Orleans escrita por MarianaCamara


Capítulo 18
Capítulo 18 - One way or another




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Samantha estava me esperando no aeroporto. Tinha feito um cartaz em uma folha grande de cartolina com o desenho torto de uma estátua da Liberdade sorridente e um gato dormindo junto dos dizeres “Bem vinda ao lar”. Ela tinha um lado fofo às vezes, mesmo que jamais admitisse isso.

Jenny estava lá com ela, a cadeira de rodas segura pelas mãos da Sra. Russell com um largo sorriso no rosto. Todas me abraçaram muito antes de me dar tempo de contar onde estavam minhas malas e que sim, havia feito um bom voo. Mas abraços eram extremamente necessários. Eu precisava deles.

Pedimos um táxi (a Sra. Russell reclamou durante todo o tempo pela falta de espaço para acomodar um cadeirante nos carros de hoje em dia) e logo ali na plataforma enquanto o motorista se desculpava e guardava a cadeira e minhas malas no bagageiro, senti aquela estranha sensação de estar de volta a um lugar muito conhecido; mas que não me queria particularmente com carinho. A grande maçã me esperava com a desagradável tarefa de lidar com a realidade.

— Você vai ter que passar o dia todo contado tudo que aconteceu nessa sua viagem, Branquela. Quero detalhes. Vou ouvir o que já ouvi e o que não ouvi ainda. — Sam anunciou logo que conseguimos nos acomodar dentro do carro.

— Você visitou o Big Ben, Kate? — Jenny logo perguntou, apertando-se no colo da mãe para se virar na minha direção.

— Só do lado de fora, Jen. Mas eu trouxe um monte de lembrancinhas legais de lá.

Jenny deu uma risadinha ansiosa e bateu palmas com uma alegria que era tão típica dela. Era engraçado como as pontas de seu cabelo estavam pintados de rosa e deixavam a gola da camiseta de gatinhos que ela usava, um tanto quanto tingida.

— Depois que Kate se acomodar e descansar vocês terão todo o tempo do mundo para atazanar a pobrezinha. Separei um cantinho pra você, espero que não se importe, Kate... — a Sra. Russell tossiu, praticamente surgindo por trás dos cabelos armados da filha.

Sempre gostei da mãe de Sam. Ela era uma mulher grande e séria, um doce quando tinha seu lado maternal trazido à tona. Adorava ir até a lanchonete dos Russell e encontra-la cozinhando e cantando, sorridente apesar de qualquer dificuldade do dia a dia. Porém não poderia aceitar aquela oferta generosa. A casa de Sam já era pequena demais para todos eles, imagine só se o desastre Dalton resolvesse acampar na sala de estar?

— Eu agradeço, Sra. Russell, mas eu gostaria de ir até o meu... Bom, ao apartamento. Quero ver minhas coisas, pegar algumas roupas.

— E depois vai pra nossa casa! — Jen comemorou — Tabby vai adorar te ver, Kate. Ele está com saudades.

— Também estou com saudades daquela bolinha de pelos. Espero que não tenha dado muito trabalho.

— Você me paga com favores laborais. — Sam rebateu, fazendo todos rirem. — E eu vou nesse apartamento contigo, Kate.

Ela nem me deixou protestar. Bateu no vidro divisor do taxi e passou o endereço para o motorista antes de voltar a se acomodar no banco e me apertar entre ela e a mãe. Era como estar amassada entre as mulheres rainhas dos peitos da América. Não dava pra negar de onde vinha a herança genética de Sam.

Família abençoada.

Fizemos o resto do trajeto com a Sra. Russell murmurando um trecho de New York, New York, intercalado com reclamações pela inquietação da filha caçula que falava pelos cotovelos, curiosa.

“Você precisa emagrecer, Jenny. Daqui a pouco não consigo mais te tirar daquela cadeira velha. Olhe bem pra sua mãe e sua irmã. Fuja desse transtorno familiar, menina!”, ao que a mais nova sempre rebatia que começaria a fazer uma rotina intensa de corrida na próxima semana.

Jenny nunca aparentou ter sofrido demais com a perda daquela perna. Claro que era dolorido vê-la restrita daquela forma, quando ela adorava tanto correr por aí e andar por mais do que alguns blocos ao redor da sua casa; mas nada lhe roubava o sorriso. Ela via a própria situação com uma luz que a maioria das pessoas não vê e isso a tornava muito forte.

O carro parou diante do prédio próximo da Biblioteca Municipal e a pequena loja de souvenires no térreo estava cheia de um grupo de turistas usando a mesma camiseta vermelha com uma fatia de pizza rindo como estampa. Desci apenas minha bolsa (já que não consegui convencer ninguém de que não poderia aceitar toda aquela hospitalidade) e paguei a corrida até ali, enquanto Sam dava todas as coordenadas para o motorista poder continuar.

Nos despedimos das Russell restantes e precisei respirar bem fundo antes de aceitar o molho de chaves com a cabeça de Sir. Edgar Allan Poe que Sam tinha trazido com ela. Pelo menos não tinham mudado as fechaduras da porta do prédio, ponto positivo.

Subimos as escadas em silêncio, ouvindo apenas nossos passos pelos degraus e um cachorro que o apartamento do primeiro andar insistia em deixar sozinho o dia todo, causando uma sinfonia de ecos.

— Vou pegar a chave no apartamento do porteiro, Branquela. Eu nem sei porque um diabo de prédio desses tem um porteiro... — Sam resmungou, ajeitando a blusa colada que usava por baixo do casaco de inverno. — Se quiser continuar subindo, suas coisas estão no final do seu corredor. Naquela porta sem número, lembra?

Concordei com Sam enquanto ela batia na porta do apartamento do homem e continuei a subir sem muito ânimo, aspirando o cheiro de tinta que estava pelo ambiente. Havia um aviso na parede do meu andar que avisava os mais distraídos de que a tinta estava fresca e não demorei em encontrar o lugar pintado.

A porta que costumava ser minha não era mais amarela, mas um branco pálido que não dava nenhum indício de que alguma vez morei naquele lugar.

Precisei respirar muito fundo para não desabar diante da realidade me socando na boca. Se havia uma coisa que poderia ser colocada na minha lápide era:

“Aqui jaz Katerina Emily Dalton. Azarada, trouxa e amaldiçoada. Não dotada de peitos. Admira-se não ter morrido antes”.

Seria bem sincero, tenho que concordar.

