Orleans escrita por MarianaCamara


Capítulo 15
Capítulo 15 - Pictures




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/430081/chapter/15

A primeira vez que levei um tombo feio estava com exatamente cinco anos. Uma idade feliz em que sua vida se resume a festas de aniversário, pinturas com guache e muitas lantejoulas. Se tiver sorte, sua professora pode deixar você levar um pedaço de massa de modelar para casa ou alguns gizes de cera. Não tenho muitas lembranças dessa época tão normal da existência, mas tenho uma cicatriz no joelho, que serve para me lembrar do acontecimento infeliz de voar da bicicleta direto para o chão.

Fazia algumas semanas desde que meu aniversário havia passado (porque naquela idade minhas comemorações não tinham sofrido a maldição dos deuses do destino) e eu estava doida para poder usar meu presente fora de casa. Naquele outono incomumente chuvoso, ficamos dias seguidos trancadas dentro de casa, tendo que aceitar que as saídas eram apenas usando capas e botas se não quiséssemos ficar doentes.

Meu pai havia me presenteado com aquela bicicleta depois de muitos pedidos e insistência. Era um modelo de pintura vermelha, com uma cesta de metal e rodinhas de segurança, o cano enfeitado com adesivos de margaridas. Bastaria um dia de sol para poder ostentar orgulhosamente aquelas rodas pela calçada da Rua Baltimore e mostrar para os gêmeos Whiterun que eu não era apenas uma garotinha que não sabia como me manter equilibrada em uma geringonça daquelas.

Por isso, conseguem imaginar a minha euforia quando a chuva pausou e o sol saiu tímido naquela tarde, brincando nas poças de água no asfalto. Dei tantas voltas no quarteirão quanto pude e quando finalmente resolvi subir a pequena rampa para a garagem de casa — um modesto meio degrau que fazia o carro do Sr. Kennedy derrapar às vezes — bastou um deslize para simplesmente me arrebentar no chão.

Não chorei tanto quanto deveria porque minha vergonha de ter caído da bicicleta no meu primeiro dia era tamanha, que me impedia de sair gritando por aí, apontando meu joelho ralado e o dente de leite lascado.

Foi muito difícil curar aquele joelho. Não que minha cicatrização fosse algo digno de um mutante residente da Mansão Xavier, mas também não era das melhores e unimos a isso a minha mania imensa de viver cutucando cada pequena casca que se formava naquelas dobrinhas de pele. Era só começar a coçar (sinal de que estava melhorando, aprendi muitos anos depois) para passar um bom tempo me dedicando a mexer no local como uma verdadeira perita em escavação. Então não é de se admirar que aquilo tenha se transformado em uma ferida inflamada e que no final se tornou uma marca.

No início causava algum transtorno, principalmente no verão, quando decidia usar shorts para tudo. Mas depois passou a fazer parte de mim e clarear ano após ano. Mesmo não sendo tão fácil de vê-la, eu sempre soube que ela estava lá para qualquer um que notasse mais minuciosamente.

Porém, ali estavam outras cicatrizes bem piores do que qualquer tombo de bicicleta com rodinhas. As cicatrizes de Leo.

Eram mais claras do que as minhas, já que não se tratava de joelhos ralados, muito mais do que aquele risco branco pálido que notei em seu pulso pouco antes e estava escancarada diante de mim, na frente dos meus olhos.

Leopold tinha uma noiva e ela estava morta.

Não sei exatamente qual era a minha expressão. Aquela revelação era muito profunda, mais do que imaginei que ouviria quando fiz aquela quase pergunta infeliz e agora não sabia lidar com aquilo, como uma criança que brinca de batata quente pela primeira vez e não sabe para quem jogar em seguida.

Tudo que eu sabia era sentir meu coração batendo como um tambor nas orelhas e um espaço vago onde ele deveria estar. Nem mesmo o frio intenso que vinha das janelas chegava a se igualar com a sensação térmica dentro de mim.

Eu poderia chorar (e talvez fosse o mais humano a se fazer), mas minha mente só conseguia tentar analisar aquela frase o mais rápido possível, dando sentido às coisas que envolviam aquele inglês que ainda me segurava nos braços, mesmo que seus olhos estivessem tão distantes agora.

— Leo, eu...

O que mais eu poderia fazer? Soltei seu ombro e desci de seus pés, nem reparando que a música do celular já tinha emudecido ou que o vento estava mais forte, sacudindo as cortinas. Provavelmente aquela informação desvendava muito mais dele do que eu poderia imaginar, dava sentido a detalhes como o gesto que teve de se afastar de mim e andar até as vidraças, trancando as janelas e o frio lá fora.

— Sente muito, eu sei. — ele completou assim que me olhou sobre o ombro e me viu ainda com a boca entreaberta tentando formar boas palavras.

Leo devia estar acostumado a receber pedidos de desculpas sobre aquela questão. Não era de se surpreender que muitas pessoas deviam sentir certa piedade dele pelo acontecimento e se desculpar por tocarem no assunto tão inconveniente. Mas eu não conseguia me incluir entre elas.

Estranhamente, a resposta não me criou comoção. No lugar disso era um amargo, quase uma queimação no estômago, um calafrio na nuca. Um coquetel perfeito de dor, surpresa e ciúmes, uma confusão que me colocava na desconfortável posição de detestar imaginar aquele homem nos braços de qualquer outra mulher e ter que demonstrar o mínimo de respeito que fosse pelo passado dele, mesmo que aquela morte ainda fosse nitidamente uma cicatriz dolorida.

Sim, como já havia me conscientizado, Leopold era um homem que como qualquer outro, tinha um passado. Alguns homens têm ex-mulheres e filhos, outros são tão promíscuos a ponto de deixar Casanova com inveja e Próspero tinha uma noiva morta. Uma mulher que claramente ainda significava algo e que sua família evitava pronunciar, afinal se o assunto não fosse importante, por que Janet e Lucas não falaram sobre isso antes?

— Eu não fazia ideia, Leo. Me desculpe, mas sua mãe disse que havia algo entre vocês e eu pensei...

— Pensou que provavelmente havia um romance com a jovem Charlotte, já que nada me impediria de ter um compromisso com outra mulher. Estou correto?

— Está.

Um sorriso dolorido passou pelos lábios de Leo e morreu rapidamente, enquanto seu rosto ainda estava refletido nas janelas. Ele não voltou a olhar para mim enquanto fechava os botões no punho de sua camisa ou ajeitava o nó da gravata no colarinho. Sua repentina frieza me acertou com tanta dureza quanto sua postura se tornou séria, como a afirmação do meu medo de ter tocado naquele assunto.

— Eu não compreendo com que tipo de homens tem se relacionado durante sua vida, Katerina, mas definitivamente, não sou um desses que se vangloria por conquistas frívolas e sem sentido. Ou que costuma colecionar mulheres como troféus. Juliet, Charlotte... Você vai pensar que existe algo entre mim e qualquer mulher que cruzar o seu caminho e souber meu nome?

Leopold se virou para mim e pude notar seu braço solto ao lado do corpo, os dedos tamborilando, sua mão abrindo e fechando. Os olhos gélidos também estavam ali, um muro que ele erguia habilmente para se manter seguro da minha clara insegurança.

Não podia negar que todas aquelas mulheres que pareciam surgir ao redor dele me intimidavam. Eu não podia batalhar contra alguém que conseguiu colocar Leopold Thomas Valois D’Orleans no caminho do altar (e nem queria!), mas me achava com um pouquinho de direito em saber mais sobre a questão. Seria a noiva uma das pessoas que Bruce acusou Leo de vitimar no acidente?

