Coração Valente escrita por Eu-Pamy


Capítulo 5
Capítulo 4


Notas iniciais do capítulo

Sei que eu prometi que não iria demorar para postar, mas com tantos feriados acabei viajando muito e não tive tempo para escrever. Espero que me perdoem.

Hoje é um dia especial, recebi minha primeira recomendação! Estou muito feliz! Quero agradecer a LilithDark por isso. Obrigado, estou até agora babando pelas suas palavras! Fiquei tão animada que acabei adiantando a data de postagem deste capítulo. Esse capítulo é dedicado a LilithDark.
Espero que gostem.



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Capítulo 4

"Algumas pessoas olham o mundo e perguntam: Por quê?

Eu penso em coisas que nunca existiram e pergunto: Por que não?"

George Bernard Shaw

*********

Pesquisas afirmam que segundo as leis da aerodinâmica, e segundo ainda, testes feitos em um túnel de vento, as abelhas são incapazes de voar. Seu peso, a forma e as dimensões de seu corpo e o pequeno tamanho de suas asas, torna impossível o seu vôo. Porém, como as abelhas não possuem conhecimento de tais pesquisas, elas simplesmente não só voam, como ainda produzem mel!

Tal como as abelhas, não deveríamos nos impressionar com todas as pesquisas que tentam nos enfiar idéias desanimadoras goela abaixo. Afinal, as únicas pessoas capazes de nos impor limites somos nós mesmos.

*********

— Como você está se sentindo hoje?

Sempre a mesma pergunta. Nick perguntou-se se seria só com ele ou se ela fazia isso com todos os seus outros pacientes. Era uma pergunta tão previsível que não sentiu necessidade de respondê-la. Focou-se em avaliar a decoração do local, apesar de já a ter visto um milhão de vezes antes, e ainda assim se surpreendeu como poderia ser deprimente.

Paredes num tom pastel clássico, piso claro e limpíssimo, com um grande tapete no centro, três poltronas marrons confortáveis, duas de um lado da sala e outra um pouco à frente, uma mesinha de vidro num canto, com livros infantis e joguinhos como quebra-cabeças e xadrez sobre ela. Ao lado das poltronas onde ficaria o(s) paciente(s) um grande vazo com uma planta artificial servia para dar um pouco mais de cor ao lugar. Pendurado na parede um obscuro quadro de um cervo, cujos olhos eram assustadoramente reais, dando a impressão de que o animal está vivo e encarando todos que estivessem naquela sala. As cores do quadro eram escuras e os traços agressivos. Era tão impressionante que pelo menos a cada cinco minutos Nick o olhava para ter certeza de que o cervo não se mexeu.

Estava fitando o quadro quando escutou Marcia, sua psicóloga, fazer-lhe outra pergunta, provavelmente desistindo de receber resposta para a pergunta anterior.

— O que você fez de bom hoje, Nick? — sua voz era bondosa e isso fez com que os músculos do garoto relaxassem.

A água estava morna, pensou consigo mesmo, ao lembrar-se da sensação de estar dentro da piscina hoje mais cedo. Voltara a fazer natação há duas semanas, três vezes por semana, durante uma hora.

A primeira vez que entrou numa piscina tinha oito anos. No começo, fez mais pelo bem que o esporte faria ao seu corpo, mas em poucos meses seu desempenho foi melhorando, e a natação se tornou algo agradável, um momento onde Nick poderia ser ele mesmo sem se preocupar com as outras pessoas. Estar em contato com a água transparente da piscina era divertido e ao mesmo tempo revigorante, trazendo uma paz que palavra nenhuma poderia descrever com perfeição.

Durante três anos o moreno ignorou os apelos da mãe e do professor de natação e não usou sunga, preferindo entrar na piscina de shorts. Mas Katia não se importou, afinal, considerou uma grande vitória tê-lo convencido a não entrar com blusa. Aos onze Nick finalmente cedeu a insistência da mãe e passou a usar o equipamento correto. Sunga, toca e óculos de natação.

— Nick? — ela o chamou.

Ao ouvir seu nome sendo dito naquele tom alto e calmo, o garoto se assustou, tendo um grande sobressalto. Olhou a psicóloga como quem olha um alienígena.

Marcia era uma mulher de uns cinquenta e poucos anos. De pele morena, cabelos castanhos-claros um pouco embranquecidos e opacos, lisos e cortados na altura dos ombros, olhos pequenos e escuros, boca de lábios carnudos, sempre pintados com um batom carmim fazendo aquela parte já chamativa do seu rosto tornar-se quase hipnotizante. Sua pele era envelhecida e enverrugada perto da boca e no contorno dos olhos. Possuía sobrancelhas finas e bochechas salientes, apesar de todo o resto do seu corpo ser extremamente magro. Sua postura era rígida e suas roupas sempre muito formais, cobertas pelo jaleco branco.