Devia ter pedido por um mínimo de garantia sobre o apartamento antes de somente me deixar levar por toda a animação e empacotar minhas coisas e mudar. Não havia nada que provasse que o lugar era meu (e na verdade, ele não era).

Meu nível de burrice continuava a ser uma surpresa.

A mão de Sam de repente tocou meu ombro e me trouxe um pouco de conforto. Ela também suspirou ao ver a porta e com um resmungo, meteu o pé na tinta nova, deixando sua bota marcada bem no meio, mostrando a tinta amarela que ainda existia por baixo. Então balançou a cabeça bem satisfeita quando eu ri, tirou os sapatos e caminhou do meu lado até o fim do corredor onde a porta sem número indicava um cômodo comumente vazio. Me senti honestamente vingada.

— O porteiro disse que um advogado se apresentou com um pessoal de uma empresa de mudança, pedindo para esvaziar o apê, Kate. Ele tinha um pedido legal de despejo, ou seja lá que tipo de papelada precisava pra comprovar que você estava ilegalmente no lugar.

Sam girou a chave na porta e precisou acender a luz para enxergarmos alguma coisa naquele quarto sem janelas. Todas minhas coisas estavam ali, encaixotadas, desmontadas e empilhadas, tomando todo o cômodo.

— Meu santo Keats... — andei entre as caixas, abrindo algumas tampas para encontrar sapatos, louças e shampoos misturados. Me sentia subitamente a criatura mais infeliz do universo.

Então sentei sobre uma caixa de livros e chorei.

Derramei todas as lágrimas que tinha segurado desde York. Toda a minha raiva, frustração e tristeza, todo o meu limite. Sam teve que se contorcer entre minha estante e a cama para poder me abraçar e eu chorei ainda mais no seu ombro.

Apanhamos algumas trocas de roupa limpa e sapatos, ração para o gato e roupas de cama quando consegui me acalmar. Teria que aceitar definitivamente o acampamento na sala de estar da casa de Sam por aquela noite.

— Seu pai foi o pior pai do século, Branquela. Nada de presente de natal pra ele nos próximos 50 anos. — Sam estava irritada enquanto arrastava todas as coisas que levaríamos para o corredor em sacolas.

— Não acho que seja coisa dele, Sam. Isso é quase uma assinatura da doce mãe modelo Aida Dalton.

— Você precisa mudar de família com urgência. Vou perguntar se aceitam te adotar lá em casa. Ninguém merece um encosto desses como mãe!  — ela quase se benzeu.

— O que eu posso fazer? É o meu car... — pausei, voltando depressa para dentro do cômodo em busca das caixas de livros.

— Esqueceu o que? — Sam estranhou.

— Próspero!

— “Próspero”? Achei que tinha deixado o nariz empinado em York. — ela riu, apoiada na porta assistindo minha busca enquanto esperava por uma explicação.

— Achei!— puxei o livro pesado de capa preta do fundo de um cesto com o restante de alguns romances e meus pares de meias. — É deste Próspero que eu estava me referindo. O original Shakespeariano.

— Realmente existe uma grande diferença. O de Shakespeare é uma pessoa mais tolerável.

— Nem sempre. — sorri, mesmo que aquela tristeza me apertasse o peito.

Quando Sam trancou o cômodo e fomos devolver a chave para o porteiro, não gostei da sensação de estar deixando uma parte de mim para trás. Tudo que tinha de poses nessa vida estava trancado em um quarto e a mercê da vontade de outros.

O porteiro disse que eu tinha um prazo de quinze dias para retirar tudo do prédio ou ele mandaria tudo para doação. Dava pra notar que paciência não era o forte dele, de qualquer forma não podia discordar que era seu trabalho.

E embora o começo da noite nova iorquina estivesse muito fria, decidimos caminhar um pouco. Na verdade não tínhamos dinheiro para pagar por um táxi, então a solução era andar algumas quadras até a Grand Central Terminal. Fomos conversando sobre minha viagem, os lugares, o clima e a comida, as pessoas... E foi nesse ponto que Sam prestou mais atenção.

Já estávamos diante da plataforma do trem quando comecei a narrar minhas surpresas na Inglaterra e Samantha não conteve um gritinho de animação que antecipou um grande tapa no meu ombro. E quando eu digo grande é porque o golpe me fez andar dois passos para o lado pra evitar cair no chão da estação.

— Eu disse que sabia. Samantha Russell nunca se engana! Aquele papo de livro emprestado, jantar, chá, echarpe. O nariz empinado estava no papo desde o começo, Branquela. Quem diria, “Kate a sedutora”. — despencou a rir alto — Agora me conta, como foi?

— Ele me beijou, oras. Na biblioteca da casa da família. Que por sinal é um casarão antigo incrível. Você devia ver os jardins, Sam, e toda aquela decoração de época e...

— Foco, Kate. Quero saber do beijo, não detalhes de uma revista de design.

Entramos no trem ainda conversando e meu coração se aquecia agradavelmente em lembrar daqueles pequenos momentos de surpresas com Leo. Dei todos os detalhes que achei necessários para deixar Sam em pequenos suspiros e risadinhas por toda a viagem. Até falei sobre o soco no nariz de Bruce, o que aparentemente serviu para Sam perdoar Leo pelas grosserias anteriores. Concordamos que qualquer um que conseguisse aquele feito merecia a salvação eterna.

Mesmo que fosse divertido rir as custas de Bruce, alguma coisa não me permitia esquecer as duras palavras do nosso último encontro. Campbell era um homem amargo por suas perdas e frustrações, mas definitivamente me sentiria melhor se ele esquecesse a minha existência e partisse para outra. Vida que segue.

Compramos cachorros quentes quando descemos na estação mais próxima da casa dos Russell e Samantha começou a fazer suas dezenas de perguntas sobre o meu novo suposto relacionamento.

— Então, quando vocês vão se ver novamente? Ele vem te ver, não é?

— Não sei. Foi o que pareceu quando ele disse que vinha buscar o livro emprestado. Mas não sei quando será isso, se for. Minha maré de sorte está longe de ser uma constante, Sam.

— Não seja boba, Branquela. Pode parar com essa auto sabotagem. Não acho que seu Carma deixe tudo passar como uma aventura qualquer. Vocês nem dormiram juntos.

— Sam... — comecei a rir depois de quase engasgar com uma mordida do cachorro quente. — Pode ser que eu vire uma sem teto nas próximas horas e você preocupada com isso? Vamos focar?

— O que as desgraças da sua vida têm a ver com sexo? E você dormiu na mesma cama que ele! Não sei se admiro sua força de vontade ou se te chamo de lerda, Kate.