— Não se trata disso. Eu sei que fui um tanto insegura e que realmente imaginei estas coisas sobre Charlotte e até Juliet, mas não estou julgando você, Leo. Não tenho direito algum de fazer isso, mas eu nunca imaginaria que se tratava de uma coisa tão... Delicada.

— Delicada, realmente — ele voltou para perto do piano e se sentou no banquinho, para calçar as meias e os sapatos. Não me surpreenderia se saísse pela porta em seguida e me deixasse sozinha ali.

— Eu quero conhecer você, Leopold — disse em um disparate, caminhando até o lado dele. — Quero saber mais sobre quem você é. Seja Leo, Carma, Próspero... Você me pediu para confiar em você e eu confio.

— Confia?— sua sobrancelha arqueou, claramente duvidando do meu argumento. Naquele instante ele parecia mais ocupado com os cadarços dos sapatos do que em desfiar longas frases.

— Se não confiasse em você, jamais teria tocado nesse assunto. Mas eu preciso que você confie em mim também, Leo. Me permita conhecer você, mesmo com o mais delicado dos assuntos. Sei que talvez não seja a pessoa mais indicada na face da Terra, mas pelo menos me dê o benefício da dúvida.

Me sentei ao lado dele no banco do piano e segurei seu braço. No mesmo instante ele deixou os sapatos de lado para olhar na minha direção com uma faísca daquela frieza, mas não me intimidou como costumava fazer. Não parecia ser essa sua intenção.

Seu silêncio era incômodo, longo e durou até que eu pudesse escutá-lo respirar profundamente, vencido por uma parcela da confiança que pedi para ele ter em mim. Com um breve assentir, Leo deixou a mão sobre a minha e um vestígio de sorriso surgiu e desapareceu no canto de seus lábios.

— Está bem, Katerina Emily Dalton. Eu vou lhe conceder o benefício da dúvida, mas deve me prometer que vai me conceder o mesmo quando for preciso.

Nos entreolhamos. Acreditei que Leo estava falando sobre acreditar mais nele do que na minha recém-adquirida mania de achar que todas as mulheres que o circulavam estavam prestes a amarrá-lo em algum altar por aí, mas senti que não era exatamente isso. Claro que minhas dúvidas sobre a sinceridade dele tinham o deixado claramente chateado, mas até poucos minutos atrás eu jamais acreditaria se alguém me contasse que aquele inglês petulante já esteve prestes a se casar. E mais uma vez o pensamento apertava meu estômago.

— Eu prometo.

Sem nenhum vestígio aparente daquela armadura de proteção vinda do ártico, Leo apanhou minha mão e a beijou, saindo do banco do piano e recolhendo as partituras diante das teclas. Levou tudo junto com o celular para a escrivaninha e de lá me observou, indicando em seguida as janelas atrás das minhas costas, onde o vento batia sem poder entrar mais.

— O frio ajuda muito. Com as teclas. — Leo tornou a massagear o pulso. Ele sabia que eu entenderia perfeitamente do que ele falava, sem que precisasse de maiores explicações. Era um primeiro passo na sua confiança em mim.

— Dói? — calcei as sapatilhas antes de me aproximar dele.

— Não mais. Em contrapartida, algumas coisas se tornaram mais difíceis de fazer com o tempo. Alguns movimentos, a força.

— Posso? — Estiquei os dedos, mas não toquei o pulso dele até receber uma curta afirmativa que me permitiu desabotoar o punho da camisa de Leo e dobrar o tecido uma única vez, para observar de perto aquela cicatriz pálida em sua pele.

O mais curioso não foi o gesto de confiança dele, mas como simplesmente tocar aquela marca pareceu a coisa mais íntima que poderia passar entre nós naquele instante. Era um pequeno contrato entre mim e Leo, assinado pela forma dos meus dedos sentirem seu ponto mais fraco.

— Vai me detestar se eu fizer outra pergunta? — apertei os lábios, sem soltar a mão dele.

— Quer saber como isso aconteceu. Correto?

— Sim. Quero ouvir diretamente de você e não de outras fontes por aí. Acredite ou não, eu já escutei o bastante para ficar muito confusa sobre todos os mistérios que o rondam, caro senhor Valois. — sorri, mais confiante de que seria um sorriso bem vindo.

— Então, sou um homem de mistérios, senhorita Katerina?

— De certo. Um inglês sistemático e organizado, que simplesmente surgiu no meu setor da Barnes & Noble e cruzou o meu caminho da forma mais avessa possível, desafeto do meu noivo prometido, claramente amado por muitas mulheres... Só isso já o coloca em um ranking alto no quesito misterioso.

— Nem tão sistemático, mas muito organizado e de fato, senhorita Katerina, foi você quem cruzou o meu caminho. Da forma mais absurdamente desnecessária, mas a culpa é toda sua, mesmo que não assuma. Quanto a ser amado por muitas mulheres... — ele pausou, esmiuçando os olhos, fingindo pensar — Não são tantas assim.

— Ah, mas que soberba! Onde está o Sr. Leopold que agora mesmo discursou sobre não colecionar conquistas e mulheres?

— Eu nunca disse que as conquistei. Você que está dizendo que sou amado por muitas mulheres e eu estou contabilizando os supostos números. É um número pequeno, se a consola saber.

— Imensamente. Poderei dormir em paz essa noite — ri, acima de tudo porque era bom ter aquele tom de conversa com Leo mais uma vez, espantando o mal estar da lembrança inicial sobre sua noiva.

Notei que ele se esquivou de responder qualquer coisa sobre seu desafeto com Bruce, mas não quis relembrá-lo. Sair daquela zona escura em que aquele assunto tenebroso nos colocava já tinha quase me custado o almoço de natal, não desejava acabar quebrando minha promessa para Collins e sair chorando da casa dos Valois D’Orleans sem nem ao menos provar uma colher de comida natalina.

Era isso. Tinha que focar meus esforços em recolocar Leo em um clima mais leve, longe dos danos da minha curiosidade. Ele sabia que eu tinha perguntas e que teria de respondê-las uma hora, mas também precisava entender que eu não exigiria que fosse naquele momento. Mas ele parecia ter outra forma de pensar.

— Isso, — a voz dele me tirou daqueles pensamentos e foquei meus olhos em como ele hesitava em recomeçar o assunto, guardando as mãos dentro dos bolsos de sua calça jeans para evitar voltar a esfregar o pulso — foi o resultado de um acidente de carro há cinco anos, Katerina. Meu braço ficou preso nas ferragens, como pode imaginar. E depois de algumas cirurgias, devo me sentir um homem de sorte por ter uma mão e dedos que ainda se movam, mesmo que não muito efetivamente.

— Cinco anos. Então foi esse acidente... — senti o frio voltar para dentro de mim aos pouquinhos.

— Que causou o traumatismo que desencadeou a epilepsia de Lucas? Sim, Katerina. Foi esse mesmo acidente que matou minha noiva? Sim. Acredito que as respostas de todas as perguntas sobre isso sejam sim, inclusive sobre eu ser o desgraçado que estava atrás do volante.