Marcia sorriu fraco.

— No que você está pensando? — indagou.

Ela vai continuar perguntando, mesmo que eu não responda. E eles vão continuar me trazendo aqui, mesmo que eu não queira.

Nick apertou os dedos das mãos violentamente, sentindo-se frustrado.

Sentou-se mais confortavelmente, afundando-se na poltrona. Já estava mais do que acostumado. Desde os sete anos fazia terapia. Sabia que não tinha escolha. O máximo que poderia acontecer é que os pais o mudassem de psicóloga, como já tantas vezes antes aconteceu, na esperança de que com a próxima ele simpatizasse. Mas Nick sabia a verdade. Sabia que isso nunca iria acontecer porque, primeiramente, não era escolha dele estar ali.

A sessão demorou mais trinta e cinco minutos, e quando finalmente terminou, Nick voltou para casa, onde passou o resto da tarde preparando algo na cozinha. Suas sessões eram à quarta-feira, e o consultório ficava a dois quarteirões de sua casa, por isso poderia ir e voltar andando acompanhado de Sebastian, o que foi uma grande sorte, porque na maioria das vezes eram os médicos que iam até sua casa, por causa da distância, já que Nick se negava a andar de carro.

O restante da semana passou acompanhado de um céu ensolarado e temperaturas altíssimas no meio da tarde. Às vezes, Nick, voltando para casa da escola, sentia a testa começar a juntar gotículas de suor. Hoje em dia quando isso acontece age com naturalidade, mas quando criança costumava fazer escândalos inesquecíveis, chorando alto e se jogando contra móveis e paredes, alegando estar derretendo, como se fosse um cubo de gelo largado ao sol.

Durante o final de semana, a família Young recebeu algumas visitas. No sábado, um tio do Nick, irmão do seu pai, que mora em Mogi das Cruzes veio para o almoço, trazendo Lorenzo, seu filho de quatro anos para passar um tempo com os tios e primos, mas Lorenzo era tímido e não saía de perto do pai, chorando sempre que este tentava forçá-lo a se aproximar de alguém, principalmente de Nick, a pessoa de quem o pequeno parecia sentir mais medo.

Durante a noite de sábado, após a partida de Caio, o irmão mais novo de Masaki, e do seu introvertido filho, ainda receberam a visita de Rita, a vizinha e amiga leal de Katia. Rita passou mais de uma hora conversando com a advogada, até que decidiu ir embora, para preparar o jantar para os seus filhos já que, ao contrário dos Young, não possuía empregados.

No domingo, apenas uma pessoa os visitaram, mas a visita durou tanto tempo que foi como se cinco pessoas tivessem ido na casa de Nick naquele dia. Artur chegou logo após o almoço e foi embora somente depois das dez da noite. Nick não saiu do quarto a tarde inteira, passando o dia lendo um livro novo que comprara numa livraria próxima a sua casa. Mas quando o jantar foi servido não teve escolha e teve que descer. Seu pai permitia tudo, menos desrespeitar as horas das refeições, porque para ele esses momentos são sagrados e toda a família tem que estar reunida agradecendo pelo alimento.

Sentou-se em silêncio em seu lugar à mesa, ao lado da mãe, com o olhar baixo. Por coincidência, Artur sentou-se bem a sua frente e isso deixou Nick desconfortável. O que aquele intruso estava fazendo ali?

Quando todos terminaram de jantar, Nick mal havia tocado em sua comida. Pediu para a mãe deixá-lo subir. Katia o olhou com compaixão e assentiu. O garoto se levantou apressado e foi em direção da escada. Barbara e Artur estavam indo para a sala quando o moreno passou por eles. Mas seus olhos foram travessos e criaram vida própria, olhando para algo que Nick não queria ver. Artur.

Se surpreendeu quando encontrou aqueles olhos azuis focados em si, naquele intenso olhar direto que tanto o perturbava. Foi apenas um segundo, mas o suficiente para sentir-se tonto e tropeçar, mas antes que pudesse cair o mais velho o segurou.

— 'Tá tudo bem? — Artur questionou, o fitando preocupado.

Nick o encarou assustado, afastou seus braços de perto de si e subiu as escadas correndo.

— Um obrigado seria bom! — ouviu a voz trincada da sua irmã gritar antes que ele alcançasse o corredor.

— O que houve? — Katia apareceu na sala, sem entender o grito da filha.

— O abnorme quase caiu — Barbara explicou.

"Uma pena, poderia ter quebrado o nariz" — mordeu os lábios, tentando esconder o sorriso que quis se formar com o pensamento.

