Orleans escrita por MarianaCamara


Capítulo 17
Capítulo 17 - Wherever you will go




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O que se pode esperar de alguém que é despejada em pleno dia de natal? Ou melhor, qual a previsão para o fim de ano de um ser humano que consegue perder mais coisas na vida do que ganhar?

Eu precisava me benzer, definitivamente.

Estava deitada com as costas contra as costas de Leo quando terminei de ler aquela mensagem de Sam. Meu coração doeu, meu estômago revirou, meus pés ficaram gelados e tudo que consegui fazer foi morder o indicador para não começar a chorar. Eu tinha o direito de chorar.

Mesmo na paz do Knight’s Inn, dividindo uma cama com Leopold D’Orleans, minha vida continuava me surpreendendo e forçando para que as coisas mais improváveis acontecessem. O que me lembrava da tia May recitando a bíblia em uma das noites de Ação de Graças na minha infância, dizendo que tudo acontece por uma razão e que Deus tem um plano para todos nós.

Naquele momento, eu estava mais determinada a acreditar que Deus era um míope com sérios problemas de humor e tendência a piadas com um tipo muito peculiar de sarcasmo ácido contra mim.

Respirei fundo antes de deixar as cobertas para trás e sair da cama para andar pelo quarto, digitando uma dúzia de respostas para Samantha e enviando uma enxurrada de perguntas para Adria. Me sentei em uma cadeira ao lado da janela e fiquei observando a neve cair sobre York enquanto meu reflexo no vidro era um borrão iluminado pelo visor do celular enquanto a madrugada passava.

No colchão, semicoberto pelo edredom floral da pensão, Próspero dormia pesadamente e admirá-lo daquela forma tão inofensiva, distante de comentários irônicos, sobrancelhas arqueadas, citações de Shakespeare e modo Britanicus Raptores, era uma visão que me ajudava a afastar minha gritante ansiedade. Ainda era surreal ter aquele homem tão perto sem precisar me preocupar com as possíveis farpas que trocaríamos ou como deveria me portar. Era ainda mais surpreendente lembrar que meu maior carma do universo, agora só trocava beijos comigo — coisa que eu não sonharia que pudesse acontecer nem mesmo durante o Apocalipse.

Olhar para Leo me deixava com um sorriso bobo no canto da boca e desejando estar em algum lugar em que pudesse trazer um chá earl grey para ele pela manhã. Será que o Sr. Valois teria aceitado dividir minha humilde cama naquele apartamento em Nova Iorque?

Quer dizer... Se eu ainda tivesse um apartamento.

Naquele instante pouco iluminado da madrugada quase terminando lá fora, me peguei repensando nas minhas prováveis opções para desmantelar meus problemas, exatamente quando o visor do celular se acendeu, avisando novas mensagens.

Samantha repetiu mais de cinco vezes que eu deveria me acalmar, que todas minhas coisas estavam seguras e que eu não devia me matar de preocupação nos meus últimos dias de viagem. Reforçou que de nada adiantaria qualquer tipo de desespero e tomou as rédeas da situação, afirmando que estava levando meu colchão e algumas coisas para a casa dela — onde poderia ficar até que tudo se ajeitasse. Mas o pequeno detalhe de que Sam sequer perguntou qualquer coisa sobre o Carma ou York, já servia de alerta sobre a situação.

A senhorita Russell normalmente não perderia a chance de dizer uma coisa ou duas sobre minha ausência natalina, portanto eu sabia que Sam estava muito preocupada e provavelmente apenas tentando me acalmar do outro lado do oceano. Afinal, ela me conhecia bem o bastante para saber que eu estava quase surtando e que bastaria o dia raiar para ligar para ela.

Sim, eu estava surtando. E acredito que tinha muita razão nisso depois dos últimos dias.

Lentamente, sem que eu notasse de cara, Leo se moveu na cama. Seu corpo mudou de posição e seus braços puxaram um dos travesseiros para perto, até que devagar ele abrisse os olhos, espiando entre fronhas lençóis e edredom. Olhou o canto do quarto e a porta, depois arriscou as janelas, encontrando o olhar com o meu.

— Quase bom dia. — arrisquei com um pequeno sorriso, puxando os pés para cima da cadeira apenas para abraçar os joelhos.

— Ainda está escuro — ele quase bocejou com a voz amarrada de sono. — Boa madrugada, seria tecnicamente melhor.

— Parece ideal. Mas não vai demorar a amanhecer. Você ainda pode dormir um pouco mais.

— Você passou a noite nessa cadeira?

A sobrancelha de Leo tentou formar aquela curva vilanesca, mas a forma com que ele mantinha os olhos miúdos, apertados do recém despertar, impedia que parecesse muito profunda naquela questão. Ele afundou o rosto nos travesseiros para conter outro bocejo e enquanto se sentava entre as cobertas, arriscou um espreguiçar.

— Não toda. Fiquei alguns minutos na cama tentando contar as tartarugas, mas não funcionaram nada bem. E ainda tive algumas boas notícias para ajudar com a tranquilidade do sono...

Ah, a ironia.

— Notícias. O que exatamente?

Ergui o celular nas mãos e chacoalhei, indicando que o aparelho era cumplice da situação.

— Samantha me enviou algumas mensagens durante o dia. Dúzias delas na verdade, que não verifiquei antes e tive a brilhante ideia de ler antes de dormir. Ao que tudo indica, não tenho mais um apartamento com a porta amarela e tapete colorido na entrada para ofuscar seu bom gosto, Próspero.

Comecei a rir nervosamente em uma tentativa boba de não começar a chorar. Dizer aquilo em voz alta fez com que a dor de não ter mais algo só meu, fosse sentida com toda a força. O apartamento que eu tanto quis e tanto trabalhei para arrumar, estava perdido e eu tinha certeza de quem deveria culpar por aquilo.

Minha mão tremeu e deixei o celular no parapeito da janela, perdendo meu olhar para o lado de fora. Sentia a garganta ardendo e os olhos embaçados quando a mão de Leo repentinamente tocou meu ombro e seu reflexo se juntou ao meu na vidraça. Em um gesto ele beijou o topo dos meus cabelos e eu reuni minha mão com a dele, procurando me segurar diante do abismo de problemas em que conseguia me meter.

— Venha aqui. — ele buscou minha outra mão, me levando com ele para longe da cadeira e de volta para a cama.

Leo me fez deitar e me cobriu como faria com uma criança. Depois deitou ao meu lado, dividindo as cobertas e lençóis comigo, arrumando os travesseiros para que ficássemos na mesma altura e ele pudesse olhar diretamente para mim. Minhas bochechas arderam quando reparei como ele conseguia ser bonito mesmo com os cabelos todo amassados depois de um sono induzido por analgésicos (e a breve constatação tardia de que era um inglês muito sexy usando apenas aquelas calças amarrotadas).

— Me conte o que aconteceu. — era quase uma ordem, mesmo que com o tom suave de um pedido. Nada mais típico.

— É mais um episódio do seriado ruim da minha vida, nada mais. Uma perseguição dos criadores das forças cósmicas do universo, que vivem me colocando em mais e mais problemas. Quando acho que estou no caminho certo, algo acontece, o mundo caí, bombas explodem e eu tenho que tentar remediar tudo.

Estava cansada, física e emocionalmente, e aquilo devia estar muito claro para Leo. Ele se manteve em silêncio quando algumas lágrimas escorreram pelo meu rosto, limitando-se a limpa-las com os dedos enquanto eu respirava fundo, brigando internamente entre manter minha compostura ou me desmanchar em rios de desistência.