— Me dê um desconto dessa vez. O universo está conspirando contra mim.

— E tem toda essa coisa da ex morta também. Você tem que ter certeza de que esse homem se esqueceu da falecida, Branquela. Não dá pra embarcar em um relacionamento que vem com uma ex-poltergeist de brinde.

Gargalhamos juntas e ajeitamos as sacolas com minhas coisas para caminharmos por mais alguns quarteirões. Não estava a fim de pensar em Bianca naquele exato momento. Preferia me concentrar em ter um telhado sobre a cabeça nos próximos dias.

 Estávamos distraídas com uma discussão de vizinhos que estava acontecendo em frente a uma pequena loja de conveniências no quarteirão de Sam, quando meu celular começou a tocar dentro da bolsa. Olhei o visor e Sam espiou logo de canto.

— Carma? — riu.

— Outro tipo de carma. Adria. — atendi, escutando logo os gritos ansiosos da minha irmã pelo fone.

— Kate? Onde você está? Você está bem? Não consegui falar com você, estou tentando há horas! Recebi todas as suas mensagens, estou em pânico!

— Já estou em Nova Iorque, Adria. Está tudo bem... Bom, de acordo com o possível. Você ainda está em Orleans?

— Estou em um hotelzinho de quinta no centro da cidade. Eu não podia ficar na casa do papai depois da briga que tivemos quando fiquei sabendo sobre o apartamento, Kate. Foi abuso demais dessa família de idiotas. Tem certeza que você está bem? Você está sozinha?

— Estou, Adria, pode relaxar agora. Samantha está comigo. — Olhei para Sam e nos sentamos no banco de cimento em frente a lanchonete da família. Ela passou o braço pelo meu ombro para colar o ouvido no celular e escutar a conversa comigo. — Como Kennedy reagiu?

— Ficou bem espantado e furioso, mas ele não acredita que Aida possa fazer algo tão drástico contra uma das filhas. Nem preciso dizer que tive que subir o tom com ele. Me arrependi um pouco de ter gritado tanto, mas ele precisava escutar algumas verdades. Não dá pra ficar acreditando na Terra de Oz para sempre. — Adria bufou, claramente revoltada. Dava para escutar seus saltos batendo no assoalho do lugar onde estava, andando de um lado para o outro. — Mas eu tenho uma notícia para você que deve deixar bem claro o motivo da Sra. Dalton ter feito isso, Kate.

— Não me diga que... — já previa a informação.

— Pois é, princesa. Eles se separaram novamente. É claro que Aida jamais ficaria com nosso pai agora que ele não tem mais nenhuma parte da companhia. E ela conseguiu abocanhar uma boa parte das coisas com o advogado que pagou desta vez. Tia May disse que ela voltou para o apartamento e que tinha conseguido um decorador maravilhoso de Nova Iorque, para reformar tudo. Mas me fala, Princesa, onde você vai ficar agora? Quer que eu te empreste o apartamento da empresa pra você ficar em Manhattan? Tenho alguns amigos advogados que podem olhar o seu caso e dar alguns conselhos sobre o que fazer.

 Aquilo fazia sentido. Enquanto as festas do fim de ano deixavam Kennedy Dalton distraído com o clima natalino, Aida mexeu os pauzinhos para conseguir o que desejava. Não era de se surpreender que tenha conseguido tirar o apartamento do meu pai como parte do novo acordo de separação.

Ficava cada vez mais claro para quem eu havia puxado o lado trouxa da família. Obrigada, pai.

— Vou ficar bem, Adria. Essa noite vou ficar na casa da Sam e amanhã começo a pensar em algo. Vou sair para procurar algum lugar que caiba no meu orçamento de aluguel.

— Não vou te despejar do apartamento, Princesa. — ela riu um pouco, parecendo mais calma.

— Eu sei disso. Mas acho que aprendi uma dura lição sobre apartamentos. Prefiro encontrar outro porão por aí. Acho que combinam mais comigo. — tentei rir, mas foi um fiasco. — Alguma notícia sobre nossa avó?

— Nada. Vou tentar conversar com ela mais uma vez antes de voltar para Roma, mas não crie expectativas, Princesa. É mais fácil se conformar com o fato de que aquela mulher vai morrer com o coração seco de maldade antes de fazer qualquer coisa boa que possa valer um ponto no score celestial. Não desanime, okay?

— Não vou.

— Sei que não. Você é mais guerreira do que pensa, Kate. Vai sair dessa com toda a certeza.

Sim, eu tinha aquela certeza. Mas havia muito a ser feito ainda. Conforntar meu pai era apenas uma delas, com o bônus de enfrentar minha amada mãe. Já era um bom começo.

A conversa com Adria ainda durou alguns minutos. Ela com toda sua preocupação tentava amenizar tudo com seus risos afetados e perguntas ansiosas, e logo estava repetindo para ela tudo sobre Londres e York que já tinha contado para Sam até ali. Não podia esperar mais de Adria, nem pedir nada. Eu estava tomando as rédeas dali por diante.

Chegamos à modesta casa de Samantha com muito frio, os dedos gelados, mas muito contentes em finalmente descansar os pés depois da caminhada até aquele esconderijo dos Russell.

A casa era na verdade o primeiro andar do pequeno prédio sobre a lanchonete da família, um imóvel de gerações e que já havia sido garagem, mercado de pulgas, loja de ferragens e sapataria, antes de ter a vaga semelhança com o lugar atual. Agora abrigava toda a família Russell, que era numerosa, barulhenta e sorridente, mesmo que se apertassem nos quartos pequenos e na minúscula sala de tevê na disputa do controle remoto para decidir que programa iam assistir durante o jantar.

O lugar não tinha elevador, afinal era um imóvel antigo e todos costumavam subir aquele único lance de escadas sem reclamar muito. Então depois do acidente de Jenny, eles sempre revezavam para carrega-la degraus acima.

— Ainda bem que vocês chegaram. Achei que não ia sobrar comida pra vocês se demorassem mais um pouco. — A Sra. Russell riu, ajudando com as sacolas que tínhamos trazido. — Vou esquentar o caldo mais um pouco.

— Tabby, olha só quem chegou — Jenny veio trazendo o gato sobre suas pernas. A cadeira de rodas tinha deixado as paredes marcadas pelo corredor ser estreito e dava para ver que as portas dos quartos tinham sido quebradas para facilitar as curvas da menina.