— E ele está bem? — falou rápido.

— Sim, mãe. Nem Kryptonita é capaz de machucar o nosso super-boy.

Katia sorriu e desapareceu, voltando para a cozinha. Quando Barbara olhou para o namorado ele a estava encarando com um olhar estranho.

— Que foi? — franziu a testa.

— Porque você chama seu irmão de "abnorme"?

Barbara sorriu largo.

— Porque eu o amo. Significa irmão adorável em grego — inventou, dizendo cada palavra com tanta convicção que ninguém jamais suspeitaria ser uma mentira.

— Ah — ele sorriu. — Que coisa meiga.

— Eu sei.

Artur riu e a beijou. Barbara era mesmo uma mulher imprevisível.

Quando se separaram o moreno não se aguentou e comentou:

— Você que é uma abnorme.

— O QUÊ? — seus olhos se arregalaram e quase se engasgou.

Mas Artur não pareceu notar.

— Eu disse que você que é uma irmã adorável — se explicou.

O coração de Barbara se acalmou e ela riu aliviada.

— Ah! Disso eu também sei — respondeu convencida.

***********

"Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto quem a sente". - William Shakespeare

"Ei, São Paulo. Terra de arranha-céu. A garoa rasga a carne. É a torre de babel".

São Paulo. Lar de cerca de vinte milhões de habitantes, tornando-a a sétima cidade mais populosa do planeta. São milhares de edifícios e casas, centenas de parques e shoppings, e muita, muita diversidade. Do que é feita São Paulo? Culturalmente falando, eu digo. Qual a religião que domina os corações? A música que embala os sábados à noite? Os passeios preferidos? As marcas de roupas mais adequadas? Os gostos, os estilos, as ideias? Do que é feita São Paulo? Acho essa pergunta impossível de ser respondida, mas aí que está a beleza desta cidade: está na complexidade, que de tão complexa se torna simples. São Paulo é a cidade da garoa, das calçadas sujas, do metro lotado, das oportunidades, do sorriso fácil, da lágrima mais fácil ainda. São Paulo é a cidade do céu nublado, das noites sem estrelas. Tem gente que gosta, outros que tampão o nariz só em imaginar o mal cheiro. Normal. Afinal, aqui é Brasil.

Um dia desses andando pelas ruas do centro vi uma moradora de rua grávida. Enxerguei a cena como quem vê uma flor tentando nascer entre as rachaduras de uma estrada. É triste, e ao mesmo tempo uma prova tão concreta da capacidade que o ser vivo tem de mesmo nas situações mais difíceis se desenvolver que chego a perder o fôlego. Não importa como, nós sempre encontramos uma maneira de seguir em frente e superar nossas fraquezas, fazendo delas nossa força. Acho que, o segredo de uma vida feliz é esse: sermos sempre resilientes, independente do tamanho dos nossos problemas.

*********

Algumas semanas se passaram e logo as férias escolares chegaram. Mesmo sem ir à escola, Nick continuou a estudar, recebendo aulas particulares todos os dias - exceto nos finais de semanas - em sua casa, até porque precisava melhorar seu desempenho em Filosofia e Química.

A faculdade de Barbara também entrou em férias, e por isso a rapariga entrou numa rotina preguiçosa, onde nada era mais importante que suas horas de sono durante o dia e suas festas e baladas durante praticamente todas as noites seguintes. Costumava ir acompanhada das amigas, porque o namorado era caseiro e sempre inventava uma desculpa para não ir, dizendo precisar acordar cedo para dar aula de violino no dia seguinte ou coisas do gênero. Porém, felizmente, Artur não é ciumento e não se importa dela ir acompanhada apenas das amigas.

A pequena costumava chegar às seis horas da manhã, um pouco depois de os pais sairem para trabalhar. Às vezes, acontece de Nick estar acordado e ver a irmã entrar cambaleante na casa, mas quando isso acontece Barbara simplesmente o ignora e corre para o quarto provavelmente para esconder a bebedeira dos empregados, ou até mesmo dos pais. Não que ela ligue que a vejam assim, apenas acha desnecessário. Suas noites de farra não precisam ser compartilhadas com ninguém.

Era uma tarde fria, de fim-de-semana, e a família toda estava em casa, espalhados pela mansão. Katia no escritório, estudando alguns casos, Masaki assistindo um filme na sala, Barbara mexendo no computador no quarto e Nick lendo sentado numa cadeira no quintal. Leu por mais de três horas, até que sentiu um calafrio - pois estava só de camiseta - e decidiu entrar. Quando entrou encontrou a irmã conversando com o pai, ambos sentados ao sofá.

Sem que quisesse, ouviu parte da conversa.