As coisas fizeram um sinistro sentido para mim da forma mais triste que possam imaginar. Não consegui nem ser egoísta o suficiente para voltar a sentir aquela pontinha de ciúmes sobre a ex-noiva de Leo. Só consegui engolir minha saliva e sentir alguma coisa dentro de mim oscilar entre lágrimas e compreensão. Não imaginava o tamanho do inferno que ele vivia a cinco anos, carregando o fardo de ter destruído não apenas a própria vida, mas de outras pessoas. A culpa monstruosa de ter causado a morte da mulher que amava, com quem ia se casar, devia cobrá-lo todos os dias quando seus dedos falhavam ou seu pulso tremia com qualquer esforço. Era uma lembrança contínua da sua dor e dos outros.

Bruce Campbell disse que Leopold havia causado a morte de duas pessoas, mas eu não me atrevi em perguntar sobre a segunda vítima. Tinha medo do que poderia escutar e o jeito de Leo em encarar o chão já era doloroso demais para aumentar aquele momento.

— Você não precisa falar sobre isso, está bem? — toquei seu rosto, fazendo-o olhar pra mim. — Eu não devia ter feito tantas perguntas. Nunca sei quando fechar a boca, não é mesmo? Você devia ter me mandado ficar quieta desde o começo.

Meus olhos marejados me traíram e Leo limpou uma pequena lágrima antes que ela rolasse pelo meu rosto. Só conseguia pensar no quanto ele devia estar machucado desde então, no quanto seus dias dedicando-se a Lucas faziam sentido, em como até seu sarcasmo e olhos gélidos tinham alguma compreensão de existir. Leo era um homem vivendo seus dias por trás de uma armadura de indiferença e tentando proteger as pessoas que amava do pior que poderia acontecer: serem feridas por ele mesmo.

— Eu preciso que me conheça, Kate. Que saiba com quem está lidando. — ele limpou outra das minhas lágrimas, apanhando minhas mãos. — Eu disse desde o começo que era péssimo.

— Me nego em acreditar nisso, Leo. Você não teve culpa, foi um acidente. Acidentes acontecem todos os dias. Uma fatalidade.

— Existe uma sutil diferença entre um acidente ao acaso e algo causado por imprudência, Katerina. Quando ocorre uma falha mecânica, uma causa natural, o azar de se estar no lugar errado e na hora errada. Isso é um acidente. Mas quando se poderia evitar um erro humano simplesmente por uma pitada de responsabilidade...

Conseguia prever o final do pensamento de Leo. Era uma lógica alimentada ao caminhar de anos tolerando todo o resultado de alguns segundos no volante de um carro. Uma vida perdida, a juventude do irmão caçula colocada em risco; aquilo pesava mais do que simplesmente aceitar que algumas coisas acontecem mesmo quando tomamos todas as precauções. Eu conhecia intimamente o Sr. Murphy e sua lei sobre acontecimentos. Sendo bom ou ruim.

— Você tinha bebido.

— Mais do que o indicado. — ele assentiu com os olhos fixos em nossas mãos entrelaçadas. — Não me orgulho nada disso, Katerina. Nunca fui forte para muita bebida e naquela noite, ultrapassei claramente meus limites.

Okay, aquilo havia sido irresponsável, mas qual seria a utilidade em dizer isso depois do acontecido? Como o senhor Kennedy Dalton costumava dizer, “de nada adianta chorar pelo leite derramado”. O que está feito, feito está. Nada poderia mudar o resultado.

— Nós saímos da cidade naquela noite depois de comemorar por algumas horas dentro de um pub e pegamos o caminho para casa. Bastou uma distração, segundos em que olhei para o banco de trás, o suficiente para não ver quando as ovelhas atravessaram a estrada. Minha noiva ainda gritou, mas eu não consegui desviar a tempo e o carro desgovernou. Pelo visto a velocidade também estava além de um dos limites que ultrapassei naquela noite...

— Leo... — soltei uma das minhas mãos para tocar o rosto dele. Queria ver seus olhos. Se pudesse, gostaria de apagar aquilo da lembrança dele com alguma borracha-mágica-da-terra-das-fadas-que-desfazem-o-passado-desalmado-das-pessoas, mas esse tipo de coisa não existe (tampouco fadas) e eu só podia torcer para que ele entendesse no meu olhar que eu não o culpava.

Ficamos em silêncio, até que pelo corredor do primeiro andar escutamos alguns latidos irritantes e outras vozes, que se misturavam a risos e uma sineta, que tocava insistente.

— Vamos Pierre, solte a calça do seu irmão. Seja um bom menino! — escutava Juliet rir alto.

— Essa praga com pelos não é meu irmão. Me solta, Pierre! — Lucas rosnava, claramente em uma disputa com o cachorro. Se bem me recordava, Pierre era o chihuahua da família, aquele que Janet amava como se fosse o terceiro filho dos Valois D’Orleans. Pelo visto ele e Luke não se davam muito bem.

Ainda não tinham surgido pela porta quando me entreolhei com Leo, fazendo um gesto para me afastar dele, mas desta vez ele não permitiu que eu deixasse suas mãos ou sua proximidade e arqueou a sobrancelha na minha direção, passando o braço ao redor da minha cintura.

— Fique.

— Mas sua família... — claro que a questão não era a família, mas especificamente Juliet e Luke, que ainda não sabiam nada sobre minha farsa do noivado com Bruce. Tinha medo de como Juliet reagiria e não queria ser responsável por destruir o natal.

Se bem que internamente eu estava pagando para ver a cara dela. Podem inserir uma risada muito maléfica aqui. Obrigada.

Olhei na direção da porta uma vez mais, ansiosa. Parecia que estava fazendo alguma coisa muito errada e estava prestes a ser pega por alguma autoridade.

— Definitivamente, Katerina, sou contra qualquer tipo de decisão tomada as pressas ou sobre algum tipo de pressão, mas serei muito claro. Diante do que escutou aqui, do que sabe até agora, do pouco que me conhece e os atuais acontecimentos na sua vida; te dou duas escolhas: ficar e assumir os riscos de estar ao meu lado, ou recuar e fingiremos que nada disso aconteceu.

— Não pode me pedir que decida isso dessa maneira! — comecei a rir de nervoso.

— Já estou pedindo. Se não tomar uma decisão, vou tomar por você.

— Você não ousaria...

— Não duvide. Se consigo encontrar um bom exemplar de qualquer autor em uma prateleira com mais de mil títulos, não creio que você possa imaginar que titubearia em fazer uma boa escolha.

— Leo! — Lucas chamou pelo corredor. Sua voz muito próxima agora. Os latidinhos seguiam os passos e ficavam mais irritados quando alguém voltava a tocar aquela sineta que lembrava um Papai Noel andando pela casa.

— Então, com essa decisão — ergui as mãos para ajeitar a gravata dele, pelo simples fato de não saber exatamente o que fazer com as mãos enquanto Leo me abraçava pela cintura.— o senhor não estaria mais propenso a acreditar que está apaixonado por mim, estaria? Seria o final do desafio.

— Eu disse que caberia a você descobrir, Kate.

Encontrei os olhos de Leopold e não consegui deixar de sorrir. Era uma mudança drástica e bem vinda ao teor da nossa séria conversa até ali. Ter que decidir entre me afastar ou permanecer parecia simples a princípio, mas era bem mais complexo. Significava aceitar que haveria o peso do trauma de Leo para suportar, a sombra de uma noiva que o deixou prematuramente e principalmente, aceitar todos os riscos de me machucar imensamente, caso todos os meus esforços para cancelar aquele casamento forçado fossem em vão.

“Finais felizes não existem”, eu ficava me lembrando. Mas eu poderia fazer um final ao menos satisfatório, não poderia?