— Hey, Tabby! — apanhei o gato, que não pareceu muito feliz em um primeiro momento. Acho que ele imaginava que eu tinha o abandonado e não podia culpa-lo. Bastou alguns afagos para pular dos meus braços e correr pelo corredor, direto de volta para o quarto.

— Kate, você pode usar o banheiro se quiser. Eu vou pegar umas toalhas pra você tomar um banho antes de comer, está bem? — Sam sorriu e nos apertamos para passar pela sala e seguir para onde minhas malas estavam.

A avó de Sam estava no quarto da frente, balançando em sua cadeira de madeira e ressonando baixinho com a tevê ligada sobre uma cômoda. A irmã mais velha de Sam dormia ali, em uma cama de acampar improvisada ao lado da cama da avó, que estava vazia agora.

— Nichole está trabalhando com meu pai hoje. A lanchonete fica bem movimentada no final do ano, não dava pra ele e aquele garçom desajeitado cuidarem de tudo. — Sam comentou quando percebeu que procurei pela irmã dela em algum lugar. Não tinha muito contato com Nichole, mas ela sempre me pareceu uma mulher muito sensata e dedicada.

A Sra. Russell gritou por Sam na cozinha e fiquei ali entre minhas malas e sacolas, procurando por algo quente e confortável para vestir. Pelo visto tinham arrumado um colchão ao lado do beliche que Sam e Jenny dividiam, um cantinho simples e decorado com pôsteres de ídolos adolescentes e bandas de garotos — claramente o lugar preferido da mais nova.

Foi muito bom tomar um banho após o dia cansativo, a viagem e os transtornos. Um momento de paz e um pouco de reflexão embaixo da água. Melhorou ainda mais quando ao sair fui recebida na cozinha com um generoso prato de frango ao molho com batatas, claramente o famoso prato natalino da família Russell.

Contei um pouco sobre a viagem para Jenny e sua mãe enquanto jantava na companhia de Samantha , e depois peguei todas as lembranças que havia comprado para elas em Londres e York. Os olhinhos de Jen chegaram a brilhar como se fosse natal outra vez.

Estava detalhando os jardins diante do palácio de Buckingham quando o Sr. Russell entrou pela sala. Pelo visto passava das dez da noite e nem tinha percebido a hora passar.

Ele me cumprimentou educadamente, tirando o casaco pesado e entregando para a esposa uma sacola com aventais sujos para lavar. Parecia visivelmente cansado da jornada diária, cheirando brevemente à café, cigarros e gordura de fritar. Com sua chegada, as risadas e conversas em voz alta sumiram. Todos respeitavam o dia exaustivo do Sr. Russell.

— Nichole não vem para casa hoje? — a Sra. Russel comentou enquanto servia um grande prato de jantar para o marido, alheia aos sons de animação que Jenny demonstrava com os souvenires da Inglaterra no outro lado da mesa.

— Disse que vai dormir na casa daquele Jenkins. Me parece um bom rapaz. Cabelos bem cortados, barba feita, nada de piercings ou tatuagens. Gente do bem.

— Pai. — Samantha ralhou. Não entendi muito bem o motivo. — Já conversamos sobre isso.

— Só fiz um comentário. — ele deu de ombros. — Sabe que quero o melhor pra você.

— Já chega, Oliver. Coma e pare de perturbar sua filha. Ela pode muito bem escolher o rumo da própria vida e se Deus quiser, vai ser um bom caminho.

— Samantha vai casar? — Jen disparou de repente, entrando na conversa. O Sr. Russell engasgou com o molho e precisou de um guardanapo de papel.

— Quê? Não! — Sam estrilou, batendo o copo de suco na mesa.

— Você vai casar com quem? — entrei no tópico. Tinha me esquecido totalmente de que Sam estava se envolvendo com uma pessoa desde sua viagem para Pensilvânia nas férias. Será que o dito príncipe encantado tinha formalizado um pedido e minha amiga estava comprometida?

Sam ia ouvir umas boas se estivesse me escondendo isso.

— Já disse que não. Tá surda, Branquela?

— Samantha, sem racismo na nossa casa. — o Sr. Russell falou por trás da mão que o impedia de cuspir qualquer pedaço de frango sobre o prato.

— Racismo? Kate é quase transparente! — Sam começou a rir, apontando pra mim. Tive que concordar com a cabeça, meu bronzeado de apartamento era lindo.

— Você aceita bolo de nozes, Kate? — a mãe de Sam tirou um tupperware da geladeira, tentando mudar o assunto na mesa.

— Um pedaço, obrigada.

— Foi o namorado da Sam que trouxe o bolo no almoço de natal. — Jen cantarolou, brincando com o mini ônibus vermelho de Londres sobre a mesa. A Sra. Russel suspirou audivelmente. Sua tentativa tinha fracassado, mas eu ainda ganharia um pedaço de bolo.

— Pelo menos ele tem educação. — Oliver Russell comentou, separando os ossos de frango sobre um prato limpo — Não é apenas por viver todos os dias entre livros que faz dele um homem inteligente. Não se pode confiar em jovens hoje em dia, ainda mais quanto à aparência. Na minha época já teriam raspado tudo aquilo com uma boa máquina e navalha. Muito mais higiênico.

A Sra. Russell mal colocou o prato de bolo na minha frente e tive um estalo repentino. Olhei diretamente para Samantha bem ao meu lado e apontei o indicador.

— Você está saindo com o Lex?

Minha voz saiu mais alta do que tinha calculado, o que resultou em uma cozinha completamente silenciosa e apenas minha surpreendente resolução de caso ecoando entre os azulejos.

— Samantha, você não contou pra Kate? — Jenny riu baixinho, fingindo estar muito surpresa com a confusão. Acabou recebendo um olhar zangado da mãe.

— Será que a gente pode conversar?

Sam olhou pra mim e sabia que eu reconheceria aquele olhar perigoso e conhecedor de filmes mafiosos italianos em qualquer lugar.

Afastei minha cadeira, peguei meu prato e segui com ela para o quarto. Fechamos a porta em seguida, para ter um pouco de privacidade e comecei assim que ela se encostou ao batente.

— Quando você ia me dizer? — tentei articular melhor a frase, mas não sabia se mastigava o bolo de nozes (que estava delicioso) ou se expunha minha mais vaga surpresa sobre a situação.

— Íamos contar juntos, assim que você voltasse. Quando as coisas estivessem mais tranquilas depois de toda essa doideira do seu apartamento.