Sem perceber quando comecei exatamente, passei a relatar para Leo toda a história sobre o apartamento desde a minha primeira visita ao lugar, anos atrás. Sorri ao lembrar como foi prazeroso mobiliar cada canto e pintar cada parede, me revoltei com cada opção do que teria me tirado aquele pequeno sonho e expus meus pensamentos e preocupações com cada próximo passo que teria de dar. Falava sem pausas, misturando minha indignação com todo meu sentimento e a lista interminável de coisas que tinha de fazer agora, incluindo entrar no primeiro National Express para Londres para tentar um voo urgente para casa.

Quando terminei estava prestes a me derramar em uma onda infinita de choro. Convenhamos, depois de todos esses dias, das coisas boas e ruins, de cada hora sem descanso (isso porque deveriam ser minhas férias!), estava mentalmente esgotada. Não sabia direito como começar ou recomeçar.

— Eu preciso descer e comer alguma coisa. Ligar para Sam. Santo Edgar Allan Poe, Adria vai surtar tanto e eu… Eu… Aposto que estou com olheiras horrorosas e vão me achar com cara de doente e…

Leo molhou os lábios e se acomodou ainda mais perto de mim, seus dedos afagando meus cabelos enquanto eu tentava expor tudo que estava se passando na minha cabeça. Seu olhar não expunha muito do que ele mesmo pensava, mas era compreensivo, claramente tentando me acalmar.

— Antes de qualquer coisa, respire Katerina.

Instintivamente enchi o peito com ar e expirei devagar. Logo ele encostou o nariz no meu e não havia sensação melhor do que sentir sua respiração junto com a minha, o calor da sua boca enquanto ele falava.

— Compreendo a importância de resolver todos os pormenores de seu problema neste instante, mas devo salientar que o mundo não vai parar de girar, tampouco os ônibus até Londres ou aviões até Nova Iorque. Uma coisa de cada vez, Kate.

— Mesmo calmo você consegue ser irritante, sabia? — trocamos um olhar e era engraçado, porque a proximidade fazia com que a imagem dos olhos dele se embaralhasse.

— Uma das minhas tantas qualidades. Por certo deve estar na sua longa lista de adjetivos astutos para se usar contra mim.

— Talvez. Preciso organizar minhas listas com mais afinco e atualizar alguns novos adjetivos. Farei isso quando estiver com um pouco de tempo. Assim, ficará mais fácil prometer um sarau para declamar todos eles e o senhor terá pleno conhecimento de todo tipo de impressão que causa nas pessoas.

Sem nenhuma sutileza, Leo ergueu a sobrancelha tenebrosa com um claro ar de superioridade. Não notei no primeiro momento, mas ele estava se gabando silenciosamente por ter conseguido me calar e principalmente, mudar o foco do assunto.

— O senhor ainda me surpreende. — sorri ao me dar conta — Tem mais alguma coisa que eu deva saber sobre tal Próspero nesta manhã?

— Existem muitas coisas que uma Megera deve saber sobre um Próspero, que não cabem certamente, em uma única manhã. Mas talvez seja sensato pontuar que este Próspero, preza pela sinceridade. Então sim, devo informar que suas olheiras estão horrorosas, Katerina. — ele sorriu e beijou minha mão como se aquilo fosse um tipo de elogio.

Funcionou bem, afinal tudo que consegui fazer foi ter um pequeno ataque de riso pelo minuto seguinte, sem me preocupar com os problemas. Mas definitivamente estava pensando no que poderia usar nas tais olheiras.

Maldito inglês.

Ele mereceu um beijo por isso.

******

Pela hora restante em que o dia ainda não havia raiado me acomodei entre os braços de Leo, minha orelha contra o peito dele escutando cada pequeno movimento, seu respirar, as batidas do coração (que por muito tempo jurei que ele não tinha). Diferente de suas mãos frias, seu corpo era quente e exalava um discreto perfume masculino amadeirado, que ficava mais fraco conforme as horas passavam.

Por alguns minutos ainda conversamos sobre minha modéstia, coisas banais como ônibus lotados e o Boxing day, neve, frio e aviões. Ele acariciava meus cabelos sempre com seu ar sério enquanto eu falava por nós dois ou com pequenos sorrisos quando serenamente dava suas opiniões sensatas ou alguma resposta sarcástica. Por fim, o cansaço ganhou a batalha e cochilei segura naquele abraço sem me importar que a realidade me esperava do lado de fora daquele quarto do Knight’s Inn.

Acordei daquele sono pesado e cansado, sem saber quanto tempo tinha passado, apenas porque Paganini estava tocando no criado mudo ao lado de Leo, insistindo em ser atendido prontamente.

— O celular... — resmunguei, esfregando os olhos. — Está tocando...

— Constatação magnífica para alguém com tanto sono. — sabia que ele cochilando também, pelo tom da sua voz britânica.

— Não vai... Uaaaatendeeeeeer...? — bocejei.

— Não pretendia. Você estava dormindo.

Carnaval de Veneza estava tocando nos meus sonhos. Eu gosto dessa música, mas sei que vou detestar se ela começar a me interromper em momentos importantes. Paganini é o culpado.

— Pobre Paganini. Acredito que esteja revirando em pó dentro do sepulcro, apenas em imaginar que a gentil Katerina Dalton está prestes a odiá-lo e principalmente, detestar seu Carnaval de Veneza. Não tem piedade do pobre homem, Kate?

Leo sorria, como pude ver quando ele estendeu o braço e se moveu para trás, alcançando o celular no criado mudo. A luz do aparelho era mais forte do que qualquer luminosidade que vinha das janelas. O dia lá fora devia estar mais cinza e frio do que eu esperava e algum barulho vinha das escadas da pensão, denunciando que seus donos já estavam acordados e trabalhando, limpando e possivelmente alimentando a curiosidade sobre minha vida atribulada.

Me afastei de Leo para deixar que ele atendesse a ligação e me arrastei pela cama até pisar no assoalho que parecia bem mais gelado do que as cobertas confortáveis. Andar até o banheiro parecia um suplício, mas foi bem mais revigorante quando o vapor do chuveiro ligado encheu o pequeno cômodo.

Enquanto a água quente escorria pela minha cabeça e ombros, espalhando o sabão com perfume de magnólias; voltei a remoer minha lista de próximos passos. Sairia de York antes do almoço e com alguma sorte, estaria em Londres ao entardecer. Mas antes ligaria para Adria na esperança de conseguir um voo para casa até amanhã.

Sabia que a única opção para ter sido despejada do meu próprio apartamento, era o lugar ser requisitado pelo dono original, que no caso se chamava Kennedy James Dalton (vulgo, pai). Não entendia qual motivo em todo o universo teria feito meu pai me apunhalar pelas costas daquela forma, ainda mais quando ele pareceu tão tranquilo nas fotos do natal com Adria.

Uma das coisas que se pode dizer sobre meu pai, é que ele nunca teve muito pulso firme para as coisas. Seu coração mole era notável e por isso vivia atado às pessoas mais fortes do que ele, fosse minha mãe ou minha avó. Então é supostamente inimaginável que ele pudesse enxotar a filha da própria casa, quando ele mesmo a presenteou com o lugar.

Me embrulhei em um roupão felpudo e cor de rosa antes de sair e encontrei a cama arrumada e Leo já vestido, sentado na cadeira ao lado da janela, espiando o clima enquanto ainda falava ao celular. Sua conversa era uma sucessão de respostas curtas e diretas, que ele pausou assim que notou que eu estava procurando algo para me vestir.