—“Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com frequência, poderíamos ganhar por simples medo de arriscar”. Não concorda, Próspero?

— Definitivamente, Megera. Definitivamente.

Precisei apenas erguer os pés para beijá-lo e atiçar todas as borboletas dentro de mim. Torcia para que nunca me acostumasse o bastante com os lábios de Leo para não perder aquele turbilhão que ele me causava e que simplesmente drenava o mundo exterior. O efeito “Próspero” era tão intenso, que não escutei quando Lucas e Juliet chegaram à sala de música, nem mesmo a primeira reação dela com aquela cena. Mas consegui escutar muito bem a segunda, misturada com uma enorme crise de risos de Luke.

— Vocês podem me explicar o que está acontecendo aqui? Katerina! Leo!

Baixei meus pés e ri discretamente, ajeitando a camisa e a gravata de Leopold como se aquilo fosse minimizar o detalhe de que estávamos nos beijando no segundo anterior.

— Obrigado — ele moveu os lábios recitando um agradecimento pela minha escolha, sem precisar dizer em voz alta. Nem parecia que os gritos de inconformidade da prima estavam o atingindo ou que seu irmão já estava próximo de nós com sua cabeleira ruiva surgindo de um canto.

— Finalmente, né? Achei que vocês não iam se acertar nunca! — Lucas gargalhou, apoiando os braços sobre nós dois. Pelo visto o ruivinho sabia bem mais do que eu imaginava, mas se tratando dele, nem sei porque ficava surpresa. — Oi Kate. Bom te ver, sabia?

Comecei a rir alto.

— Eu confiei em você, Katerina! — Juliet apontava para mim da porta. Estava tremendo, os olhos repleto de lágrimas. Jurava que poderia desmaiar se não estivesse segurando Pierre nos braços e tivesse forças para sair correndo de volta para o corredor, soluçando audivelmente.

— Minha nossa... Ela vai ficar bem? — me preocupei um pouco com o que Juliet poderia causar naquele nervoso todo.

— Eu vou conversar com ela — Leo suspirou.

— Ela não vai morrer. Eu não morri — Luke piscou pra mim. — Mas se você vai atrás dela, Leo, sugiro que vá agora. Mamãe já mandou tocar esse sino mais vezes do que eu me lembro, pra avisar que o almoço está servido. Você sabe que ela não vai querer perder o pronunciamento da Rainha às três.

Luke tocou aquele pequeno sino dourado mais algumas vezes para atormentar o irmão e só quando Leo se afastou para encontrar Juliet, é que ele aceitou fazer um pouco de silêncio (mesmo que os silêncios de Lucas significassem algumas risadinhas perdidas no ar).

— Sou todo ouvidos — declamou, me abraçando pelos ombros conforme andávamos para fora da sala. Ele cheirava a doces como de costume, mas dessa vez alguma coisa com baunilha, uma calda quente sobre sorvete. Estava tão adorável com aqueles cabelos enferrujados meio presos, a camisa xadrez azul e uma gravata borboleta, que quase dava vontade de morder sua bochecha sardenta. — Quero saber tudo, senhorita Kate.

— Eu quem deveria saber tudo, senhor Lucas. “Achei que vocês não iam se acertar nunca”? Não foi nada discreto da sua parte.

— Digamos que sou quase uma fada madrinha. Aliás, como se chamam os maridos das fadas? Fados? Fadas-machos? Fado padrinho soa mal pra caramba, não acha?

— Luke, não desconverse! Desde quando você está sabendo disso?

— Não estou desconversando nada. Eu não posso ser uma “fada padrinho”. Bom, mas eu estou sabendo disso há... — parou de andar pelo corredor acarpetado, para consultar o relógio de pulso. — Nem dez minutos. Há quanto tempo isso acontece? Quero dizer, você e Leo, beijos, sorrisos, essas coisas...

— Dois dias, eu acho. Depois do chá. A biblioteca.

— Eu sabia, sabia! — foi o motivo para mais uma gargalhada do ruivinho, acompanhada do ruído engraçado do sino que tocou quando socou o ar, comemorando. — Tinha certeza de que isso ia acontecer, Kate. Eu tentei te dizer no apartamento em York Way, mas não tive a chance. Além de você ser a única pessoa que consegue ter paciência com o Leo, você não tinha percebido que ele gostava de você.

— Pois é, eu não tinha percebido. Acho que estava ocupada demais detestando o seu irmão pelos motivos errados e tentando não mata-lo a cada vez que nos encontrávamos.

— A tensão faz parte do bom relacionamento de vocês. — voltamos a andar, rindo. — Quando ele chegou em casa depois de sair da delegacia em Nova Iorque, contando que tinha salvo uma atendente da Barnes & Noble de acabar levando um tiro de um delinquente, reclamando que tinha machucado o pulso por isso e todo o tipo de resmungo que você pode imaginar; uma coisa me disse que essa atendente não era uma pessoa qualquer. Por isso eu tinha que te conhecer pessoalmente, Kate e você me conquistou de cara.

— Então o senhor estava tramando tudo isso desde o começo? — juro que fiquei um pouco incrédula, mesmo que fizesse um tremendo sentido.

— Não tanto. Mas se Leo havia simpatizado com alguém o bastante para se arriscar daquela forma, vindo dele, era uma grande coisa, Kate. Meu irmão passou por uma série de problemas sérios e eu nunca imaginei que alguém pudesse atingi-lo depois de tanto tempo.

— Leo me contou sobre isso hoje, Luke. Sobre o que há entre ele e Charlotte Lewis, sobre o acidente.

— Então você consegue entender porque estou feliz que vocês estejam juntos? Eu sei que você pode até ficar brava quando parar pra pensar em quantas vezes eu interferi, fazendo ele ir atrás de você mesmo quando ele só queria ir embora para casa, mas eu só pensei no bem dele. Ele vive fazendo o mesmo por mim nos últimos cinco anos... Acho que já passou da hora dele voltar a viver a vida dele, Kate.

Paramos em frente às portas da sala de jantar e não contive minha vontade de beijar a bochecha de Luke e abraça-lo com força. Claro que eu conseguia me lembrar das tantas vezes que Próspero surgiu no meu caminho dizendo que o irmão havia pedido ou insistido para que ele estivesse ali. Como quando me levou o livro de Shakespeare durante meu horário de trabalho, antes de sair de Nova Iorque ou me salvou do jantar com o Sr. Dalton no Babillon Caffe.

— Agora eu preciso fazer uma pergunta, Kate. — as sobrancelhas de Luke se apertaram, tão ruivas quanto seus cabelos. — E o seu noivado com Bruce Campbell?

As portas da sala de jantar se abriram e revelaram não apenas um interior decorado e mais quente do que os corredores, mas uma Janet D’Orleans impecavelmente bem arrumada e corada, com um largo sorriso ao nos ver.

— Vire essa boca pra lá, Lucas! Não falamos o nome do diabo em um dia de festa como hoje. Não quero nenhum pio sobre nenhum Campbell enquanto for dia 25 de dezembro.

Janet ganhou terreno e me apertou num abraço, dando dois beijos no meu rosto antes de ajeitar meus cabelos e analisar bem meu vestido. Dada por satisfeita, fez um positivo com o polegar e nos puxou pelos braços para dentro da sala, fechando a porta logo atrás de nós.

