou, se remexendo por inteiro quando sentiu as mãos fortes do irmão tentando afastá-la de perto do seu alvo; tudo que mais queria era afundar a cabeça daquela dondoca na água para que ela nunca mais pudesse ser tão mentirosa e dissimulada. A pequena fez um escândalo e começou a chorar de raiva quando o mais velho a repreendeu na frente de todos, dizendo logo em seguida que a levaria para casa e que nunca mais a levaria para passear.

— ‘Tur, liga o rádio — pediu Rafa, dentro do carro, já no meio do caminho de volta para a casa da mãe, secando as últimas lágrimas. Odiava aquele tratamento de silêncio, ainda mais quando sabia estar certa.

— Não — foi curto e seco.

Rafaela fungou.

— Você... Você não ficaria assim se soubesse o que aquela... a sua namorada, me falou antes de você aparecer. — Cruzou os braços, fazendo beicinho. — Ela não gosta de mim.

Artur respirou fundo, sentindo aquela frustração tão incómoda, ainda que não conseguisse sentir raiva da irmã.

— Como você sabe disso? Ela te disse? — questionou cético, com deboche.

— Não — confessou. — Mas ela disse: Vou dizer para o seu irmão que você tentou se jogar da piscina e que eu te impedi, aí eu quero ver você me chamar de “Grinch” de novo — tentou imitar o tom malvado da morena, exagerando um pouco.

O mais velho revirou os olhos.

— Isso é mentira, Rafaela, e você sabe disso.

— Não é não! — bufou, irritada. Como seu irmão podia não acreditar nela?

Alguns minutos de silêncio se sucederam.

— Você me prometeu que iria se comportar — ele a lembrou. — Você mentiu, e agora quer que eu confie em você?

A criança se encolheu. Artur estava chateado, ela sabia, e isso a machucava, mesmo ainda sendo muito pequena, sentia como qualquer outra pessoa. Torceu os lábios.

— Eu não gosto daquele povo. Barbara é chata e a mãe dela é malvada — decretou, muito convencida das próprias palavras.

— Ah é? E quando foi que você tirou essa conclusão? Nos dois minutos que passou com elas? Você nem conhece a Katia. Ela é uma senhora incrível, que te tratou muito bem, como pode não gostar dela?

— Não gostando... Ué. — Foi simples. — Fiquei com medo do jeito que ela me olhou.

— E como foi que ela te olhou, Rafaela? — Indagou ainda mais dececionado, prestando mais atenção na avenida do que na conversa.

— Como a mamãe olha as maças estragadas no mercado — falou sem pensar, porque foi exatamente o que sentiu no momento em que a loira a fitou.

— Isso porque você se comportou muito mal. No mundo de Katia, as crianças têm modos.

— Eu tenho modos!

— Sim, eu tive essa confirmação hoje.

Rafa abaixou a cabeça, constrangida. Passou a acreditar que talvez estivesse um pouco errada, mas só um pouco.

— Você não vai mesmo nunca mais sair comigo? — disse fungando, depois de algum tempo, realmente preocupada.

— Você acha que merece? — questionou de forma dura.

A criança olhou para fora da janela, repentinamente se lembrando de uma coisa que poderia melhorar o humor do irmão.

— Mas não são todos ruins — comentou num murmúrio. Artur pareceu não ouvir. — Você ouviu, ‘Tur? Eu disse que não são todos ruins — disse mais alto, para chamar atenção.

Quando pararam num farol que estava fechado, o moreno olhou para a irmã. Sua expressão não era boa.

— Todos quem, Rafaela? — sua voz saiu arrastada, entediado.

— Eu gostei do menino triste.

A explicação da criança o fez franzir a testa, em pura confusão. Do que ela estava falando?

— Menino triste? — repetiu.

— É. — Rafa sorriu. — O garoto que ficava se mexendo sem parar na cadeira. Ele estava chorando e se balançando para frente e para trás que nem um maluco quando eu o vi, lá perto da piscina.

O outro sentiu o coração pulsar forte, a fisionomia se transformando.

— Está falando do Nick?

— Não sei o nome dele — admitiu, pensando nisso pela primeira vez.

— Você falou com ele? — perguntou devagar, avaliando bem a expressão da garotinha para saber se era mentira. Surpreso e curioso. Rafa assentiu, distraída, feliz pelo irmão parecer ter voltado a ficar de bem com ela. — O que você falou para ele? — questionou preocupado.

— Perguntei porque ele é tão esquisito — sorriu orgulhosa, mas seu sorriso se desfez com a reação do maior.

— O quê?! — quase gritou dentro do carro, os olhos se arregalando um pouco, encarando-a chocado.

Foi quando percebeu as buzinas dos carros atrás de si e se deu conta que o farol havia aberto e que ainda estava parado. Endireitou-se no banco e voltou a dirigir.