Pediu um minuto na ligação e se levantou, caminhando até mim para roubar um selinho antes de ir até a porta.

— Vou deixar você se vestir. Estarei lá embaixo.

     Não pude me opor aquilo, já que não sabia do que se tratava aquela conversa ao telefone. Poderia ser alguma coisa sobre trabalho, negócios ou simplesmente algum debate com Luke, mas duvido que ele estivesse tratando o próprio irmão com tanta seriedade.

Vesti minhas calças mais quentes e separei os cachecóis coloridos, botas de caminhada e luvas, já contando com o frio congelante que estaria fora da pensão. Aproveitei os minutos restantes para dobrar as roupas e enfia-las de alguma forma dentro da mala, junto com presentes de natal e lembrancinhas. Precisei sentar sobre tudo para conseguir fechar o zíper, mas no final, estava tudo arrumado.

Apanhei o celular para confirmar o melhor horário do National Express para Londres e enviei duas mensagens para Adria, pedindo que ela fizesse seu truque de mágica e conseguisse um voo para Nova Iorque o quanto antes. Tinha certeza de que ela demoraria a ver a mensagem, mas eu me certificaria de ligar assim que chegasse ao Bristol.

Desci as escadas e fui recebida pelo aroma delicioso do café da manhã. Pelo tom das conversas Christine estava na cozinha e sorria, cantarolando as palavras durante sua exibição de dotes culinários. Raymond me cumprimentou no corredor, atravessando com botas molhadas sobre o carpete. Com certeza tinha acabado de retirar a neve dos fundos da casa e não parecia muito contente com o frio lá de fora.

— Bom dia! — Christine anunciou logo que entrei na cozinha, puxando uma cadeira para me sentar. — Dormiu bem?

Qual seria a reação dela se eu dissesse que dormi mal?

— Bom dia. Ah sim, foi uma boa noite. —bocejei. Traída pelo meu próprio corpo.

— Que bom. — os olhinhos dela faiscaram enquanto colocava a quantidade absurda de comida sobre a mesa. Definitivamente seria uma obesa se morasse na Inglaterra. — Bom apetite.

— Obrigada.

Comecei a me servir de um bule fumegando de café e mal tinha me esticado para pegar a jarra de creme quando Leo entrou pela cozinha, guardando o celular no bolso. Ele cumprimentou Christine sem muita ênfase, pois com certeza já haviam se visto há alguns minutos, e se sentou ao meu lado pouco antes da mulher colocar uma xícara alta diante dele, junto com uma pequena caixa repleta de sachês de chá.

Em implacável silêncio, lá estava o Carma que me recordava tão bem, se servindo de três cubos de açúcar dentro de seu chá Earl Grey, girando a colher no líquido sem tocar a borda da louça em momento algum. Tomou um primeiro gole e satisfeito da alquimia perfeita, aceitou um de pão de centeio, onde derramou um pouco de geleia de mirtilo e duas fatias gordas de queijo amarelo.

Christine observava satisfeita. Parecia uma mãe que tinha de certificar se o filho comeria todo o desjejum antes de ir para o colégio. Mas eu sabia que internamente ela estava esperando um momento propício para fazer alguma pergunta sobre a noite anterior, o nariz de Bruce Campbell e alguns gritos pela rua das pensões.

— Pretendo pegar o National das 13 horas. — intervi por trás das minhas fatias de toucinho com ovos. Era melhor evitar um clima estranho logo pela manhã.

— Vai almoçar aqui, Katerina? — Christine tossiu e se endireitou, voltando a dar atenção a seu forno e pia.

— Não, vou comer alguma coisa pelo caminho. Quero dar um último passeio pelas lojas antes de pegar o ônibus.

— Com esse frio? Que coragem. — ela suspirou, deixando seu avental sobre um canto da mesa. — Pois bem, me avise quando for sair. Não vá embora sem se despedir.

Dois puddings e um frasco com calda de chocolate e brandy ainda foram postos na mesa antes de Christine hesitar em deixar a cozinha, com o mínimo ruído da louça e dos talheres, quebrado esporadicamente por um derramar de café ou chá em nossas xícaras.

— Me esqueci de perguntar como está sua mão hoje, senhor D’Orleans. — Ah Christine, como puxar um assunto desnecessário em pleno café da manhã. Não consegui evitar que ela fizesse essa.

— Apenas dolorida. — a resposta curta era autoexplicativa. Quase um sinal de “Não atormente meu café da manhã, reles mortal”. Christine captou a mensagem.

— Que bom. Que bom mesmo.

 Contive a minha vontade de rir, ainda mais quando me peguei pensando se Bruce tinha mesmo quebrado o nariz com aquele soco. Não era prudente relembrar sobre o Sr. Campbell após aquele encontro acalorado da noite passada, por isso fiquei só com meu próprio sorriso e o restante de uma torta de cereja que estava no canto do prato, sem nenhum outro comentário. Percebi então que era o momento apropriado para questionar o pensativo Carma e deixar a pobre mulher desavisada dos humores do inglês, sair da cozinha discretamente.

— Você... — pausei para limpar a boca. — Gostaria de servir de guia para mim mais uma vez, Leo? Eu tenho mais algumas horas antes de pegar o ônibus.

Ele ergueu os olhos por trás da borda da xícara, que claramente tomava o último gole. Limpou os lábios com um guardanapo quando terminou e consultou as horas no relógio de parede decorado da pensão, onde cada hora era estampada com um carneiro diferente. Era óbvio que aquele sublime item de decoração devia berrar quando batiam as horas.

— Infelizmente, terei de declinar o convite. Podemos almoçar juntos, se desejar.

— Claro que sim. — eu estava um pouco decepcionada, confesso. Embora Leo fosse o mais detestável guia em Londres, em York eu queria que ele me mostrasse seus lugares favoritos, que sorrisse quando me mostrasse algum ponto turístico que fosse repleto de algo que gostava profundamente e me afastasse dos problemas por mais algumas horas. Pelo visto minhas vontades teriam de esperar para uma próxima vez.

Terminamos o café e fiz todo o tipo de perguntas sobre as melhores ruas e algumas lojas onde poderia encontrar bons souvenires, mesmo se tratando de um agitado Boxing Day pela frente. Toda York estaria apinhada de pessoas querendo aproveitar as promoções e o dia de trocas para fazer compras, ou simplesmente passar o dia mais livre na companhia de parentes e amigos.

Leo foi muito paciente, indicando alguns nomes e lugares onde poderia caminhar sem me afastar muito do terminal para pegar o ônibus após o almoço. Marcamos de nos encontrar ao meio dia nas Shambles, exatamente em frente a um pub modesto que ele elogiou muito pela boa comida e ambiente tranquilo.

Fiquei imaginando como Leo reagiria em lugares completamente lotados. Devia ser bem engraçado.

Desci minha mala para a sala do Knight’s Inn e conferi meus documentos na bolsa de ombro antes de começar a me despedir de Christine e Raymond. Pedi que debitassem minha estadia no cartão, mas fui claramente negada.

— Sua estadia já está paga, Katerina. Não se preocupe. — Christine sorriu, enquanto Raymond debatia com Leopold sobre quem levaria minha mala até a calçada.

— Como assim paga?

— O jovem senhor Campbell pagou pela sua estadia. Ele esteve aqui ontem no fim da tarde procurando por você e fez questão de pagar pelos seus dias.