— Edward, olhe só quem chegou! Que bom que você veio, Katerina. Claude fez duas vezes mais puddings esse ano, contando com o bom apetite americano. Eu disse que era exagero, mas ela não me deu ouvidos. Lucas, onde está seu irmão? Você não prendeu Pierre em algum cômodo da casa como no ano passado, não é?

Era de se esperar que Janet estivesse falando pelos cotovelos, animada como o próprio filho, que respondia suas perguntas em uma avalanche de frases, exatamente como ela.

Nos sofás, Edward D’Orleans observava a mulher e o filho, erguendo gentilmente uma taça de vinho na minha direção, como cumprimento. Caminhei até próximo dele e seus ares elegantes, me sentando na poltrona próxima após cumprimenta-lo.

— Não esperava vê-la de volta tão cedo, senhorita Dalton. Gostando de sua estadia em York?

— É um lugar encantador, Sr. D’Orleans. Espero não estar incomodando o almoço de vocês.

— De forma alguma. É interessante ver a ordem natural das coisas ser perturbada com um pouco de caos novo.  Talvez goste mais de York em outras estações. É mais belo no verão e bucólico nas primaveras. Aceita um pouco de vinho?

Era impressão minha ou Edward D’Orleans havia me chamado de Caos?

Aceitei o vinho. Precisava de alguma coisa para me ajudar a ficar mais tranquila depois de tantos acontecimentos. Na verdade minha vida estava se assemelhando muito a um ciclo de máquina de lavar, dividida entre enxagues calmos e curtíssimos entre toda a bagunça da centrífuga. Uma centrífuga com anos de duração.

Passei a reparar em toda a decoração maravilhosa da mesa de almoço, com sua louça branca de dourada, talheres cintilantes e mais copos do que eu saberia usar. Frutas exóticas em um cesto dourado, velas vermelhas, flores e pinhas. A lareira crepitava em um canto da sala e a vista branca das janelas transformava tudo em um natal mais do que perfeito.

Claude estava servindo os pratos na mesa, que enchiam tudo com um aroma particularmente faminto. Um imenso peru recheado coberto de molho, batatas coradas com cenouras e ervilhas, cebolas com um caldo dourado de dar água na boca. Bolinhos de todas as formas em travessas, couves escuras e pães entre alguns pacotes prateados embrulhados como balas, que pareciam muito com algum tipo de presente surpresa.

Crackers. — Lucas pulou no braço da poltrona, se encarapitando ao meu lado assim que notou meu olhar na direção da mesa. — Você puxa as bordas como faria para abrir um bombom e ele estoura. Tem um presente dentro ou uma frase, junto com as coroas de natal. É bem divertido.

— Coroas de natal? Tipo... Coroas? — fiz um gesto sobre a cabeça.

— Isso mesmo. São de papel, é bem legal para tirar fotos. Você vai gostar, Kate.

— Ela vai detestar, sejamos sinceros. Mas vai usar da mesma forma. — Janet se juntou a nós, enchendo a própria taça com o vinho tinto que o marido estava saboreando. Desviou da curiosidade de Lucas antes de se acomodar, chamando a atenção de que ele não podia nem mesmo experimentar nada do vinho agora que recomeçaria a tomar seus remédios regularmente. Concordei com ela.

Eles começaram uma conversa muito distinta e calma sobre o tempo lá fora e como a neve havia se adiantado naquele ano, para a alegria dos turistas e o terror dos lojistas. Edward ficou muito interessado na minha descrição dos bons serviços do Knight’s Inn e finalizou a questão sobre o aumento das pensões e hotéis em York com uma consideração de que sim, eu deveria levar bolinhos de conhaque para Christine e Raymond ao final do dia.

Claude se aproximou para avisar com sua voz suave que o almoço já estava todo servido e pediu para se retirar, recebendo um caloroso abraço de feliz natal de Lucas e desejos de um dia tranquilo dos demais. Janet suspirou profundamente assim que a mulher saiu da sala de jantar, reclamando que por mais que amasse o natal, sempre havia a triste lembrança de que naqueles dois dias, a louça da casa era completamente sua responsabilidade. Afinal não podia evitar que os empregados passassem as festas com suas famílias.

Me dispus a ajudar depois do almoço e Janet estava dando exemplos do tamanho da pilha de pratos que se acumulava depois das refeições de família, quando a porta da sala de jantar deu entrada a um barulhento e irritadiço Pierre.

O cãozinho zuniu entre cadeiras e saltou para o colo de Janet com uma série de grunhidos de satisfação. Parecia ter sido forçado a permanecer milênios longe dela.

— O que foi, meu pequeno? Onde você estava? — Pierre latia e lambia o rosto de Janet, entre pulos animados, fazendo Edward revirar os olhos antes de se levantar da poltrona.

— Por Deus, Janet, coloque esse cachorro no chão.

— Eu disse que ela gosta mais dele do que da gente, não disse? — Lucas cochichou comigo, me fazendo rir por trás de mais um gole do vinho. Com certeza minhas bochechas estavam coradas depois de alguns goles.

Pela porta entreaberta, Juliet entrou como um alvoroço loiro. Nem havia reparado no quanto estava bonita com um vestido azul vibrante, que iluminava seus olhos. Claramente contrariada, puxou uma das cadeiras e se sentou á mesa, sem se preocupar em cumprimentar ninguém ou dizer qualquer coisa.

Leo fechou a porta depois dela, testando um princípio de sorriso que não era um bom sinal. Pelo visto a conversa entre os dois havia sido bem mais árdua do que aparentava.

— Pois bem. Agora que estamos todos aqui, podemos começar este almoço? — Edward sentou na ponta da mesa, aparentemente seu lugar fixo. Em pouco tempo estávamos todos sentados e Janet logo pediu para que todos se servissem, encobrindo a cara fechada e o clima estranho que Juliet havia trazido, com o som de pratos e talheres alegremente sendo preenchidos.

Lucas saiu da mesa para colocar seu celular perto das poltronas, tocando uma melodia conhecida para completar o ambiente. E voltou com um olhar vitorioso de quem havia conquistado a perfeição natalina com aquele toque musical.

Por alguns minutos, fiquei realmente ocupada dedicando minha atenção às histórias de natal da família D’Orleans, que Janet começou a contar depois da segunda taça de vinho. Estávamos todos ocupados entre as garfadas da comida divinamente bem preparada e as risadas, principalmente quando era obrigada a imaginar como teria sido o dia de natal quando Lucas embrulhou uma galinha para presentear Claude ou quando Leo se prendeu em um baú numa brincadeira de esconde-esconde que quase acabou com a polícia.

Diferente do que havia imaginado antes, os Valois D’Orleans não eram uma família ranzinza e fria como tipicamente se espera dos ingleses. Eram calorosos e educados, completamente dedicados a cuidarem uns dos outros, mesmo que tão discretamente. Não era difícil de notar que fariam qualquer coisa por um membro da família, mesmo que distante, como Juliet ou diretamente, como Leo. Portanto passei a admirá-los muito mais quando pensei no quanto àquela união devia tê-los ajudado a passar pela nuvem negra que os acertou depois do acidente dos filhos.

Mesmo que aparentemente fossem uma família de posses e sem grandes atribulações em suas vidas, agora eu conseguia compreender que o que haviam passado de pior, tinha os mantido mais fortes. E de uma forma boa, eu os invejava muito por isso.