— Sam, meu sobrenome é Dalton. As doideiras me perseguem, é uma coisa genética. Você podia ter me contado antes, quando tudo começou. Você sabe que eu ia entender, vocês são meus melhores amigos! Caramba... Como isso aconteceu? Quero dizer, vocês são meus amigos e eu nem percebi!

— Achamos que você não ia receber muito bem. — Sam suspirou, se sentando no beliche ao meu lado. Suas bochechas estavam vermelhas.

— Acharam? — comecei a rir — Sam, eu fico muito feliz! Um pouco brava por ter sido claramente negligenciada das novidades, mas eu perdoo vocês. Mas agora não entendi aquele lance das mensagens durante suas férias... Jurava que você tinha encontrado um cara de outro lugar.

— Bom, nós já nos conhecíamos antes, como eu te disse.

— Óbvio.

— E começamos a trocar mensagens nas minhas férias, primeiro por motivos profissionais, depois por bobagens e conversas durante a noite que acabaram nos aproximando e quando voltei, achei que seria interessante a gente sair pra... Você sabe, nos conhecermos melhor.

— Hm... E isso na linguagem de Samantha Russell quer dizer...

— Que as coisas estão dando certo. Que estamos oficialmente namorando.

Okay. Aquilo era estranho. Bonitinho, mas estranho. Gostaria de conversar com os aliens que trocaram minha amiga por um clone que dava sorrisos apaixonados ao dizer sobre um cara de dreadlocks que gerenciava uma livraria.

— Minha melhor amiga, envolvida com Lex Luthor. O que será do universo agora? — apontei o garfo de bolo para ela, rindo ameaçadoramente. — Mas não ouse me esconder mais nada, Samatha Russell, ou serei obrigada a usar minhas técnicas secretas com armas letais.

— Um garfo de bolo, Branquela? — ela começou a rir.

— Posso fazer horrores com isso. Não me teste.

Rimos e não consegui evitar a lembrança do primeiro café com Luke e Leo, de como ameacei o carma com um garfo de bolo como aquele. Sam começou a contar sobre seu primeiro estranho encontro com Lex, pouco depois da inauguração do meu antigo novo apartamento. Estava feliz verdadeiramente por ela. Sabia que de alguma forma ela ficaria muito bem nesse relacionamento (e que eu exigia ser dama de honra do casamento. Levei um murro no braço por conta disso).

No fim da noite, deitada no meu colchão rodeado de bandas pop e garotos com muito gel no cabelo, me pus a pensar sobre como seria meu próximo dia. Era como reviver meu primeiro dia em Nova Iorque, perdida e ansiosa por alugar um lugar para ficar.

Me lembrei então da curta conversa séria que tive com meu pai quando nos vimos da última vez, após aquele jantar marcado no Babillon. Não imaginava que tudo acabaria de um jeito tão tumultuado e...

Tive uma ideia.

Subitamente me recordei da casa da Sra. Fighbright e seu porão. Minha própria toca. Talvez eu tivesse um golpe de sorte e o lugar não fosse alugado novamente. Não é todo mundo que aceitaria morar em um lugar daqueles, mesmo com uma localização tão boa.

Será que Maxwell me aceitaria como inquilina novamente?

******

Estar mais uma vez naquela rua repleta de sobrados pintados em tons pastéis era uma felicidade que se igualava a de uma criança diante daqueles doces coloridos no feriado do Halloween. E com a vantagem de que não havia travessuras, nem gente com fantasias ruins, nem aqueles tenebrosos sprays de teias de aranha que grudam no cabelo e que fedem a limão.

A manhã de sábado havia surpreendido todos com o começo da neve e a temperatura acabou despencando mais alguns graus, o que resultava em ruas lisas, poucos carros e muita gente de mau humor jogando sal na entrada de casa, carregando pás e gritando com os filhos jogando bolas de neve misturada com lama da calçada.

Fiz uma parada no Hallow’s Barn para comprar um moccachino com chantilly e aquecer um pouco a ponta do meu nariz, que jurava ser capaz de quebrar se encostasse em qualquer lugar. A atendente adolescente dos cabelos loiros me reconheceu e veio com um sorriso, talvez esperançosa de ganhar uma gorjeta festiva. Paguei com vinte e cinco centavos a mais.

Pela primeira vez, perdi um pouco de tempo para admirar aquela vizinhança. A casa amarela da esquina estava decorada, finalmente de acordo com o feriado certo e seu papai noel insistente no teto. Alguns lugares tinham simpáticas guirlandas e alguém estava tostando castanhas em uma das casas. Renas e trenós estavam por toda a parte e até a velha Fighbright tinha colocado um ramo de visco decorado diante da porta.

Tudo parecia tremendamente igual e me encheu de esperança ver o porão apagado e fechado, exatamente como eu havia deixado.

— Senhora Fighbright? — bati na porta três vezes, para dar sorte. Havia tentado ligar para Max por horas, mas o número não me atendia. Provavelmente ele havia mudado de celular ou estava de viagem para algum lugar ensolarado e cheio de caras musculosos com óleo de bronzear pelo corpo.

Chamei e bati mais algumas vezes, tentando espiar pela janela da frente. Comecei a ter medo de encontrar um cadáver ao invés da minha antiga vizinha mal humorada.

— Dolores!

— Ela não está aí, moça. — uma voz me respondeu do outro lado da rua.

Já havia visto aquela mulher e os filhos algumas vezes pela manhã. Ela tinha um cabelo engraçado com cachos que lembravam rolinhos e uma mania insistente de usar um roupão verde piscina com pantufas cor de rosa. Sempre colocava suas duas crianças rechonchudas no ônibus das sete e beijava suas cabeças na mesma ordem. Primeiro o garoto mais gordinho, depois o mais baixo.

— Sabe que horas ela volta? Que dia? — deduzi que a Sra. Fighbright estava curtindo as festividades com o restante da família ou em um caso menos extremo, teria saído para comprar alguma coisa por perto.

A vizinha fez um sinal e desci os degraus da varanda para encontrar com ela na calçada. Seu rosto tinha um olhar grave e sua voz foi quase um cochicho, como se estivesse prestes a me confidenciar o segredo da vida.

— Acho que ela não volta, meu bem. Dolores teve um treco antes do natal. Caiu sozinha das escadas e o Sr. Finnigan só a encontrou porque veio entregar algumas frutas cristalizadas, como ele sempre faz na data. Pobrezinha.

— Ela morreu? — juro que me espantei. Pela forma com que a mulher noticiava, estava esperando ela passar o endereço do túmulo para uma visita.