Xinguei mentalmente Bruce de uma boa dúzia de palavrões num primeiro instante. Depois fiquei pensativa de que deveria ter pedido mais regalias já que ele estava pagando. Ele merecia sofrer no bolso, já que era o lugar que aparentemente doía mais do que sua consciência.

Leo voltou (depois de ter perdido a disputa para levar minha mala) e despediu-se de Christine educadamente, sem grande alarde. A mulher pediu que ele enviasse uma série de cumprimentos para Janet e Mary, Collins e Edward, lembrando efusivamente que a Sra. D’Orleans deveria participar do clube de jardinagem da cidade o quanto antes. Pelo visto ela não sabia que Leo é que nutria certo amor pelo hobbie.

Ele agradeceu pela hospitalidade uma vez mais e Raymond sorriu ao relembrar a gentil gorjeta que havia ganhado pelo pernoite. Pelo visto o casal do Knight’s Inn teria uma boa quantidade de assunto para contar aos vizinhos assim que sumíssemos pela esquina.

— Até meio dia então. — respirei fundo, assim que a porta da pensão se fechou e ficamos sozinhos na calçada da rua vazia daquela manhã.

— Procure não se atrasar, senhorita Dalton. Não irei procura-la no meio das centenas de lojas para um resgate as pressas.

— Não será necessário, eu garanto, senhor Valois. Embora seu heroísmo seja como sempre, improvável e querido, hoje ainda é seu dia de folga e não vou abusar de seu atual bom humor.

— Disse que eu deveria sorrir mais.

— De certo. E fico muito feliz que tenha aceitado minha prescrição com tamanha boa vontade. É um paciente exemplar.

— Obrigado, falante Megera. Agora trate de caminhar ou suas poucas horas não serão o bastante para todos os lugares que pretende visitar antes de viajar.

Sorri, ajeitando minhas coisas a tiracolo e recebi um beijo inesperado enquanto ainda estava refazendo o galante nó dos meus cachecóis coloridos. E sem maiores delongas, Leo entrou no carro com apenas um aceno antes de sumir pela esquina da rua de pensões, me deixando com um maravilhoso sabor de bergamota nos lábios e uma vontade imensa de sair assobiando por aí.

Fato: definitivamente os sentimentos deixam a gente um pouco idiota.

******

Com a bolsa mais cheia com as compras pelas Shambles e o estômago mais vazio pela chegada do almoço, encontrei o tal pub que Leopold fez questão de escolher para me apresentar.

Era um lugarzinho mínimo, uma simples porta verde musgo com um vidro embutido e letras douradas, localizado entre duas lojas sisudas e antigas, com suas paredes de tijolos salientes e amarelados, embalados com o crescente cheiro de molho e canela. As pessoas estavam em um zumbido contínuo pelas ruas e me encostei ao lado da entrada, prestando atenção no contorno vermelho discreto das letras do lugar. O “Old Green Sheep” prometia uma ótima refeição desde o século passado, ou pelo menos é o que dizia na porta.

Senti meu celular vibrar dentro da bolsa e precisei de um nível de excelente contorcionismo para encontrar o aparelho lá dentro entre papéis, documentos, doces, mais luvas, meias extras, lenços, óculos e outra tonelada de quinquilharias que eu não tinha ideia de que estavam ali. Era uma simples mensagem:

“Mesa 12, Katerina. Chego em dez minutos.”

Ignorei minha ligeira taquicardia (que estava ficando bem usual) e meu sorriso bobo, para arregalar os olhos para o relógio do celular. Leopold estava atrasado?

Já imaginava o mundo acabando naquele instante, com o planeta explodindo em milhões de pedacinhos, exatamente como naquela cena do filme de Star Wars. Como aquilo podia estar acontecendo?

Entrei pela estreita porta do Old Green Sheep e caminhei por um corredor com cheiro de carvalho úmido e cerveja, onde as paredes avermelhadas estavam forradas com porta retratos onde os frequentadores sorriam. Havia fotos de celebridades inglesas, jogadores de rúgbi, futebol, alguns atores internacionais, dezenas de guardanapos velhos que foram enquadrados com autógrafos conhecidos. Fiquei admirando por um momento até que um cliente passou por mim, pedindo licença por causa da mala que tomava mais espaço do que deveria.

Quase ao final do corredor, o aroma da comida e o som das pessoas me acertaram em cheio. O pub se abria em um grande salão decorado com mais fotos do que poderia contar, e de mesas e cadeiras com assentos verdes, um largo balcão de madeira escura onde vários homens tomavam cerveja e conversavam alto. O lugar estava cheio e um simpático senhor de rosto corado, usando um avental com um imenso carneiro verde estampado, veio me interceptar.

— Seja bem vinda ao Old Green Sheep! Almoço ou tira-gosto?

— Almoço. Eu... Acho... Que tenho uma mesa reservada ou algo assim.

A boca do homem formou um O. Depois um sorriso claro, que combinava com todo aquele tom meio rosa que ele tinha. Parecia que havia trabalhado demais perto de um forno e agora estava lá, servindo os clientes com suas bochechas coradas como maçãs.

— Mesa 12. Senhorita Dalton, correto? É só me seguir.

Como bem sabem meu conhecimento a cerca de pubs é muito limitado. Nunca imaginei que ter uma mesa em um lugar daqueles era algo tão especial, quase VIP. Só desconfiei disso quando comecei a notar os olhares de algumas pessoas para mim, principalmente dos garçons.

Era claro que a mesa era como todas as outras, mas ficava em um canto muito próximo de uma porta de acesso para a cozinha do lugar, além de ser ao lado do final do balcão. O senhor colocou uma toalha verde sobre o tampo e outro garçom me trouxe um cardápio que listava algumas iguarias que eu sequer imaginava do que se tratava.

— E onde Leopold se meteu para deixar uma moça tão bela sozinha dessa forma? — o garçom riu, me servindo um copo de água.

— Eu não tenho ideia. — pelo menos de uma coisa eu tinha certeza: Ou York era mesmo uma cidade pequena, ou Leo era bem conhecido por ali.

— Quer pedir alguma coisa enquanto espera?

Ergui meu dedo para apontar o nome de um prato que não tinha entendido, mas não cheguei a pronunciar meia palavra. O barman atrás do balcão, robusto e barbudo como um papai Noel de férias, assoviou para chamar a atenção do homem que estava me servindo. Viramos juntos na direção da entrada bem a tempo de testemunhar Leopold trocando um amigável aperto de mão com o barman e cumprimentando outros dois garçons (que juntos deviam ter quase a mesma idade do século pintado na porta de entrada).

— Theodore apostou com todo mundo que devia ser um trote quando você ligou, rapaz. Faz tempo, não é?

— De fato. Obrigado pela mesa, Harrison. — Leo se sentou na minha frente e voltou a sorrir.

O velho e corado Harrison deu um toque no ombro dele antes de sair e nos entreolhamos, eu claramente na espera por qualquer explicação ou cumprimento, mas Leo apanhou o cardápio, passando os olhos rapidamente pelas letras antes de respirar fundo.

— Eu gostei do lugar. Bem tradicional. — comecei — Você usou sua carteirinha de sócio para reservar a mesa, senhor Valois?

— Não foi necessário, senhorita Dalton. Meu avô comprou o Old Green Sheep quando eu ainda era um menino. Não que eu seja sócio do negócio, mas tenho algumas regalias.

Okay. Ponto para o velho avô D’Orleans, que fez do neto o inglês mais nariz empinado do mundo. E agora com motivos concretos.