Entre os risos de Janet e os poucos sorrisos de Edward, fiquei imaginando o quanto sofreram como pais, vendo os dois únicos filhos colocados em perigo por uma tristeza do destino. Não conseguiria me colocar no lugar deles, assistindo os sonhos de seus filhos no fio de uma navalha, brigando entre vida e morte. Poderiam ter culpado Leo por tudo aquilo, tornado sua vida tão miserável quanto o próprio julgamento já devia ter transformado, mas dificilmente aquelas pessoas fariam isso. Ao contrário, conseguia imaginar Janet passando dias e noites aos pés da cama de hospital de seus meninos, repetindo que tudo ficaria bem, cantarolando “You are my Sunshine” para cada um deles. Edward com toda a certeza tinha gasto cada centavo para dedicar os melhores tratamentos para os filhos, mesmo quando todo o possível já havia sido feito.

De fato, as sombras haviam fortalecido os D’Orleans e agora eu entendia muito bem.

******

Tínhamos terminado de estourar os famosos crackers, enchendo a mesa com confetes metálicos coloridos e mais risadas. Dividi meu pacote com Luke, que estava sentado bem ao meu lado, e quando puxamos as abas do embrulho (que estourou mais alto do que imaginei), disputamos para encontrar o brinde no meio daquela bagunça de papéis brilhantes.

Não era nada de grande valor, na verdade meu presente era uma frase — que parecia ter sido tirada de um biscoito da sorte — e uma vaca de plástico azul, que foi elegantemente equilibrada na borda da minha taça de vinho.

“A vida trará boas coisas se tiver paciência”, dizia o papelzinho. Não podia negar que estava colhendo algumas coisas boas nos últimos dias, mas a safra ruim ainda insistia em aparecer. Não fiquei muito tempo pensando nisso, afinal tinha um ruivinho arrumando meus cabelos para colocar uma coroa de papel no topo da minha cabeça.

— Todos saúdem a rainha Katerina de Nova Iorque! — ele anunciou e todos ergueram suas taças, rindo e saudando a brincadeira. Realmente, coroas de papel eram divertidas, mas uma parte de mim tinha de concordar com Janet. Era um costume que só combinava perfeitamente ali, na Inglaterra, precisamente em York, na mesa dos D’Orleans. Nenhum outro lugar do mundo pareceria natural de se usar coroas no natal.

Janet e Edward dividiram seu cracker e enquanto ela tentava fazer o marido colocar a bendita coroa prateada na cabeça, ele fazia uma careta com a piada que tinha ganhado de brinde, claramente discordando do tom humorístico do fabricante. E para cada membro da família que recebia sua coroação, as taças e copos eram erguidos, goles eram tomados e mais alguns sorrisos e risadas enchiam a mesa... Com exceção de Juliet.

A garota parecia imersa em um mar de silêncio. Estava experimentando seu próprio luto pela perda do primo, mesmo que tentasse sorrir de vez em quando, apenas quando seu nome era citado. Conseguia sentir como ela olhava na minha direção, seus olhos sempre se enchendo de lágrimas e raiva, discretamente limpos com um guardanapo de tecido vermelho.

Agora pensando calmamente sobre a questão, tentava fazer alguma ligação entre a paixão possessiva de Juliet e sua esperançosa certeza de que Leo dedicava para ela algum tipo de afeição que não fosse a familiar. Lucas havia dito em nosso passeio pela roda gigante na Winter Wonderland, que a prima estava morando com eles há quase cinco anos. Isso colocava Juliet bem após o quadro do acidente, possivelmente ali para ajudar os tios distantes ou os primos, talvez consolar a tia em um período tão complexo, mas de qualquer forma não conseguia achar que ela fosse tão infantil a ponto de ter criado uma ilusão daquele tamanho sem motivo algum. Aquele ainda era um mistério para desvendar.

Fugi da linha de pensamento quando ela se levantou, pedindo licença para os tios antes de se retirar da mesa, sendo seguida por Pierre e seus latidos. Realmente seu mau humor não combinava com a festa e com todos os risos que aquelas brincadeiras com os crackers estavam causando, mas aparentemente ninguém se deixou abalar pela saída de Juliet como imaginei que pudessem. Com a batida forte que ela deu na porta da sala de jantar, ficou apenas um suspenso momento de silêncio, que Janet tratou de desfazer mudando o foco da conversa para o cracker que Lucas tinha acabado de estourar, ganhando um apito e um enigma como brinde.

Óbvio que ele não ligou nem um pouco para o desafio de descobrir a resposta da charada, mas começou imediatamente a azucrinar todos com uma série de palavras assobiadas pelo bendito apito colorido, que Janet ameaçou jogar pela janela se o ruivinho não se comportasse.

E enquanto a pequena discussão animada da mesa tinha foco no número preciso de pios estridentes que levariam o presente de Luke a desaparecer da mesa, passei a prestar atenção em um silencioso Leo que estourou seu cracker sem muito alarde, remexendo os confetes coloridos que encheram seu prato manchado de molho de peru, para encontrar seus brindes. Encontramos olhares e ele sorriu de canto, apontando o pequeno papel enrolado que continha sua prenda, lendo-o com um erguer da sobrancelha.

Depois, esticou o tubinho com os dedos para que eu pudesse ler e ficou observando minha reação com o canto dos olhos, enquanto desdobrava a coroa de papel prateado para colocar no topo da cabeça. Gesto que claro, não escapou dos olhos de Lucas, que ergueu seu copo de suco com uma mistura de trinado irritante e pedido de brinde, pelo último coroado da mesa. O momento perfeito para Janet Valois arrancar aquele apito dos lábios dele num movimento, jogando o brinde do outro lado da sala e apontando o indicador bem diante do nariz sardento do filho, desafiando-o a ficar sentado ao invés de correr para buscar o brinquedo.

“O riso é a menor distância entre duas pessoas”, foi o que li. E Leo ergueu sua taça do outro lado da mesa, numa concordância com o papel. Não podia discordar dele.

Não vi qual foi o outro brinde que Leo ganhou, já que Janet estava rindo aos borbulhes de uma flor de plástico cor maravilha que tinha arrancado de dentro de seu cracker um pouco antes, pedindo que eu a prendesse nos seus cabelos. Assim que arrumada, saiu da mesa prometendo voltar com a sobremesa e indicando que haviam presentes a ser abertos.

Os pacotes que estavam escondidos ao lado de um dos sofás, bem perto das janelas da sala de jantar, não eram os mesmos que vi no térreo da casa, embaixo da árvore. Estes eram embrulhados de uma forma mais rústica, sem tantos laços, mas cada embrulho tinha uma estampa engraçada — como cãezinhos e pôneis, quando o nome dos meninos estava nitidamente marcado, ou corações azuis enormes para Edward.

Luke foi o primeiro a afastar sua cadeira e voltar com alguns embrulhos, esticando-os para o irmão e para o pai, antes de colocar uma pequena caixinha na minha frente, com uma piscadela arteira.

— Tem um presente pra você também. Mais de um, na verdade. Mas eu espero que abra o meu primeiro, afinal, eu mereço.

— Você está ficando muito convencido, senhor Lucas.

— Nem tanto. Vai ficando pior conforme o tempo passa. Mas vamos, abra logo!

Edward estava rasgando o próprio papel de presente e olhando nada surpreso para pesado blusão de lã decorado com pinheirinhos de natal. Não era a moda mais fashion do planeta, mas lembrava um daqueles presentes de avó, que pareciam quentinhos apenas de se olhar.