— Oh, não. Está internada. Acho que foi o coração. Ou a cabeça, não me lembro direito. A Sra. Folks disse que escutou um homem dizer que poderia ser câncer.

— Sra. Folks?

— Da casa amarela. Elas tocavam juntas nos ensaios da banda.

— Banda? — Céus, aquilo era muito confuso. Dolores Fighbright participava de uma banda? Estava me esforçando para não imaginá-la como líder e vocalista de uma banda de rock para a terceira idade. Me esforçando demais.

— Claro. Ela dava aulas de clarinete também. Bons tempos.

— E por um acaso a senhora tem o contato de algum parente? Estou tentando falar com Maxwell e...

A mulher retorceu o rosto. Tive a impressão que estava prestes a ter uma síncope ou sair gritando que tinha acabado de visualizar um trecho do inferno.

— Não adianta tentar falar com esse neto desvirtuado da pobre Dolores. Nós tentamos contato com alguns parentes, mas nenhum deles se dispôs a vir. Esse crápula não aparece por aqui há meses, imagine se teria algum interesse na avó adoentada. Se ela morrer, devem aparecer às pencas para dividir a casa.

Aquela aversão a Max não me caiu muito bem no estômago. Tinha certeza de que a mulher estava o julgando por seus modos espalhafatosos e aquele cabelo pink, mas fingi não notei aquele tom de nojo.

Dolores não era de fato uma mulher que devia inspirar muito amor familiar. Nos nossos pequenos encontros, sempre demonstrou não querer a minha presença, quanto menos a minha estadia no seu porão, aceitando a contragosto a vontade do neto. Mesmo assim, imaginar aquela senhora abandonada em um quarto de hospital, me causou algo ruim.

— A senhora sabe em que hospital ela está?

— Sim, eu mesma a visitei na semana passada. Ainda não tive tempo com as festas e os parentes em casa, você entende?

Óbvio que eu não estava pensando em ir atrás da Sra. Fighbright e pedir que alugasse aquele cômodo, ignorando seu estado de saúde. Na verdade, a única coisa que me veio em mente era fazer uma visita para ela, já que ninguém parecia disposto àquilo.

Se eu tivesse um mal estar súbito ali, nas escadas da varanda, possivelmente teria um destino bem parecido com o dela. Com todos os familiares em lugares distantes e pouquíssimos amigos, seria uma pessoa presa em uma cama na espera da alta para voltar a minha vidinha problemática. Talvez algumas pessoas nem soubessem o que aconteceria comigo ou não se interessassem.

A vizinha atravessou a rua, voltando de sua casa com um pedaço de papel pardo anotado com um crayon vermelho, com o nome do hospital e o telefone da recepção. Fez a indicação de qual metrô eu deveria tomar ou os ônibus mais próximos, realmente prestativa. Parecia de fato preocupada com a velha Dolores.

Pensei em mandar uma mensagem para Samantha, contando o ocorrido, mas não fiz. Naquele horário ela devia estar ocupada na livraria, atendendo as trocas de natal e as dezenas de turistas de fim de ano. Faltavam oficialmente três dias para o ano acabar.

Não estava a fim de fazer retrospectivas sobre meu ano. Havia coisas boas nele, mas uma leva pesada de desastres que faria qualquer abrupta revolta da natureza (como um tsunami ou terremoto) parecer coisa de criança.

Saí da vizinhança com certo peso na consciência. Não era absolutamente nada para a Sra. Fighbright, mas me parecia tão errado ignorar o acontecido e não fazer uma visita, que fiquei parada no ponto de ônibus decididamente refletindo um próximo passo. Quando a linha destinada passou por ali, acabei entrando.

Era claro que eu não teria o porão de volta naquela situação, contudo sempre gostei muito de Maxwell e era grata pela imensa paciência daquela mulher por me ter como vizinha por um ano inteiro sem reclamar. Estava decidido: Dolores receberia uma visita de Katerina Dalton e que os deuses fossem gentis.

Comprei algumas petúnias vermelhas no quarteirão do hospital e entrei pelo saguão quase desaparecendo atrás daquela profusão de flores. A enfermeira atrás do balcão acabou sorrindo pra mim, ajeitando o crachá que insistia em cair de lado pelo peso extra de um gorro de papai noel preso no alto da letra A do seu nome.

— Posso ajudar?

— Eu estou procurando por Dolores Fighbright. Ela está internada aqui.

A mulher digitou algumas coisas em seu computador e consultou alguns papéis ao lado.

— Sim, está na ala B, quarto 210. Mas o horário de visitas começa daqui uma hora. A senhorita terá que aguardar.

Agradeci a ajuda e encontrei um assento vago na sala de espera quase lotada, repleta de crianças fungando, pessoas com intoxicação alimentar e pequenos acidentes na neve. Todos aqueles típicos casos das festividades.

Aquela uma hora foi longa e tediosa. Queria me animar a apanhar o celular e jogar alguma coisa boba para passar o tempo, mas não queria me sentir tentada a enviar uma mensagem qualquer para Leo. Na verdade, o silêncio dele estava me incomodando profundamente.

Levava em consideração o detalhe de que ele não parecia o tipo de homem que gostava de tecnologia, menos ainda daqueles que se dá bem com ela. Porém qualquer coisa que fosse, mesmo de Luke, era esperada. Afinal o ruivinho já deveria estar me lotando com seus emoticons sorridentes e coloridos... A não ser que algo tivesse acontecido.

Uma voz no alto falante da sala anunciou que o horário de visitas estava iniciando e indicava que era proibido fumar e entrar nas dependências com uma série de coisas que não consegui recordar. Só abracei o vaso de petúnias e entrei pela porta apontada por uma placa, procurando o elevador para encontrar a ala B no segundo andar.

Cheguei a um corredor muito longo e largo, repleto de cartazes sobre campanhas de saúde e indicações de vacinas. Duas enfermeiras passaram por mim com discretos sorrisos, mas não pararam para fazer nenhuma pergunta. Os quartos estavam adiante e os números eram bem discretos nas portas.

O 201 estava na metade do corredor, bem perto de uma bifurcação que apontava a cafeteria e um caminho para a maternidade. Pelo visto o começo e o fim da vida ficavam bem próximos nos corredores dos hospitais, ligados pelo amor ao café.

Bati de leve na porta, apenas para anunciar que estava entrando e girei a maçaneta devagar, espiando pela fresta. O quarto tinha uma grande janela envidraçada coberta por uma cortina branca muito fina, que permitia ver o lado de fora. Era um quarto particular, possivelmente uma das boas regalias do plano de saúde que Dolores devia pagar.