— É o irmão do pai dele. Ele disse que esse tio é como um pai para ele, que praticamente ajudou a cria-lo depois que o pai morreu. Nós precisamos ir, ele faz questão. Ficou insistindo tanto que eu não tive como negar. Já estamos juntos há meses, está na hora de vocês se conhecerem. Eu conheço a mãe, a irmã e alguns primos do Artur, mas não os tios. Será uma ótima oportunidade dele me apresentar o restante dos seus parentes e amigos. Eu não posso aparecer nesse churrasco sozinha. Eu já conversei com a mamãe, ela disse que tudo bem. Eu sei que churrasco é completamente cafona, mas é por uma boa causa. - Barbara dizia, num tom mais calmo que o habitual.

Nick se sentiu inseguro, mas ficou parado na entrada da sala, olhando os dois. Aparentemente, eles não o haviam percebido.

Masaki sorriu, um sorriso um tanto forçado, mas que pareceu tranquilizar a filha.

— Se você faz tanta questão, tudo bem, eu vou. Mas me prometa uma coisa. Prometa-me que é a última vez que você me obriga a ir num evento como esse. Tenho medo aonde isso pode parar, numa roda de samba, talvez.

Barbara revirou os olhos.

— Eu amo o Artur, mas não exagera — uma pausa. — Então, está combinado, sábado que vem eu, você, a mamãe e o Abnorme vamos neste churrasco bancar os pobrinhos — respirou fundo. — Mas papai — ela o fitou com um olhar hesitante, como que se o que fosse falar fosse muito sério —, não sei se é uma boa ideia levar o Abnorme, digo, ele pode se sentir desconfortável no meio de tanta gente desconhecida... Não seria melhor deixá-lo em casa?

Masaki pensou.

— O que sua mãe disse sobre isso?

Barbara fechou a expressão.

— Que o Nick pode muito bem se comportar no meio de pessoas estranhas. Que não é para eu me preocupar, porque ele não vai fazer nada para me humilhar. Mas sinceramente, pai, tenho minhas dúvidas. Se nem na igreja ele se aguenta, como vai se controlar num churrasco?

— Filha, tente entender, precisamos apoiar seu irmão. Não adianta nada escondê-lo do mundo. Para ele melhorar é preciso que ele aprenda a interagir com as pessoas e ninguém aprende isso preso dentro de casa.

— Eu sei — suspirou. — Foi bobagem minha — passou a mão pelos cabelos curtos. — É que, às vezes o Nick é tão... — ia continuar mas parou quando percebeu que não estavam sozinhos. — Nick? — o encarou chocada. — Há quanto tempo está escutando a nossa conversa?

Masaki também o fitou, surpreso.

O garoto pareceu assustado ao ser descoberto, balbuciou alguma coisa e então passou correndo pela sala, subindo as escadas.

A morena balançou a cabeça.

— Só espero que você esteja certo, pai — cruzou os braços. — Não me quero arrepender depois — completou.

Na segunda de manhã Nick estava arrumando sua cama quando Barbara entrou no seu quarto como um furacão. Estava vestida com uma roupa de festa e cheirava a álcool, apesar de sua fisionomia estar absolutamente normal. Zarpou até o garoto e agarrou seu braço com força, as unhas cumpridas fincando na pele macia. Eram praticamente da mesma altura, Nick sendo mais alto apenas por pouquíssimos centímetros, mas como a morena estava de salto ficou mais alta que o irmão.

— Só vou dizer uma vez! — vociferou. — Você é um rato. Um rato sujo e podre. Eu tenho nojo de você — seus olhos ardiam de sinceridade e crueldade. Nick sentiu seu coração acelerar. — Eu vou-te levar para esse churrasco, mas se você fizer alguma coisa, qualquer coisa, para me prejudicar e humilhar perante a família do Artur, eu juro que encho essa casa de ratoeiras! E você sabe o que as ratoeiras fazem com ratos sonsos como você? — perguntou num tom assustador. — Elas matam! — disse com os dentes trincados, fazendo os olhos do garoto se arregalarem.

Soltou o braço do irmão com brutalidade, sem desviar o olhar. Era estranho ver uma face tão delicada se fechar naquela expressão de puro ódio. Mas Nick não sentiu medo, nem raiva. Tudo que conseguiu sentir foi tristeza, uma tristeza profunda que parecia cortá-lo por inteiro, indo até as raízes do seu ser.

— Não brinque comigo irmãozinho, porque você não vai aguentar as consequências do meu jogo — sussurrou com a voz estridente.

Se virou e saiu do quarto, encontrando a mãe no corredor.

— Ah, oi mãe — disse surpresa, esperava que a mãe já tivesse ido trabalhar. — Não foi trabalhar?