Lucas soltou uma risada alegre quando abriu seu primeiro presente, comemorando o conjunto de cordas novas que seu irmão havia escolhido e depois não comemorou tanto, quando seu segundo presente encheu suas mãos de meias.

— Será que ela acha que eu gasto tantas meias assim? — Luke suspirou e deu-se por vencido quando seu pai ergueu as meias que tinha ganhado também, recém tiradas de dentro do outro pacote.

— Se isso o consola...

— Não muito, pai. Aposto que Leo também ganhou algumas.

Ele estava certo. Leo apertou o embrulho de cãezinhos que estava em sua frente e logo deduziu que lá estavam seus pares de meias, provavelmente para combinar com o colete de lã que estava na caixa ao lado ou a gravata azul e lilás da caixa de feltro que tinha sobrado. Pelo visto os D’Orleans tinham pensamentos bem práticos sobre presentes de natal (ou deixavam as compras todas por conta de Janet, o que explicava ainda mais aquelas combinações).

Olhei então para meu embrulho mais uma vez, sem jeito de não ter comprado nada para nenhum deles. Seria pior se rejeitasse toda aquela cortesia. Abri então a pequena caixa e me deparei com um par de fones de ouvido sem fio, claramente um presente que Lucas me daria.

— Pode dizer, atendente cantora da Barnes & Noble: eu tenho bom gosto — o ruivinho riu divertido, ainda mais depois que o agradeci.

Tinha ainda um embrulho para abrir, uma caixa de papel com listras em vermelho, azul e branco. Estava abrindo um dos cantos assim que Janet voltou com um carrinho de servir, colocando lindos bolos na mesa, cobertos com cerejas e uma calda que parecia perfumada com brandy.

— Feliz natal, meus queridos. — ela cumprimentou a todos, tirando do bolso de um avental que tinha vestido, um pequeno maçarico. Num clique diante de cada bolo, Janet encheu os pratos com chamas azuladas, flambando as caldas de licor com um espetáculo a parte. — Voilá! Os puddings estão servidos!

Comecei a rir quando puxei a tampa da caixa e vi minha cota de meias de presente. Diferente das meias sociais que os homens haviam ganho, as minhas eram uma explosão colorida, com bolinhas e listras, compridas e mais curtas, e no fundo da caixa, uma peça macia de tricô chamava a atenção. Era um cachecol amarelo ovo gritante, sem nenhum detalhe sequer.

— Minha mãe queria saber qual sua cor favorita, então pensei que pudesse combinar com aquelas galochas horrendas, Katerina. Com tanto amarelo em uma única pessoa, é impossível que alguém implique com aquela aberração que gosta de usar nos pés. — Leo sorriu do outro lado, cortando um daqueles bolinhos apenas usando uma colher.

— Vai querer o seu de volta? — coloquei o cachecol dando uma volta no meu pescoço.

— Eu disse que era para dar sorte. Não se pode devolver a sorte.

— Será que posso usar os dois juntos? Não vai ficar muito...

— Grifinória? Possivelmente. Mas desde que use em Londres ou em eventos juvenis, não vejo nenhum problema na combinação aterradora, Kate.

Os bolinhos foram degustados de acordo com todas as coordenadas de Janet e com certeza, fazia muito tempo que não comia tão bem como naquele almoço. Além do clima natalino e de todos os sorrisos, me sentia a vontade o suficiente entre aquela família e não deslocada como possivelmente estaria em qualquer outro lugar estranho. Claro que Leo e Luke me deixavam mais relaxada, sempre falando comigo, me inteirando de cada assunto, fazendo questão de que eu participasse — o que ajudava ainda mais.

Assim que o relógio se aproximou das três da tarde, Janet se aprumou da mesa. Como em todos os anos desde a sua infância (como fez questão de frisar), costumava ouvir ou assistir o pronunciamento de natal da Rainha, transmitido agora pontualmente pela tevê. Por isso não permitiu que ninguém retirasse nenhum prato da sala de jantar e convidou a todos para acompanha-la até outro cômodo, onde poderíamos assistir à programação.

— Vou caminhar, se permite, mãe. — Leo beijou o topo dos cabelos dela e recebeu um meio abraço de volta. — Me acompanha, Katerina?

— Cla-claro... — hesitei um pouco, ainda sem saber como me portar na frente deles quando se tratava de estar com Leo, mas Luke e Janet piscaram para mim em uníssono, mesmo que um não tivesse percebido o gesto do outro. Quanto a Edward? Bom, ele estava ocupado demais tentando não cochilar nos sofás macios da sala de jantar, observando a neve cair suavemente lá fora. Não acho que ele fosse se impor contra uma caminhada.

Leo apanhou minha mão e caminhamos em silêncio pelo corredor da casa. Não acreditava que ele quisesse caminhar lá fora com tanto frio e agora a neve, então ficava um pouco ansiosa em imaginar onde exatamente aquele inglês imaginava em andar e aproveitava aquele instante para encostar meu braço no dele, apenas para senti-lo mias perto.

Subimos mais um lance de escadas para o segundo andar do casarão e logo no início de um novo corredor observei um pequeno pedestal, que segurava um busto de Sir William Shakespeare.

— Olhe só, “O Homem”. — pontuei.

— Uma das vantagens de se viver com uma família que aprecia literatura, é poder manter pequenas idolatrias quanto a certos autores sem que haja nenhum tipo de estranhamento.

— Então ninguém jamais analisou sua notável obsessão por Shakespeare?

— Não. Talvez isso pudesse ocorrer antes.

— Antes? — estranhei.

— Você vai entender.

Leopold soltou minha mão e tateou os bolsos para encontrar uma chave solitária, de aspecto velho. Encaixou-a perfeitamente nas portas duplas que estavam em sua frente, no final do corredor, e abriu uma das folhas para mim, indicando que podia entrar.

Não sabia o que esperar, mas aceitei o pedido e dei alguns passos para dentro de um cômodo que parecia grande, mas estava escuro. O ruído do interruptor seguiu a luz, que num instante me atrapalhou um pouco os olhos. Então notei que estava diante de um grande quarto, cujas paredes quase não se viam, forradas de livros e mais livros, até onde podia enxergar. Alguns retratos ainda sobreviviam pendurados no papel de parede azul, mas se misturavam tanto com aquelas centenas de lombadas e letras, que não chamavam a atenção.

A cama era grande e imaculadamente arrumada, mesmo que lembrasse um pouco a minha, por ter algumas pilhas de livros por perto dos pés, ainda sem organizar nas estantes. Os criados estavam limpos, um guarda roupas milenar encobria alguns passos até perto das amplas janelas fechadas com cortinas e uma mesinha de trabalho parecia perdida do outro lado, repleta de fotos e documentos, uma xicara de café frio esquecido por perto.

— Parece que vocês têm mais do que uma biblioteca imensa em uma única casa...

— Esta é minha biblioteca. Meu quarto.

— Oh, eu devia ter desconfiado. — Olhei ao redor, prestando mais atenção a cada prateleira. Não era de se surpreender como os títulos estavam catalogados e passei a dar alguns passos, dedilhando as lombadas e lendo alguns nomes, autores e obras. Arrisquei tirar um deles e ler uma sinopse, voltando logo no lugar e escutando um som que denunciava algum sorriso inglês por perto.

— Pode ler, Kate. Não vou gritar com você por ser curiosa. Desde que mantenha a ordem.

— Eu me lembro bem do aviso sobre a ordem dos livros, Leo. Fique tranquilo, acho que estou bem treinada na arte da organização de prateleiras.