— Oh. Isso explica. Afinal você é a última pessoa nesse mundo que eu imaginaria sentado em um pub, bebendo cerveja e se divertindo, sabia?

— É mesmo? E por qual motivo? — ele apoiou os cotovelos na mesa e cruzou as mãos, apoiando o queixo sobre elas, deixando ainda mais proeminente aquela maldita sobrancelha arqueada que só aumentava o tom de seu humor peculiar.

— Simplesmente não combina. Você e pubs.

— Então a senhorita tem uma opinião particular sobre quais lugares combinam comigo ou não. Realmente, Katerina, ainda me surpreendo com a quantidade de coisas que pensa sobre mim.

— Ah, o senhor não tem ideia. Posso citar vários exemplos. — cruzei os braços sobre a mesa, depois de tirar meus cachecóis. — Museus são um ótimo exemplo. E teatros, todos os teatros combinam perfeitamente com o senhor. Talvez parques em dias mais amenos e bibliotecas... Enfim, em toda a lista de lugares, não aparece nenhum pub, nenhum tipo de festa agitada ou prática de esportes que exijam demais do corpo.

Leo pareceu surpreso por um instante, mas foi atrapalhado pela proximidade do garçom, que veio retirar os pedidos. Pedimos as bebidas e embora eu estivesse curiosa sobre uma dúzia de porções e pratos diferentes no cardápio, Leo insistiu em pedir um assado para nós — algo tradicional, segundo ele.

Permanecemos em um pequeno momento suspenso de silêncio, rodeados pelo barulho do ambiente até o Carma se acomodar na cadeira.

— Devo dizer que museus me agradam, mas não tenho paciência para arte abstrata ou tolices que insistem chamar de arte. Prefiro esculturas clássicas e pintores que saibam pintar os olhos e o nariz nos lugares corretos. Os teatros são de fato, uma paixão, mas não os frequento com tanta periodicidade quanto gostaria e não tenho tempo para as bibliotecas, apenas algumas, recentemente.

Admito que corei nessa parte, mas não dei importância. Estava prestando atenção demais em toda aquela informação. Ele continuou.

— E sempre gostei de bons pubs, bebidas de qualidade e ambientes diversos, Katerina. Incluindo parques em qualquer clima. Admito que não tenha praticado muitos esportes no último ano, mas como sabe, estive fora de casa por muito tempo e tenho minhas limitações. Portanto é de bom gosto, que refaça sua lista sobre lugares que pretensamente combinam ou não comigo.

Me lembrei da foto que Leo mostrou na tarde passada onde parecia se divertindo entre amigos, do detalhe de que ele era um jogador de rúgbi na escola e possivelmente era bom naquilo. Inconscientemente me questionei se teria me apaixonado por aquele homem da foto, o Leopold alegre e atlético de anos atrás, que parecia não carregar um peso invisível nos ombros.

— Vou repensar minha lista quando me provar concretamente que meus pensamentos estão errados, senhor. Caso contrário, continuarei alimentando essas intuições.

— Está me desafiando, Katerina? — seus lábios se ergueram no canto direito, um sutil sorriso interessado no tema.

— Claramente. O senhor aceita? — provoquei, erguendo minha sobrancelha direita.

As bebidas foram pousadas sobre a mesa, acompanhando dois largos pratos repletos de comida cheirosa e suculenta. Nunca havia visto um prato daquele tamanho — nem nos meus surtos mais animalescos de TPM.

Largas fatias de carne assada eram acompanhadas por batatas douradas, cenouras, vagens e alcachofras. Havia salada de repolho cortado fininho junto de couve fresca refogada com manteiga, e sobre tudo aquilo, dois bolinhos que lembravam um muffin, mas eram quase ocos e recheados com quadradinhos de bacon, tomate e manjericão.

Harrison deixou uma molheira no centro da mesa, com um caldo grosso e castanho, cor da carne assada. Cheirava magnificamente bem e estava esfumaçando de quente. Meu estomago chiou de fome.

Leo agradeceu ao garçom e me consultou com os olhos, enquanto eu estava ocupada tentando descobrir por onde começar a comer tudo aquilo.

— Jogue o molho dentro dos puddings, Kate. É para isso que estão aí, se posso lhe indicar como se comer propriamente um Sunday Roast.

Então, aquele era o famoso Sunday Roast inglês, a comida dos pubs. Me peguei pensando se eles embrulhariam o resto para viagem se não desse conta de comer tudo aquilo. Será que eles permitiriam a minha saída no país levando uma tupperware de Sunday Roast?

Segui a indicação de Leo (mesmo que jamais fosse imaginar que aquele muffin era um pudding, quanto mais um Yorkshire Pudding que tem até um feriado em seu nome).

Ingleses.

Todos deveriam seguir o exemplo e criar feriados para comidas pelo mundo. Tenho quase certeza de que seria um passo para a paz mundial.

Minha fome me fez esquecer sobre o desafio lançado para Leo e passamos a comer entre nossos costumeiros pequenos debates e erguer de sobrancelhas, principalmente sobre a casca dourada das batatas, a cremosidade do molho e a crocância das couves. Eu preferia os vegetais cozidos, Leo os refogados.

Para a minha surpresa, conseguimos vencer os pratos de Sunday Roast e dividimos um longo minuto de silêncio com nossos próprios pensamentos, perdidos um pouco naquela satisfação da refeição. Na verdade eu estava mesmo era admirando aquele lado de um Carma que conseguia ser um pouco menos sisudo e comer uma refeição daquelas sem reclamar em absolutamente nada.

Deixei meus olhos passearem pelas paredes e os retratos presos nelas, reconhecendo um ou outro rosto famoso, pessoas sempre abraçadas com os garçons ou erguendo taças de vinho e canecas de cerveja. Todos eram felizes em um pub.

Encontrei um porta retrato um pouco maior logo ao lado da porta da cozinha, onde um senhor muito distinto com um chapéu clássico, aparentemente alto e usando tweed; recebia uma premiação local de culinária. Seria aquele o avô dos irmãos Valois nos tempos áureos do Old Green Sheep?

Bem próximo àquela imagem, estavam diversas em que o senhor aparecia sorridente. Uma delas era na época de natal, abraçado com dois garotos que rapidamente afirmaram a minha desconfiança sobre o parentesco e chegava a ser assustador como Leo tinha tamanha semelhança com o avô. Até seus narizes empinados eram parecidos!

Em alguns lugares na parede faltavam visivelmente diversos retratos. O papel de parede estava marcado com retângulos escuros de onde as fotos haviam sumido e davam asas para a imaginação criar dezenas de teorias sobre os motivos para aquelas molduras terem sido retiradas dali.

Estava em meu melhor modo Sherlock Holmes quando a voz de Leo me atentou.

— Desafio aceito, Katerina. — ele quebrou a quietude da mesa, terminando o gole da bebida em seu copo.

— Vou esperar pacientemente. — ergui as sobrancelhas, satisfeita.

— Veremos.

Leo sinalizou para o garçom. Acertou o valor da conta — mesmo que tenhamos discutido dois minutos para que ele me deixasse pagar a minha parte — e saímos juntos do pub, deixando meus mistérios fotográficos para trás. Ele levou minha mala e eu tentei me ajeitar com cachecóis e bolsa em um espaço pequeno entre pescoço e ombros.

Pretendo nascer maior na próxima vida. Pelo menos um pouco mais alta. E com peitos.

Com um breve olhar, Leopold consultou o relógio de pulso.

— Vamos. Você tem quinze minutos para chegar ao terminal, Katerina.