— Esqueci uns processos no escritório aqui de casa, acredita? Vou aproveitar para dar um beijinho em você — disse, dando um na bochecha da filha — e outro no Nick. Você viu ele? Acho que ele deve estar no quarto dele. Com licença, querida.

— Mãe! — mordeu a língua quando percebeu que havia gritado.

— O quê? — Katia estranhou. — Aconteceu alguma coisa?

— Mais ou menos — falou num tom calmo e baixo. — É que eu vi o Nick hoje e coitadinho, ele está tão exausto. Tem estudado tanto com o professor particular que nem tem tempo para descansar. Acho que ontem a noite ele ficou até tarde estudando. Você acredita que ele ainda não acordou? — mentiu, — Acho melhor você deixar o nosso anjinho descansar, afinal, ele merece.

— Ah... – sorriu.— Que bonito, esse seu cuidado com o seu irmão Barbara, fico muito orgulhosa de você. É lindo de vê como vocês se dão bem. É impressionante. Mas eu só vou dar um beijinho nele, não pretendo acordá-lo.

— Não! — se precipitou novamente. — Quer dizer, você sabe que o Nick tem o sono leve, é melhor deixá-lo quieto.

Katia sorriu.

— Tudo bem. Ainda assim, vou no escritório pegar meus documentos. Tenha um bom dia queria, te vejo à noite.

— Vou ter. Tchau — observou a mãe caminhar até o cômodo onde ficava seu escritório e só então foi para o próprio quarto.

Sorriu quando fechou a porta.

— Fácil como tirar doce de uma criança — murmurou, irônica.

************

Sábado chegou rápido e quente, com temperaturas de mais de vinte e oito graus depois do meio-dia. Não eram quarenta graus de temperatura, como em lugares do Rio de Janeiro, mas vinte e oito somado ao ar abafado da Capital era muito quente.

Barbara suspirava revoltada, uma ruga de irritação entre as delicadas sobrancelhas, o cenho franzido e os braços fortemente cruzados contra o peito, numa postura tão frustrada e indignada que parecia que nada no mundo poderia frustrá-la mais que o irmão mais novo. De certo modo, isso era verdade. "Como esse garoto consegue ser tão idiota?" Uma voz gritava em seu subconsciente, fazendo sua expressão piorar. Os olhos miravam o menor, estrangulando-o com sua força. Batia o pé inconscientemente no chão, demostrando impaciência. Vestia uma calça jeans, uma blusa bege rendada e botas pretas, com saltos, tudo de marca e muito caro. O cabelo estava preso e a maquiagem era delicada. Talvez tivesse exagerado na produção, afinal, era apenas um churrasco, mas fazia questão de ser a mais bonita entre todos daquele churrasco, para que Artur tivesse a certeza de que não poderia ter feito escolha melhor.

— Anda logo! É só um carro, ele não vai te morder! — disse o óbvio, claramente estressada.

Estavam os quatro na garagem fazia mais de vinte minutos.

Katia e Masaki se entreolharam. Katia disse:

— Nick, sei que é difícil, mas vamos fazer um esforço. A casa do tio do Artur não é tão longe daqui, vai ser um trajeto rápido, eu prometo.

— Vai ser que nem ir para a igreja, filho — Masaki o incentivou a entrar no veículo, a expressão paciente.

Nick parou, acuado num canto da garagem. Sentiu-se desolado. Será que nunca ninguém será capaz de entendê-lo?

— Nã-não é a mesma... coisa — murmurou baixinho, de modo que apenas o pai que estava mais próximo escutou.

E como poderia ser? Todos os domingos, o garoto movia céus e terras para enfrentar seu medo e entrar dentro daquele carro. A igreja era razoavelmente longe e não dava para ir a pé, além de também ser deselegante, na opinião de Katia. Por isso, Nick juntava toda a sua força de vontade e ia de carro assistir a missa, porque mesmo a igreja tendo sido cenário das suas piores crises, estranhamente, estar dentro dela lhe trás uma sensação diferente. Uma sensação que o próprio garoto jamais poderia rotular por si só, mas que é o mais próximo de esperança que ele já sentiu na vida. Apesar de todo o desconforto, e apesar de muitas vezes nem entender o que tudo aquilo significa — as orações, a palavra do padre, as canções e etc. — algo dentro dele acende quando está dentro da igreja. Não tem a ver com ser religioso, temer o inferno ou ser teocêntrico, tem a ver com uma necessidade de buscar respostas, mesmo que seja uma busca inconsciente. Uma vontade de alimentar o espírito e acalmá-lo.