— Não duvido.

— Então... — recomecei a falar, antes que ficasse pensando demais na última vez que estive presente em uma biblioteca e voltasse a sentir borboletas e a rir sozinha. Ou na pior das hipóteses fosse ali que descobrisse as reais intenções do Britanicus Raptores em me degolar e fazer mais uma vítima. — Você sempre traz as convidadas para conhecer o seu quarto, Sr. Valois?

Olhei para ele de esgueio e Leo estava calmamente sentado na beirada da própria cama, guardando a coroa de papel na gaveta do criado mudo. Voltei a analisar quantas cópias haviam de uma mesma obra de Shakespeare e fiquei surpresa. Eram quase vinte de cada um de seus títulos, cópias e edições diferentes, em diversas línguas, com tantas cores e detalhes. Algo que apenas um bom colecionador poderia ter.

— Algumas.

— Devo me preocupar com suas intenções? — admirei as fotos na parede. Cenas tiradas possivelmente dos arredores da casa, flores e campos, um por do sol em tons de sépia.

— Não por enquanto. Mas pode se preocupar se eu trancar a porta.

— Vou manter meus ouvidos atentos, garanto.

— Sei que vai.

Parei de caminhar diante da mesa. Era feita de uma madeira rústica, não combinava em nada com o resto do quarto e era alta como uma daquelas que se usa para desenhar. Minha curiosidade falou mais alto para me inclinar e observar todas aquelas fotografias sobre o tampo, dezenas de polaroides e retratos antigos misturados com negativos e fotocópias. Conseguia reconhecer alguns rostos nelas, como Lucas e Janet, até mesmo o irritado Pierre e um gato manchado que já havia visto em uma das fotos perto do átrio no primeiro dia, apertado perto do rosto de Juliet no retrato.

— Não sabia que gostava de fotos.

— É um passatempo. — Leo se levantou, as mãos nas costas conforme se aproximava.

— São lindas.

Observei mais algumas e encontrei o rosto de Charlotte nelas, sorridente, abraçada com Luke e Edward em alguma festividade. Em outras estava com Leo em selfies um pouco embaçadas e amareladas, seguidas por uma dezena de outras fotos em preto e branco.

Uma delas me atraiu a atenção e reacendeu aquele apertão na altura do estômago que eu não queria sentir de novo. Leo estava nela, com um sorriso de lado, os olhos alegres como raramente eu havia visto. Junto dele uma jovem mulher de cabelos escuros e cacheados, um sorriso lindo e orgulhoso. No canto um recado feito com caneta nanquim ainda era bem visível:

“Falta pouco, Shakespeare. Sempre em frente. Xoxo”.

Ia devolver a foto na mesa antes que Leo notasse que a peguei, mas ele já estava ao meu lado e sua mão tocou um canto do papel, mostrando a moça para mim.

— Sua noiva... — completei antes que ele precisasse explicar.

— Ela amava Shakespeare.

Assenti que compreendia, mas por dentro alguma coisa doeu. Eu sabia que ela poderia amar Sir. Shakespeare, porém a foto deixava bem claro que usava o sobrenome do bardo para chamar Leo. E a breve dedução de que ela amava os dois Shakespeares, me deixou um pouco aflita.

— Ela... Era linda, Leo. O tipo de garota que qualquer um gostaria de ter por perto — foi o melhor que consegui articular. Não era uma mentira, já que realmente a achava muito bonita, com a pele dourada e o largo sorriso. Era inegável o quanto Charlotte se parecia com ela e conseguia imaginar como deveria ser graciosa, seu riso contagiante.

— Jovem. Mais jovem do que você, Kate. Um futuro brilhante pela frente.

Havia outra foto dela por perto, bem ao lado da xícara de café. A vaga ideia de que Leopold esteve ali, sentado e relembrando o que aquela mulher lhe representava, me estremeceu os joelhos. Tinha de aprender a lidar com aquilo, com a presença daquele fantasma, mesmo que não fosse um daqueles poltergeists que se vê nos filmes. Na verdade, era bem pior na minha concepção.

Aquela mulher retratada em preto e branco, o sorriso adorável sobre o ombro, flertando com seu fotógrafo, era um dos muros que separavam Leo do mundo. Será que eu conseguiria ganhar algum espaço na vida daquele inglês que não fosse apenas a de americana desastrada que conseguiu atrair sua atenção?

Não sei porquê saber daquilo me pareceu tão importante repentinamente, mas alguma coisa dentro de mim estralou com a ideia de que enquanto Leo se culpasse por ela, nunca seria capaz de amar alguém. E eu não queria pensar naquilo, entretanto não poderia negar que desejava ser amada. Completamente.

Foi esse o instante que me dei conta de que sim, acreditava em romances. E sim, queria viver um mais do que qualquer outra coisa, desde que pudesse escolher livremente a quem amar e fosse amada de volta.

E foi por isso que tive de respirar fundo para não começar a chorar de novo.

— Você... Não me disse porquê me trouxe até aqui, Leo. Duvido que tenha sido para ver suas fotos.

— Os livros. Sei que você gosta de livros. — ele sorriu, saindo de lado para que eu pudesse voltar a olhar o quarto.

— Boa tentativa. Mesmo que seja uma coleção um tanto peculiar e imensa, nem mesmo você tentaria me agradar com uma suposição tão simples, Leo. Sei que consegue fazer melhor do que isso.

— Quero conversar algo com você que achei melhor ser em um lugar mais reservado. E eu sei que minha família consegue pecar nesta particularidade, portanto meu quarto é um dos poucos redutos claramente respeitados por aqui.

Ele estava sério quando suspirou entre as últimas palavras da explicação e voltou a se sentar na cama, me observando pacientemente.

— Está bem.

— Você possivelmente vai embora de York nos próximos dias. Deve ir até Londres e depois não sei quando mais vamos voltar a nos ver e acho justo, para não dizer primordial, que você me conte algumas coisas, Kate.

Franzi a testa. Minha intuição acenou que talvez não fosse gostar muito daquilo, mesmo depois da tarde adorável de natal. Fui até a cama e me sentei ao lado dele, com uma pequena distância entre nós que permitia que olhasse nos olhos dele.

— Sobre minha conversa com Bruce, eu suponho. Não tocamos nesse assunto.

— Exatamente. E eu gostaria que você escutasse o que eu tenho a dizer sobre Bruce Campbell, antes de tomar qualquer decisão.

Aquela voz interior estava me cutucando, dizendo que eu deveria agradecer o almoço e voltar para o Knight’s Inn, mas eu era muito teimosa para isso. Respirei fundo.

— Eu não tenho nenhuma decisão para tomar, eu já me decidi. Só preciso pensar no meu próximo passo para me ver livre do tal compromisso e ficar em paz.

— Por isso mesmo eu quero que você escute, Katerina. Não quero que você vá embora sem entender o que aconteceu entre mim e Bruce. Sem mentiras. Sem nenhuma outra história. Quero que você escute isso vindo de mim, não de qualquer outra pessoa.

— Está bem...

Leo não disse nada mais, apenas se levantou e andou até a porta, dando um giro na chave. Meus pelos arrepiaram na nuca, inconscientemente. Senti que ali havia um ponto sem retorno, o que eu escutaria poderia servir de apoio ou destruir todos os meus planos. Tinha que torcer pela primeira opção.

— Devo me preocupar? — apontei a porta com o queixo.

— Não. Por enquanto não. Mas você pode gritar se quiser.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!