Ela estava deitada, seu pulso monitorado por uma máquina posta em um carrinho do lado da cama. Não emitiam muitos ruídos, apenas algum esporádico bipe que media sua pressão arterial. Parecia tranquila, assistindo sem muito interesse um programa de culinária na tevê colocada na parede.

— Sra. Fighbright?

Dolores olhou na minha direção. Era estranho vê-la com seus cabelos brancos soltos, os olhos esmiuçados quando me reconheceu. Sua boca estalou e claramente encheu o peito de ar, suspirando profundamente.

— O que faz aqui? — sua voz estava chiada e rouca.

— Achei que gostasse de petúnias. Posso colocar aqui? — mostrei o criado ao lado da cama, onde havia algumas coisas dela. Seus óculos, um livro e muitos comprimidos.

— Faça o que quiser.

Arrumei as flores no vaso e ajeitei em um ângulo que ela pudesse ver. Traziam alguma vida ao quarto pálido.  Fiquei em pé ao lado da cama, observando a fragilidade daquela senhora de semblante tão forte. Não sabia se tudo aquilo era orgulho ou se a vida tinha tornado Dolores um tipo de pedra contra a maré.

— Como a senhora está? Sua vizinha da frente me contou que estava aqui. — Dolores soltou um muxoxo. Tive a impressão de que ia tirar aquela bengala de algum canto e acertar minha cabeça em cheio com ela no melhor estilo Disney, evocando “Você tem que deixar o passado para trás”.

— Estou numa cama de hospital, Dalton. O que esperava?

— Ela não soube me dizer o que aconteceu com a senhora. Então fiquei preocupada e vim fazer uma visita. Pelo visto a senhora não tem recebido muitas.

Puxei uma cadeira reclinável que estava no canto e me sentei, para ficar na altura dos olhos da Sra Fighbright. Algo pareceu estremecer dentro dela, com certeza algumas palavras mais ríspidas para me responder ou quem sabe me mandar embora.

— Por que você veio até aqui, Katerina? Maxwell mandou você vir? Se ele quer mais dinheiro, pode dizer que não tenho nenhum! — ela desviou os olhos cinzentos de volta para a tevê, mas eu sabia que não estava mais assistindo nenhuma receita de pernil dourado com cebolas.

— Não falo com Maxwell faz um bom tempo, Sra. Fighbright. Até tentei contato com ele hoje, mas pelo visto o número dele mudou.

— Isso não é nenhuma novidade. Assim que ele souber, vai estar aqui na porta como o abutre que sempre foi, esperando meus ossos soltos da carne pra poder se banquetear. Você disse que falou com aquela mulher, a Sra. Bernd que mora em frente...

— Sim, eu tive alguns problemas e...

— Não me importo com seus problemas, Dalton. Só quero saber porquê aquela mulher foi dar notícias minhas para você.

Que amor de velhinha.

— Eu queria falar com o Max, Sra. Fighbright. Estava entrando em contato com ele para voltar a alugar o seu porão, como ele não me atendeu, pensei em falar diretamente com a senhora.

— Então você ainda não se casou. Não me surpreende.

Opa. Que conversa era aquela de que ainda não me casei?

— Não, eu não me casei. Não que eu saiba.

Dolores apertou os botões de um controle que estava em sua mão, fazendo a cama se mover e ajuda-la a se sentar no colchão. Precisou acomodar o tubo de oxigênio que a ajudava a respirar e pareceu bem mais ameaçadora daquela forma. Eu ainda tinha a vantagem de poder correr se ela me arremessasse alguma coisa.

— E está querendo voltar para o meu porão. Você não tinha conseguido um apartamento em algum outro lugar da cidade? Achei que tivesse se casado.

— Eu me mudei para um apartamento, mas não tem nada a ver com casamento. — estava estranhando o rumo daquela conversa.

— E o seu noivo?

— Eu não tenho nenhum noivo, Sra. Fighbright.

— Ora, não me trate como uma ignorante, Katerina. O homem que sua família queria que você se casasse. Bruce alguma coisa... Onde ele está? Desistiu de você?

— Como é que a senhora...

Dolores fez um arco com os lábios e as vagas sobrancelhas grisalhas. Não havia nenhum tipo de piedade pela minha ignorância sobre seu entendimento na minha vida. E eu estava bem surpresa com o quanto aquela mulher sabia sobre mim mesmo sem termos conversado mais do que algumas frases durante todo o tempo que estive morando embaixo do seu assoalho.

— Maxwell sempre soube bastante sobre a sua vida, Dalton. Acredito que ele tenha suas próprias fontes.

Me lembrava vagamente de ter contado algo sobre o casamento para Max no primeiro dia que nos encontramos na rodoviária da cidade, bem quando cheguei em Nova Iorque.

“Ovelhas negras ficam juntas, lindinha”.

Mas de todas as conversas que tivemos por telefone, quando precisava de maiores prazos para o aluguel ou reclamava de algum vazamento ou canos entupidos, nunca havia mencionado sobre Bruce Campbell para ele. E nem tinha motivo.

— Não fique tão surpresa. Meu neto infeliz nunca foi uma pessoal digna de carregar o sobrenome que tem. Se fosse apenas por aquele cabelo horrível e o mal gosto para se vestir, seria fácil. Mas o caráter daquele menino é como mofo em um pedaço de pão.

— Sra. Fighbright... Porque seu neto contou essas coisas sobre mim?

Aceitava que as pessoas fofocassem sobre mim às vezes. Falar sobre a vida alheia era um passatempo para muitos, mas eu não conseguia acreditar que Max e a avó tivessem algum tempo para tomar um café juntos e conversar sobre a vida amorosa da mulher que alugava seu porão. Ele mesmo havia dito que não sabia se a mulher estava viva ou morta e precisava se certificar para informar o restante da família e o amor entre ele e Dolores não era nada bonito.

Me lembrei do dia que conhecia a casa de Dolores, coberta por aqueles panos brancos e com tudo embalado. Max havia recebido uma quantia em dinheiro na ocasião, claramente acostumado a ganhar aquilo da avó. Afinal, o que aquele homem estava fazendo?

— Porque ele julgou que era necessário. Nunca fiz nenhuma questão de saber da sua vida, Dalton... Mas sabe, possivelmente eu devo morrer nessa cama. Pouco me importa os seus problemas — reclamou.