— Ai Abnorme, para de fazer charminho. Entra logo nesse carro! Vamos acabar nos atrasando por sua causa! — Barbara disse arrastado, com seu sotaque carregado de paulistana e em seguida bufou, que nem costumava fazer quando era criança e não tinha seus mimos acatados.

O garoto olhou para a mãe.

— Você vai! — Katia antecipou seu pedido. — Eu até comprei o presente para você dar para o tio do Artur! Então, você vai.

O garoto deu um passo para trás.

— Mas...

— Mãe, o Nick tomou o remédinho dele hoje?

— Sim Barbara.

— Filho... — Masaki caminhou até o carro e abriu a porta traseira. — Seja um bom menino, e entre.

Nick olhou o pai, depois a mãe e em seguida o carro. Nunca entendeu porque sentia tanto medo de entrar em algo tão normal para as outras pessoas.

Sentiu as lágrimas embaçarem a visão.

Compartilhando da mesma agonia do filho, a loira caminhou até ele e tentou tocá-lo nos ombros, num carinho confortável, mas Nick se assustou e recusou o toque, indo para trás.

— Nick, vai ficar tudo bem — disse ela.

O menino suspirou, vencido. Abaixou a cabeça e andou lentamente até ao Mercedes preto do pai, as lágrimas vindo com mais força. Entrou e ficou sentado no meio, como de costume. Colocou o cinto e esperou.

— Até que enfim! — Barbara comemorou, provocando, enquanto entrava.

Masaki sentou no assento do motorista, e Katia e Barbara atrás, uma de cada lado do menino. Há muito aprenderam que o garoto não poderia se sentar perto das portas, porque quando ficava muito apavorado entrava em surto e abria as portas, tentando sair, mesmo com o carro estando em movimento. Isso aconteceu duas vezes no passado, até que descobriram que se ficassem as duas sentadas com ele poderiam segurá-lo e assim evitariam um acidente.

Nick passou boa parte do percurso chorando e tremendo, mas isso era tão rotineiro que até mesmo a irmã não reclamou quando este também começou a soluçar alto.

A casa de Paulo, o mais velho dos irmãos do pai do namorado de Barbara ficava a uma hora e vinte minutos da casa dos Young, numa cidade do interior de São Paulo.

Como saíram cedo, foram uns dos primeiros a chegar. Passava da uma da tarde e apenas alguns amigos e vizinhos de Paulo estavam no quintal e outros dentro da casa, conversando e bebericando alguma coisa, enquanto a carne do churrasco começava a assar. A casa era grande, modesta, mas espaçosa, e o quintal enorme, com um lindo jardim e grama verde. O sol estava ardido e por isso todos usavam roupas curtas e confortáveis, porém nada vulgar. No rádio uma música popular tocava, de uma cantora sertaneja famosa. Duas pessoas, aparentemente as mais ousadas do grupo dançavam juntas no ritmo da música, prendendo a atenção de quem estava em volta. Todos pareciam se conhecer e o clima era de confraternização.

Masaki estacionou o seu Mercedes em frente a uma casa sem garagem, ao lado da casa de Paulo. Deixou o veículo e foi tocar a campainha.

— Nick, agora você precisa sair — Katia orientou, já do lado de fora do carro.

Barbara tirou o cinto e riu.

— Primeiro, é uma guerra para entrar, agora vai ser outra guerra para sair. Ninguém merece... — resmungou, saindo do Mercedes.

A loira ignorou a provocação da filha mais velha e fitou o caçula com ternura.

— Nick... — chamou, tentando captar sua atenção.

O menino estava encolhido, chorando, o coração apertado e as mãos trémulas. O rosto estava manchado pelas lágrimas que escorriam quentes pelas suas bochechas, e os olhos vermelhos pareciam ainda mais tristes.

Do lado de fora, o aniversariante foi quem veio abrir o portão.

— Olá! — falou com uma felicidade tão contagiante que ninguém teve dúvidas que fosse parente do Artur. — Eu sou o Paulo. Me desculpem, eu não sei se lembro de vocês, é que convidamos tanta gente... Você são os? — disse com uma sinceridade impressionante.

Era um homem alto, de uns quarenta e poucos anos, branco e magro, mas nada exagerado. Tinha olhos castanhos, cabelos negros e curtos, e um queixo quadrado. Mas sua característica mais marcante era o sorriso, não tão bonito quando o do sobrinho, mas ainda assim perturbador.

Masaki não se deixou intimidar pela altura do outro nem pela sua visível animação. Já havia-se preparado para encontrar figuras como essas.

— Somos os Young — disse o japonês.

A expressão de interrogação de Paulo não pareceu melhorar com essa declaração.

— Sou a namorada do Artur — Barbara esclareceu. — Esses são minha família. O Artur disse que estava tudo bem se eu os trouxesse.