Seguimos a pé, atravessando as Shambles e desviando das pessoas naquelas ruas antigas de pedra, parando por dois minutos para comprar um pacote de biscoitos de canela que eu precisava levar para Sam experimentar. Torcia para que o caminho fosse curto o bastante para que o movimento não me atrasasse, afinal tinha mais medo do ônibus ser pontual e rigorosamente inglês do que me perder por York.

Claro que mais um dia na pitoresca cidade do norte da Inglaterra não seria nenhum sacrifício (bem pelo contrário), porém não podia mais cancelar certas decisões na minha vida. Era como uma espécie de lista de “coisas a fazer antes do Ano Novo” ou algo do tipo.

A sinalização do terminal ficou bem clara quando entramos pela rua ainda repleta de neve, que causava alguns escorregões engraçados na maior parte dos turistas por quem passamos. O ônibus já estava parado na linha de embarque e precisei parar no meio da calçada para revirar os bolsos internos da minha bolsa e retirar a carteira para pagar pela passagem enquanto o motorista guardava minha mala no bagageiro.

Meu celular vibrou com uma mensagem e Samantha estava na foto do visor, questionando sobre a minha viagem de volta. Digitei rapidamente que estava a caminho de Londres e que avisaria assim que tivesse o horário do retorno para Nova Iorque. Ela fazia questão de me esperar no aeroporto.

Voltei para perto do ônibus, onde uma pequena fila de passageiros tinha se formado e tive uma ideia retumbante. Na verdade um lapso.

— Leo, vamos tirar uma foto! — comecei a mexer nos aplicativos do aparelho, deixando tudo pronto para o retrato.

— Agora?— ele franziu a testa. — Com isso? — obviamente implicou com o celular.

— Agora. Com isso. Não vai dar tempo de montar aquelas maquinas fotográficas com pólvora para fazer do jeito tradicional, muito menos de esperar que você busque um profissional. Agradeça aos bons deuses da tecnologia que esse modelo tem uma lente decente e torça para minha mão não tremer.

— Tire o dedo da lente, Katerina.

— Ops. — ri, um pouco nervosa e nos apertamos na direção da câmera de uma forma um pouco torta, afinal Leo era alto e minha altura não era das piores, mas ficava um tanto díspar na imagem. Foram precisos duas tentativas para me dar por satisfeita com o resultado, mesmo que ele não parecesse muito alegre com a “selfie”.

— Oras, não ficou tão ruim para uma primeira foto, né? — ri baixinho, guardando o celular na bolsa e ajeitando minhas roupas, respirando fundo em uma forma de tomar coragem para embarcar finalmente. Os últimos passageiros já estavam entrando.

— Já vi fotos piores.

— Que alívio. — dei um sorriso torto. — Então, é aqui que nos despedimos, senhor Valois. — balancei diante dele a minha passagem em mãos. — Conhecer York foi uma experiência um tanto quanto... Interessante.

— Com certeza a cidade vai se sentir importante em vista da sua opinião. — óbvio que ele ironizou. Estamos falando do Carma. “O Carma”.

— Minha estadia teria sido deveras enfadonha se não fosse pelo senhor.

Ele sorriu assim que reconheceu a frase que ele mesmo havia dito para mim em Londres e apanhou minha mão, acomodando o tecido da luva nos meus dedos enquanto falava.

— Creio que teria sido muito mais movimentada se tivesse aceitado a cortesia dos Campbell. Mas vou aceitar seu singelo elogio e agradecer pela sua inesperada, conturbada, barulhenta e caótica visita, Katerina.

— Um pouco de caos não faz mal a ninguém, não é?

— Não. Acredito que não.

Toquei o casaco dele, um tecido grosso e misto de lã que lembrava a cor de um cremoso cappuccino, combinando perfeitamente com o cachecol creme que estava em volta de seu pescoço. Devagar Leo encostou a testa na minha e fechei os olhos, aspirando sua presença.

O mundo definitivamente dá voltas.

— O senhor será eternamente culpado, tenho que dizer.

— Do que exatamente? — ele falou baixo, sua mão entrelaçada a minha.

— De destruir permanentemente todas as quartas da minha vida.

— Eu aceito essa culpa de bom grado, senhorita Dalton. De muito bom grado.

Trocamos um curto olhar antes de nos beijarmos. Um longo e terno beijo repleto daquela incerteza entre ser o último ou apenas mais um entre nós. Entendia completamente bem o que Shakespeare quis dizer quando escreveu aquele trecho meloso de Romeu e Julieta:

“Toda despedida é dor... tão doce todavia, que eu te diria boa noite até que amanhecesse o dia.”

Haveria um oceano entre nós a partir dali e a realidade voltaria a bater assim que entrasse no National Express que já ligava seu motor, ansioso por pegar a estrada. Não sabia exatamente o que esperar e verdadeiramente não queria mergulhar em nenhum mar de expectativas enquanto meu mundo não estivesse um pouco mais organizado.

— Vou... Me lembrar de enviar seu livro pelo correio, ok? — respirei fundo quando nos afastamos e juro que me esforcei para dar um bom sorriso. Acariciei o rosto de Leo e ele beijou minha mão antes de me soltar para subir os degraus do ônibus, que só esperava por mim. Quando entreguei a passagem, até o motorista me deu um sorriso compreensivo.

— Se me devolver o livro, como poderei busca-lo, Katerina? — ele sorriu e meu coração se apertou violentamente. Tive que descer os degraus correndo para abraçar seu pescoço e roubar um último beijo.

— Vão deixar você para trás. — ele sussurrou quando o motorista bateu a mão na buzina do ônibus.

— Não sei se me importo. Vou ficar um pouco aqui e um pouco do outro lado do Atlântico.

— “Por mil milhas com um beijo terno poderei levar-me, sem que me faça andar um passo”.

— Onde eu for?

— Precisamente.

O motorista voltou a buzinar e corri de volta para os degraus, escutando Leo enquanto a porta se fechava.

— Até logo, Megera.

— Até logo... Próspero.

*******

Observar York se afastando pela janela foi bem mais difícil do que pensei. Sabia que seria uma despedida complicada depois dos últimos dias, mas nunca conjecturei que meu estômago estivesse revirando de nervoso ou que respirar parecesse tão complicado. Alguma coisa me dizia que a cidade inglesa ainda ficaria muito distante de mim dali por diante.

E se eu nunca mais revisse York?

E se nós não déssemos certo?

Tentei pensar em outras coisas para não me afundar em uma crise de tristeza que me faria a protagonista perfeita para um daqueles dramalhões mexicanos em que no final o vilão é pai do mocinho e todo mundo é meio parente ou irmão. Coloquei os fones de ouvido que Luke tinha me presenteado, selecionei alguma coisa para tocar no celular e fiquei encostada na janela observando a tarde gelada e o trânsito lento naquele cenário lindo de inverno inglês.

Adormeci depois de derrubar duas lágrimas quando começou a tocar uma canção romântica brega da década de 80. A viagem levaria bem mais do que as três horas convencionais e o motorista avisou que a neve o obrigava a ter mais cuidado em dirigir, por isso eu poderia dormir para por em ordem meu sono perdido. E como todos queriam chegar a Londres são e salvos, concordaram silenciosamente com a demora, suspirando ou mandando mensagens de texto com avisos da demora.

De repente, estava em frente a duas imensas portas de madeira. Era um prédio chique em alguma rua chique que se parecia com a casa chique do meu pai, com seus empregados chiques e por aí vai. Tudo indicava que era um grande salão de festas e eu conseguia escutar a música que vinha de lá, animada e cantando aquela mesma música brega dos meus fones de ouvido.