— Não diga isso, Sra. Fighbright. — bem, eu não ia desejar que a mulher morresse, não é?

— Ora, me deixe terminar de falar. — chiou rispidamente. — Eu passei todo esse último maldito ano sobrevivendo à sanguessuga do meu neto e aturando todo o tipo de chantagens para me manter naquela casa. Tudo pra que? Para acabar desse jeito, inválida e dependendo de uma desconhecida para me trazer flores. Uma desconhecida tagarela.

— Mas por que seu neto estava fazendo isso? Naquele dia na sua sala de visitas, a senhora entregou dinheiro para ele, não foi? — resolvi ignorar o “elogio” e ir ao ponto. Alguma coisa naquele discurso da mulher me arrepiava a nuca.

— Naquele dia e em tantos outros. Você não tem a vaga ideia de com quem se meteu, Dalton. Tudo que Maxwell quer é abreviar a minha vida. Por ele eu já estaria internada em alguma casa de repouso barata, esperando a morte chegar. Mas eu comprei minha estadia naquela casa com tudo que tinha. Dinheiro, joias, pertences caros, móveis que consegui vender. Minha vida se resumia a esperar o dia que um caminhão estacionaria na porta e levaria todo o restante para onde bem entendesse.

Okay, aquilo era absurdo. Então Maxwell chantageava a avó como um dos filmes que Samantha gostava de assistir, em que os mafiosos cobravam taxas dos comerciantes para mantê-los seguros. Se Dolores desejasse ficar na casa, tinha de pagar o preço. Aquilo era absolutamente revoltante.

— E a senhora nunca fez nada? É a sua casa, não é? Ele não pode simplesmente fazer isso sem nenhum tipo de consequência. — sim, eu estava irritada, mas Dolores apenas riu.

— Acha mesmo que não teria feito alguma coisa se pudesse? A casa é minha, mas por ser uma cega, passei o imóvel para meu neto há alguns anos, quando minha filha faleceu. Ele era apenas um menino, com certeza eu estaria morta quando fosse homem. O tempo passou, eu continuo viva, e o meu próprio sangue vem me atormentar por esse erro. Tudo que ele precisa é comprovar que não tenho condições de viver sozinha e em questão de dias estarei esticando as pernas em outro lugar longe dali.

Fiquei em silêncio por um instante, digerindo aquilo. Nunca imaginei que Max fosse capaz de tamanha crueldade contra a própria avó. Ela era uma mulher difícil e amarga, porém me perguntava se aquela era realmente Dolores Fighbright ou se seria apenas uma casca grossa que havia se formado sobre ela para defendê-la do que estava sofrendo.

— Isso é absurdo.

— Sim, realmente é. E saber sobre a sua vida faz parte desse absurdo, Dalton. Desse abuso, como costumo dizer. — ela parou um pouco para tossir, ficando brevemente pálida. Me levantei e ofereci um copo de água para ela.

— Seu neto contou o que sabia sobre mim... — recomecei, para que ela continuasse. Meu estômago estava dando voltas.

— Porque sempre fazia perguntas sobre você. Me ligava para saber se você estava no porão, se tinha saído, com quem estava.

— Max estava me vigiando? — ergui a voz sem notar e tive que tampar a boca em seguida. Meu coração estava na garganta. Não estava mais entendendo o que tinha acontecido.

— Ele dizia que estava cuidando de você. Uma semana depois da sua chegada, ele apareceu dizendo para prestar atenção. Que sua família queria que ficasse segura na cidade. Alguém estava pagando para saber como você estava.

— Tudo... É insano demais.

Voltei a me sentar enquanto Dolores bebericava a água com uma expressão pesada. Ela precisava contar aquilo e talvez quisesse dizer isso a algum tempo, com medo da consequência de perder o próprio lar. Eu sabia como era dolorido se perder um lugar que é considerado casa e imaginava o medo que aquela senhora devia sentir em deixar toda sua vida para trás, suas memórias e história vivida entre aquelas paredes.

Mas agora tudo que girava dentro da minha cabeça é que alguém tinha sido frio o suficiente para se certificar de que Katerina Dalton seguiria na linha. Uma pessoa que aparentemente não sentia nenhum tipo de remorso ou de peso na consciência por manipular o que fosse preciso para fazer com que as coisas dessem certo e que eu finalmente, me casasse. E eu só conhecia uma pessoa capaz disso.

— Sinto muito, Katerina. — Dolores soou um pouco mais rouca, mesmo com os goles de água. — Já que você foi até a minha casa atrás daquele traste, julguei justo que você soubesse a verdade sobre ele. Não tenho ideia de onde ele esteja agora, mas duvido que ele alugue qualquer coisa para quem quer que seja.

— Eu compreendo... — respondi trêmula. Aquela trama me causava repulsa, nojo, um ódio insuportável.

— Obrigada pelas flores.

A Sra. Fighbright pareceu repentinamente mais cansada e apertou os botões para a cama voltar a se deitar. Fiquei observando seus olhos cinza fixos no teto, sua expressão vaga e envergonhada pelo papel do neto.

— Maxwell não vai ficar impune pelo que fez com a senhora, Dolores. — me levantei e apanhei a mão dela, decidida. Trocamos um olhar de reconhecimento uma com a outra. Eu, cansada de ser tratada como um objeto – ela, cansada de ser manipulada como um. — Eu não me importo que ele tenha ganho qualquer coisa por me vigiar, mas barganhar a sua paz é imperdoável. Fique tranquila, eu vou tentar resolver tudo e não vou me esquecer da falsidade do seu neto.

Dolores apertou minha mão e seus olhos cintilaram com algumas lágrimas. Eu estava certa quando fui entregar as chaves para ela na minha partida do porão. Ela precisava de alguém, de palavras e conversas, talvez de um bom chá para amolecer seu coração novamente. Aquela era a gota d’água.

Me despedi silenciosamente dela e voltei a cadeira para o lugar antes de caminhar até a porta. No segundo que coloquei meus pés para fora, Fighbright soou lá de dentro.

— Katerina. Não se curve pra essa gente. Não aceite as coisas como eu aceitei.

— Não se preocupe, Dolores. Eu não vou.

Deixei o hospital com o coração disparado, mas não derramei nenhuma lágrima, mesmo que sentisse alguma coisa estilhaçada no meu peito. Era dolorido, mas necessário.

Era a hora de cortar alguns laços definitivamente. Para o meu bem, minha paz e liberdade.

Era hora de voltar para casa. De volta a Nova Orleans.


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