— Não acredito que você fez isso... — murmurou baixinho, completamente envergonhado. Rafaela havia se superado desta vez. — Rafaela, o Nick não é esquisito, ele é autista — explicou a irmã, tentando manter a paciência.

A criança mirou as sapatilhas cor-de-rosa em seus pés, dececionada. Só havia conseguido piorar as coisas com o seu irmão.

— Eu sei, foi o que ele me disse — sussurrou baixinho, mas o moreno escutou.

Artur teve que se esforça para não afundar o pé no freio por causa do susto que tomou. Olhou de relance para a irmã.

— Ele falou com você? — sua voz saiu rápida e espantada.

— Falou, ué — disse, fazendo pouco caso.

Artur piscou atordoado, colocando os pensamentos em ordem.

— O que exatamente ele falou para você?

Rafaela franziu o cenho, sem entender tanto interesse, mas novamente feliz pela atenção.

— Ah, ele disse que tem esse negócio, aufismo — pronunciou errado, com seu jeito infantil —, e por isso é esquisito.

— Só isso?

— Não. Depois eu perguntei o que era isso. Aí ele... — começou a narrar, empolgada por poder contar algo do interesse do irmão — ... disse que é uma “infunção gobal do desinvolvimento” . Eu acho — completou, sem muita confiança se dissera certo.

— Disfunção global do desenvolvimento — o maior corrigiu.

— É! Acho que é isso que ele falou. Mesmo eu ainda não sabendo o que é. Mas acho que deve ser algum tipo de dor de barriga, não é? Que deve mexer com o desenvolvimento das comidas dentro do estomago, por isso ele estava se balançando... Por causa da dor.

Artur sorriu com a teoria maluca da irmãzinha, e explicou:

— Não Rafa, autismo é quando uma pessoa nasce com uma alteração no cérebro que afeta a comunicação, a socialização e o comportamento. Fazendo com que às vezes o Nick aja fora dos padrões...

— O que é socialização?

— Socialização é o ato de se aproximar das pessoas, em se tornar amigo delas ou parte do grupo.

— Esse menino não sabe fazer isso? Mas até eu sei! — surpreendeu-se.

— É que para ele é difícil... Mas então, vocês não conversaram sobre mais nada? Não me diga que você fez mais alguma pergunta absurda?

— Eu só perguntei o motivo dele estar chorando — defendeu-se.

— E ele respondeu? — a curiosidade era evidente em sua voz.

— Sim, mas eu não entendi muito bem. Ele falou que era porque não gostava de mentir... — Artur franziu o cenho, também sem entender. Perante o seu silêncio, Rafaela continuou: — Aí eu inventei que sabia ler as mãos das pessoas, e perguntei se ele queria que eu lesse a dele, aí ele disse que tudo bem e eu fingi que lia. Se ele não gosta de mentir, eu não me importo — admitiu com aquela sinceridade que só as crianças têm. — Mas deu certo, porque ele pelo menos parou de chorar e de se balançar e prestou atenção no que eu dizia. Ele pareceu acreditar quando eu falei que ele teria oito filhos e uma cachorra chamada Lalá, e foi quando a sua namorada chegou e atrapalhou tudo.

Houve um longo silêncio, até que de repente Artur começou a rir, num riso que no começo soou reprimido, mas que logo enchia a atmosfera do carro e fazia a criança rir junto, sem saber o motivo.

Quando chegaram à casa da matriarca, Rafaela correu para o quarto, passando pela mãe sem cumprimentar e sem se despedir do irmão, sabia

muito bem que logo o ambiente não estaria muito propenso a ela. Artur adentrou a casa, vendo a expressão confusa da mãe.

— Porque voltaram tão cedo? — Cintia quis saber.

— Rafaela aprontou — explicou com ar cansado.

— O que ela fez?

— Quer a lista? Primeiro, ela mordeu a minha namorada e quase a derrubou na piscina.

— Só isso?

Artur lançou-lhe um olhar abismado.

— Como assim só isso? Ela costuma fazer isso?

— É claro que não, mas do jeito que você falou, eu imaginei que ela tivesse matado alguém.

O moreno massageou a testa.

— Não, eu a trouxe de volta antes que ela fizesse isso.

Cintia riu, e depois ficou sério.

— Vou conversar com ela depois.

— Acho bom.

Ficaram mais algum tempo conversando, até que o moreno decidiu ir embora, mas antes retirou um envelope do bolso da calça e entregou-o para a mãe.

— Para as despesas — explicou.

Cintia tentou devolver o envelope com dinheiro, mas ele insistiu.

— Você é um amor — Aceitou ela por fim.

Artur sorriu, se despediu e saiu da casa.

Voltou para o carro, pensando no que iria fazer a seguir. Decidiu voltar para a casa da namorada, tentaria concertar as coisas, para que não deixasse uma má impressão. O dia estava bonito, quente e úmido, como dificilmente se via em São Paulo. Não iria jogar isso fora, não quando poderia desfrutar da companhia extraordinária da namorada.


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Notas finais do capítulo

Até breve.