Entrei devagar naquele salão lindo e me deparei com um cavalete, rodeado de pessoas bem vestidas. Parecia uma festa e tanto, todos animados e sorridentes.  Reconheci muitos rostos, alguns familiares, amigos, até os gêmeos Whiterun que eu não via desde meu aniversário de doze anos.

Estavam assinando ao redor de um quadro posto ali, em destaque na entrada para mesas decoradas, uma foto de casal em que parecia um par perfeito, feliz. E eu concordaria, se não fosse minha cara que estivesse ali em uma pose de plena cumplicidade ao lado de Bruce Campbell com seu melhor sorriso vendedor de pasta de dentes no universo.

Quando me virei, dei de cara com o próprio Bruce, que simplesmente me segurou nos braços e beijou com a maior paixão possível, entre as dezenas de aplausos do público presente.

— Santo Edgar Allan Poe! — acordei ainda no National Express, com um senhor me espiando por cima de um jornal no banco do outro lado do corredor. Meu coração tinha disparado.

Aquilo sim, era um pesadelo.

Enquanto o sacolejo do National Express seguia seu rumo, abri uma anotação no celular, digitando um pequeno trecho de texto sobre meus pensamentos para evitar voltar a dormir e ter o senhor Campbell na minha espera. Logo, uma ideia surgiu e passei a digitar rapidamente todo um escopo de uma história, que talvez pudesse ser trabalhada com mais calma quando as coisas ficassem resolvidas.

Depois de quase uma hora digitando e de rever meus conceitos sobre a circulação de sangue nas minhas pernas, aliado a quase cinco horas dentro de um ônibus; alguém nos primeiros bancos quase deu um grito entusiasmado de que estávamos chegando a Londres.

Com a noite caindo e a cidade iluminada, senti meu peito ficar apertado mais uma vez. Teria muito para contar sobre toda aquela viagem maluca de férias, com todas suas aventuras, desventuras e surpresas, incluindo a beleza natalina londrina, que me recebia de braços abertos mais uma vez.

Não havia neve na cidade, mas o frio congelante voltou a me lembrar de que minhas luvas não eram grossas o suficiente e de que precisava comprar novas palmilhas térmicas para usar aquela bendita bota de caminhada. Apertei os dois cachecóis no pescoço, fechei bem meu casaco e assim que o ônibus parou em seu ponto final, desci devagar para o terminal.

As pessoas tinham pressa em seguir. Alguns eram recebidos com abraços da família ou com um uníssono de reclamações sobre o horário e o clima (eu ficava pensando no quanto devia ser caótico para um inglês se atrasar mais de duas horas para qualquer coisa). Crianças se penduravam no pescoço de seus pais e mostravam os novos presentes de natal, avós eram recebidos com festa... E havia aquele maldito casal se beijando na frente de todos.

Eu sei, estou exagerando. Mas quando você está com o coração esmagado por uma força sobre-humana, tudo de que você não precisa é de ficar admirando o amor dos outros.

Pelo amor de Dickens, vão se amassar em outro lugar! Argh!

Um táxi foi muito solícito assim que alcancei a calçada molhada e um senhor baixinho e carismático, sorridente por baixo de um lustroso bigode branco, guardou minhas coisas no porta malas antes de abrir a porta do passageiro. Seu forte sotaque indicava que ele não era inglês, mas talvez escocês ou algo parecido que não conseguia adivinhar. Passou os primeiros cinco minutos me fazendo perguntas sobre como meu natal havia sido e se havia admirado as belezas do interior do país. Eu teria adorado falar pelos cotovelos com ele, mostrar cada souvenir de York, contudo a única coisa que me passou pela cabeça foi fazer o seguinte comentário:

— Acho que estou me arrependendo dessa viagem...

— Se arrependendo? — ele ajeitou o retrovisor para me olhar. — Não deve se arrepender por nada do que já foi feito, moça. A não ser que você tenha matado alguém... Você matou alguém?

Olhei para ele, seus olhinhos verde-escuros ocultos por uns óculos meio sujo e quase na ponta do nariz. Sorri e apertei o visor do celular para conferir o horário e dar um suspiro longo e cansado.

— Ninguém morto. Pelo menos que eu saiba.

— Então anime-se, okay? Algumas coisas ruins acontecem para abrir caminho para as coisas realmente boas, sabe? Não ganhou nada de natal que tenha animado a sua viagem?

A lembrança veio como um gatilho imediato. Cada pequeno bom momento em York na companhia da família D’Orleans, as risadas de Luke no hospital, a neve e as flores, o primeiro beijo que Leopold me deu... Até me lembrar do tapa na cara de Bruce causou um sorriso e apertei os cachecóis contra o nariz, para respirar o cheiro daqueles fios coloridos.

— Meu presente foi bem especial, é verdade. Acho que só estou melancólica antes do tempo.

— A Inglaterra causa isso nas pessoas, sabe? — ele sorriu, claramente entendendo muito bem do que estava falando. Me questionei mentalmente sobre a história daquele senhor. — É por isso que todos voltam de um jeito ou de outro. É o feitiço dessa terra, tão moderna e antiga ao mesmo tempo. Sou um velho apaixonado por ela e muito bem correspondido.

Com uma piscadela divertida, o taxista ergueu um pouco o aquecimento do carro e ligou o rádio, muito gentil em me deixar com meus pensamentos enquanto a cidade passava por nós em toda sua deslumbrante forma.

Logo que o imponente Ben deu as caras no cenário, soube que estava perto do Bristol e me ajeitei no banco até que o táxi parasse na calçada diante das portas do hotel e o valet se aproximou para abrir minha porta, enquanto o motorista foi rapidamente retirar minhas malas do carro.

Paguei pela corrida com um enorme desconto, já que o senhorzinho fez questão de baixar o preço para me “presentear” como as novas boas vindas a Londres e entrei no Bristol com a sensação de que já fazia anos que tinha deixado aquele saguão acompanhada por Bruce Campbell, rumando para algumas boas mudanças na minha vida.

Cumprimentei a atendente no balcão e requisitei minha chave, enquanto o concierge Marco abria um enorme sorriso além das portas da secretaria e arrumava o terno antes de caminhar até mim, trazendo um envelope com ele.

— Feliz natal atrasado, senhorita Katerina.  Suas malas já estão sendo levadas e isto é para a senhorita. — o envelope branco estava selado com um adesivo que não identifiquei e rapidamente Marco também me entregou as chaves do meu quarto, colocando-se a disposição para mandar meu jantar se eu desejasse.

Não me lembro se respondi o feliz natal ou qualquer outra coisa naquele exato instante porque estava mais ocupada em rasgar o canto do envelope antes mesmo de chamar um elevador ou sair da frente do balcão. Lá dentro encontrei dois papéis, um deles era um voucher de um voo pago para Nova Iorque na manhã seguinte, e me entreolhei com Marco esperando a explicação.

Eu não tinha sequer conseguido uma resposta de Adria sobre uma passagem... Aliás, onde aquela maluca tinha se metido nos últimos dias?

— Seu traslado para o aeroporto também está incluso, senhorita Katerina. Ligue na recepção e chamaremos o motorista logo que estiver pronta. Também já adiantamos seu checkout para não atrapalhar sua saída pela manhã e basta sua assinatura antes de sair.

— Okay... — ainda não estava entendendo e Marco estava com um sorriso suspeito no rosto bronzeado.