O aniversariante abriu mais um dos seus charmosos sorrisos.

— Ah! Claro! O Arturzinho falou de vocês! Fico feliz em conhecê-los, é um prazer enorme conhecer a famosa Barbara! Meu sobrinho não para de se gabar do quanto você é maravilhosa e única — sua expressão se iluminou. — Nossa, ele disse que você era bonita, mas, com todo respeito, acho que meu sobrinho ganhou na lotaria! Você é linda! Deve ter muito orgulho de ter uma filha tão especial como esta, não é mesmo senhor...?

— Masaki.

— Masaki? Eu estudei com um Masaki na faculdade. Mas como esse mundo é pequeno! — falava tudo quase sem respirar.

Barbara riu, se divertindo.

— O meu namorado já chegou? — perguntou.

— Sim, ele veio cedo para me ajudar com o churrasco. Sabe, eu não sou muito bom como churrasqueiro, o meu negócio mesmo é comer — disse em tom de segredo. — Entre, vai encontrá-lo lá dentro na cozinha, provavelmente está conversando com a minha irmã — deu passagem para ela passar.

— ‘Tá bom.

Deixou o pai conversando com o Paulo e entrou. Percorreu o quintal e entrou dentro da casa. Perguntou para uma garota de uns quinze anos onde ficava a cozinha e em seguida foi até lá. Encontrou o namorado encostado na mesa falando alguma coisa com uma mulher ruiva de uns trinta e cinco anos, que espetava pedacinhos de carnes cruas no espeto.

— Mas ele é talentoso, só precisa de um pouco mais de treino — falava Artur, em seguida tomou um gole do que aparentemente era vinho ou suco de uva dentro de um copo.

A morena caminhou até ele e tocou seu ombro, o assustando.

— Que foi? Te assustei? — indagou, sorrindo debochada.

Artur riu.

— Barbara! Você já chegou! — a abraçou e em seguida deu-lhe um selinho.

A mulher encostada na pia parou o que estava fazendo para ver a cena.

— Titia, essa é a minha namorada, a Barbara. Barbara essa é a minha tia gata.

— "Tia Gata"? Quem me dera... — Susana sorriu.

— Oi, é um prazer — a morena esticou a mão para cumprimentá-la.

Susana olhou para a sua mão estendida e riu.

— Ai querida, se eu fosse você recolhia essa mão, porque a minha está toda suja, a menos que você não se incomode de ficar com as mãos sujas de carne crua — avisou, bem-humorada.

Os olhos da morena se arregalaram, tentou disfarçar a expressão de nojo que surgiu com a ideia enquanto recolhia a mão.

— É um prazer te conhecer, querida. E veio em boa hora! Quer me ajudar? — Susana perguntou, no fundo sentindo uma sensação gostosa em torturar a namorada do sobrinho. Afinal, só de vê-la já sabia que essa é do tipo que nunca enfiava a mão na massa e nem levantava um dedo para ajudar ninguém.

— Não sei se é uma boa ideia. Eu não sou muito boa cozinhando...

— Mas aqui não vamos cozinhar nada, querida. Não tem segredo. Vem cá.

A morena olhou para o namorado, desesperada, mas este apenas sorriu e fez um gesto para que ela seguisse em frente. Barbara engoliu em seco e caminhou até a pia.

— Mas primeiro tire essas pulseiras. Isso, agora sim. Olha, é fácil. Primeiro, você pega um espeto, depois um pedaço de carne e enfia, só isso. Está vendo? É simples. Agora sua vez — passou o espeto para ela.

— Eu realmente acho que não é uma boa ideia — hesitou, encarando a vasilha cheia de pedaços de carne.

— Claro que é. Anda, sem corpo mole. Se você quer ficar com o meu sobrinho terá que aprender a pelo menos fazer churrasco. Não é mesmo Arturzinho? — ela fitou o sobrinho, que se segurava para não cair na gargalha. Ela mesma também segurava uma gargalhada — Vamos, querida. A carne não morde, o boi já tá morto, ele não apresenta mais perigo. Pegue um pedaço e espete com vontade.

Barbara obedeceu, não acreditando que estava mesmo fazendo aquilo. Pegou o pedaço de carne como se este fosse uma arma perigosa que pudesse matá-la e depois o enfiou no espeto, encontrando certa dificuldade. Quando terminou sorriu.

— Pronto, consegui — disse animada.

— É verdade — Susana sorriu marota. — Agora que você já aprendeu, termine o resto, sim? Eu vou no banheiro.

A expressão de Barbara endureceu.

— O-o quê?

Susana riu e saiu da cozinha.

— Minha tia não é demais? — Artur perguntou.

— É, "demais" é a palavra, mesmo — murmurou, ainda sem acreditar.