— Está tudo explicado aí, senhorita Katerina.— o concierge indicou com os olhos o envelope, fez uma rápida mesura e se afastou para sua sala atrás do balcão, me deixando apenas com a atendente e seu olhar curioso.

Olhei novamente o voucher e consultei o horário do voo antes de investigar o outro papel que estava no envelope. Era um retângulo de sulfite bem dobrado ao meio, impresso de um email endereçado ao Bristol:

Leopold Thomas V. D’Orleans

Para Bristol Hotéis, A/C Marco Gillian     26 de Dezembro

 

Marco, bom dia.

Espero que este o encontre muito bem e que as festas natalinas tenham sido de grande primor e tranquilidade.

Gostaria de requisitar um favor com certa urgência.

Sua hóspede, Katerina Emily Dalton – acomodada no quarto 31, encontra-se em trânsito de York para Londres e possivelmente tardará a chegar ao hotel. Preciso que urgentemente envie alguém de sua confiança para retirar um voucher da British no guichê em Heathrow. Uma funcionária de nome Angeline, estará aguardando com os papéis necessários.  No anexo estão os documentos para a retirada, basta apresentar o email e fornecer o que mais for necessário.

Seria de extremo bom gosto que adiantasse também a saída da senhorita Dalton com o traslado e checkout. Como se trata de um retorno antecipado por motivos urgentes, é essencial facilitar todos os trâmites.

Conto com sua discrição e capacidade como de costume.

Agradeço imensamente,

Leopold D’Orleans.

 

Consultei rapidamente a moça que estava no balcão, encontrando um sorriso que esperava que eu dissesse qualquer coisa sobre o conteúdo do envelope que estava me causando uma cara de boba muito maior do que a minha já comum expressão.

— Seu namorado foi muito atencioso, senhorita.

— É... Pois é... Ele foi... — comecei a rir sozinha. Eu não ia desmoronar os sonhos românticos da jovem atendente do Bristol, dizendo que Leopold não era meu namorado coisa alguma.

Espere aí... Minha nossa.

Eu estava defendendo a ilusão romântica de alguém?

O que houve com a Katerina Dalton que defendia que não existia o amor romântico e que romances eram pura utopia? Onde foi que minhas ideias mudaram?

Subi para meu quarto relendo aquele email impresso e aumentando meu sorriso. Minhas bochechas estavam ardendo e doendo de tanto rir e foi com prazer que me joguei na cama do hotel, apanhando o celular para enviar um merecido agradecimento.

“Você precisa parar de me surpreender, Sr. Valois. Obrigada pelo que fez”.

A resposta demorou um pouco, alguns minutos torturantes.

“Fez uma boa viagem?”

Céus, eu precisava parar de sorrir para qualquer coisa. Aquilo já estava sendo ridículo.

“Tediosa, fria, cansativa. É, foi uma boa viagem sim. E como está York nas últimas horas?”

“Tediosa, fria, cansativa. Como de costume”.

“Achei que leria um doce clichê dizendo o quanto York se tornou vazia sem a minha caótica presença, Sr. Valois.”

“Não gosto de clichês, mas sei que a senhorita é inteligente o suficiente para deduzir as entrelinhas sem a ajuda óbvia de uma frase comum.”

O telefone do quarto tocou e me estiquei no colchão para atender. Era uma ligação internacional que evidentemente aceitei receber. Enquanto o sinal do ramal chiava no meu ouvido, digitei mais uma mensagem para Leo.

“Agora tenho uma dívida com você. Não sei se isso é bom, mas obrigada uma vez mais. Preciso atender uma ligação agora. Tenha uma ótima noite, Próspero.”

 O ruído da ligação ficou melhor e repentinamente a voz de Adria inundou o fone com toda a delicadeza de seus gritos. Pelo visto ela não estava em seu melhor momento de paz interior.

Princesa, porque você não me atendeu antes? Eu li todas suas mensagens! Como você está? Minha nossa, Kate...

— Calma, Adria, respire fundo primeiro. — dava para escutar minha irmã hiperventilando com facilidade.

Eu liguei centenas de vezes para você, mas sempre caía na caixa postal. Devo ter lotado a secretaria eletrônica de gritos!

— Eu não duvido.

Estranhamente, estava calma. Acho que na verdade estava ainda sedada com aquele gesto de Leopold, incapaz de raciocinar direito que ainda estava sem uma moradia fixa quando voltasse para Nova Iorque.

— Me conta tudo. Como isso aconteceu?

Resumi os fatos para Adria da melhor maneira possível, desde nossa última ligação até aquele instante. Claro que ocultei muitos detalhes, mas ela só precisava saber do resultado de tudo entre os Daltons e os Campbells, meu despejo do apartamento e que tinha conseguido um voo para bem cedo na manhã seguinte.

— E toda a tragédia grega da minha vida se resume nisso. Pronto, já podemos mandar o roteiro para algum cineasta maluco filmar. Talvez Woody Allen goste.

— Kate, isso tudo é um absurdo sem fim!

— Eu gosto de Woody Allen. Mas você conseguiu alguma coisa com a vovó?

Adria pausou. De certo estava pensando no que dizer.

— Consegui pensar em duas formas fáceis de mata-la durante o sono. Acho que resolveria as coisas.

— Adria! Não fale uma bobagem dessas. Tudo bem que ela já passou do prazo de validade na terra, mas não vamos exagerar. Não conseguiu nem um fiapo de esperança?

Nem um sorriso. Quem dirá uma conclusão de caso. Mas eu sei o que vamos fazer: assim que você chegar em Nova Iorque, vai ajeitar suas coisas e vir pra Nova Orleans. Você precisa falar com ela pessoalmente, Kate.

Adria estava certa, mesmo que eu não quisesse concordar. Pensar em retornar para Nova Orleans e encarar tudo que deixei para trás, era mais do que um looping certeiro no estômago.  Contudo, a hora de por um basta era aquela. Não poderia deixar passar.

Confirmei com Adria todos os dados do voo que pegaria pela manhã, meu horário de chegada ao aeroporto e ainda tivemos tempo de fofocar sobre todo o tipo de coisas que aconteceram no natal da família Dalton no sul. Principalmente enumerar e rir sobre cada primo e tia que acabou bebendo mais do que deveria ou comendo bem além das ditas dietas restritas e saudáveis. Quando ela desligou, me senti mais confiante.

Na realidade, já não temia nada que me esperasse nos Estados Unidos. Enfrentaria minha família definitivamente e estava começando a listar uma série de coisas interessantes que poderia mandar todos eles fazerem se me estressasse. Tipo “ir para o inferno” e outros lugares legais.

Pedi meu jantar no quarto e tomei um bom banho, lendo a última mensagem que Leopold deixou no aplicativo e que a ligação de Adria me impediu de ler. Como sempre, suas citações do Homem estavam por lá.

“Pode se preocupar com isso depois, Megera. Tenha uma ótima noite e uma boa viagem pela manhã. Aliás, “Palavras não pagam dívidas”.

Quase podia escutar seu sotaque irritantemente inglês se tornando mais pomposo apenas para finalizar com aquela frase, a sobrancelha arqueada e fatal ajudando um curto sorriso de vitória. Mas duvido que Leo tenha mandado aquela citação imaginando que faria um sentido ainda maior para mim.

O acordo de palavras entre famílias tradicionais estava condenado a partir daquele momento e Katerina Emily Dalton seria sua ruína.

Meu plano começaria a ser colocado em prática no dia seguinte e não havia Dalton ou Campbell que me impedisse. A operação “Libertação Katerina” estava prestes a começar.


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