O moreno gargalhou.

— Bom, eu vou cumprimentar seus pais...

— Vai-me deixar sozinha? — Barbara não acreditava como tudo só piorava.

— Assim você poderá se concentrar. Te vejo depois. E cuidado para não quebrar nenhuma unha! — provocou.

— Engraçadinho!

O moreno saiu e foi para o quintal. Encontrou Masaki sentado sob a sombra de uma árvore, conversando com um vizinho do seu tio.

— Olá senhor Masaki, como vai? — disse.

— Vou bem.

— Já conheceu meu tio?

— Sim, sujeito muito animado, seu tio.

Mateus, o vizinho, se intrometeu.

— Você tem que ver nos sábados à noite, ninguém consegue dormir. Mas é um bom homem, isso ninguém pode negar.

Artur sorriu.

— Cadê a senhora, sua esposa? E seu filho? Pensei ter ouvido a Barbara dizer que eles viriam.

Masaki suspirou, um tanto constrangido.

— Ainda estão lá fora.

— Porque eles não entram?

— Por causa do Nick, ele não quer sair do carro.

Artur sentiu-se estranho com essa declaração.

— Entendo — uma pausa — Vou ver se ela precisa de alguma ajuda. Onde o senhor estacionou o carro?

— Na casa ao lado.

— Entendi.

Se afastou, atravessou o quintal e saiu pelo portão. Reconheceu o carro do sogro e a Katia parada na calçada.

— Olá Artur — a loira cumprimentou, parecendo cansada.

— Olá senhora Katia — se aproximou cauteloso. — Ele está bem? — mesmo sem pronunciar seu nome ambos sabiam a quem ele se referia.

Katia deu de ombros.

— Sinceramente, eu não sei. Ele não responde as minhas perguntas, não me obedece... Já não sei o que fazer — massageou a testa.

Artur olhou para a porta aberta do carro e seu coração foi acelerando conforme ia se aproximando e ouvindo o som de choro abafado vindo de dentro do veículo ficando mais alto. Abaixou para ver o menino dentro do carro.

Nick chorou por mais alguns segundos, até que sentiu aquela sensação esquisita tomar conta do seu corpo e precisou parar, se concentrando apenas naquela sensação. Olhou para Artur antes mesmo de ter consciência da sua presença, ambos sustentaram aquele olhar direto e profundo até que nem mesmo os soluços de Nick pudessem ser escutados.

— Nick. Sai, por favor — o mais velho pediu com educação, sem desviar o olhar.

A boca de Katia caiu quando viu o filho sair do carro, calmo, como se nada tivesse acontecido, limpando as lágrimas e olhando com serenidade a rua.

— Mas que magia você usou? — questionou abismada.

Artur deu de ombros, sem fazer muito caso do assunto.

— Nada, eu só pedi.

Katia não se aguentou, riu alto.

— Essa é boa! Eu não 'tô acreditando! Eu estou aqui faz sei lá quantos minutos tentando tirar esse menino de dentro do carro e chega você aqui todo mansinho e faz ele sai em um minuto! Você deve ser um anjo! Só pode! Eu tinha que ter gravado! Se eu contar, ninguém vai acreditar!

— Você achou isso impressionante? É porque a senhora não sabe a cena que eu acabei de presenciar na cozinha... — achou melhor mudar de assunto.

— O que foi?

— Acho melhor a senhora mesma ver com seus próprios olhos.

Sem conter a curiosidade, a loira tranca o carro e entra pelo portão.

O garoto ia segui-la, mas teve a mão segurada pelo maior, que rapidamente a soltou. Nick o fita de relance.

— Você está melhor agora? — questiona o mais velho, ainda preocupado.

Nick não responde. Artur sorri.

— O que eu tenho que fazer para você falar comigo? Sabe, eu não estou acostumado a ser ignorado, isso está sendo uma experiência nova para mim — diz, coçando a cabeça, meio sem jeito. — Você não vai mesmo conversar comigo? Bom, eu não vou desistir. Estou decidido a fazer você falar comigo.

O garoto o olha surpreso, os lindos olhos negros arregalados e a boca entreaberta, como se quisesse falar alguma coisa. Ficara preso no brilho dos grandes olhos azuis por alguns instantes, até que se aborrece e entra, deixando Artur sozinho na calçada.

O maior fita o céu sem nuvens, achando aquela imensidão azul ainda mais bonita do que o normal, enquanto um sorrisinho bobo brota em seus lábios rosados.


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Notas finais do capítulo

Como forma de me redimir pela demora, eu já escrevi o próximo capítulo, só falta ser betado. Obrigado a todos que estão comentando, amo ler seus comentários. Beijos.