Orleans escrita por MarianaCamara


Capítulo 14
Capítulo 14 - All I want for Christmas is you




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Havia muitos pensamentos na minha cabeça de uma única vez e isso transformava o trabalho de organizá-los em um esforço contínuo e contrário a todo o zumbido do meu coração batendo alto nos meus ouvidos, insistindo para que eu não ficasse automaticamente preocupada com o conteúdo daquelas mensagens no meu celular ou pensando em como Luke estaria naquela cama de hospital. Não, eu estava me permitindo ser orgulhosamente egoísta uma vez na vida, pensando apenas em mim e naquele momento quieto dentro do carro em lento movimento a caminho do Knight’s Inn.

Estava autorizada a me apegar a cada pequeno segundo daquele trecho de ruas desertas no cair da noite de York na véspera de natal, observando o inglês mais nariz-empinado da existência dirigir com extrema atenção ao asfalto liso da cidade. E mesmo que ele não olhasse na minha direção (o que eu agradecia muito), sabia que uma pequena parcela dele também prestava atenção em mim apenas de soslaio entre algumas pequenas paradas em cruzamentos e esquinas.

Na verdade, não conseguia evitar o calor no alto das bochechas em relembrar que havia me declarado tão facilmente para ele e recebido uma estranha resposta que misturava certeza, dúvida e uma pitada de ironia — coisa que era de se esperar vinda de Leo. Afinal, não era absurdamente estranho que aquele homem tão detestável tivesse ganhado meu coração quando por tanto tempo acreditei que fosse apenas um imenso obstáculo na minha vida?

— Estava pensando... — contornei o silêncio, enquanto admirava as luzes contra a imensa catedral da cidade.

— Pensando? Devo me preocupar com isso? — ele arqueou a sobrancelha.

— Claro que sim. Sou uma mulher muito perigosa quando penso. Devia me ver depois de horas de meditação sobre qualquer assunto!

— É mesmo? Lembre-se de me avisar quando isso ocorrer. — ironizou.

— Oh, avisarei. Mas o senhor está atrapalhando o meu raciocínio lógico nesse momento. É um pensamento bem importante, sabia?

— Acredito que seja, já que está em silêncio tão absoluto desde que saímos do hospital e isso significa quase dez minutos de imersão em pensamentos. O que de fato, levando em consideração os poucos momentos em que está silenciosa, Katerina, transforma a questão em algo de importância relevante.

— Muito relevante.

Reconheci a rua das pensões quando o carro deslizou por ela, entre as diversas luzes de natal, enfeites, renas e desejos de boas festas espalhados nos jardins cobertos de neve e casas fechadas contra o frio. Leo estacionou perfeitamente diante do portão do Knight’s Inn e desligou o motor, respirando fundo antes de se virar na minha direção e esperar que eu completasse a minha ideia.

— Eu estava pensando, — continuei — na verdade era mais uma questão do que uma reflexão. Então estava me perguntando: desde quando isso acontece?

Ele franziu um pouco a testa.

— Isso? — óbvio, eu tinha sido tão precisa quanto um bêbado jogando dardos.

— Isso. O sentimento... — repeti, apontando para ele e para mim. Por favor, não me faça ser mais clara.

Leo mordeu brevemente os lábios e seus olhos focaram em um ponto qualquer no alto do carro, demonstrando que estava pensativo sobre a questão. Voltou a me olhar devagar, como se ainda estivesse pesando os acontecimentos em sua memória.

— Não sei.

— Minha nossa, uma incerteza vindo de você é um tanto aterrorizadora. — sorri, soltando meu cinto de segurança.

— Eu sei. Também é para mim. Mas creio que seja algo entre uma echarpe rosa e uma senhorita Dalton repreendendo a dicção de alguém. Ou talvez sua capacidade em não conseguir ficar em silêncio dentro de um lugar como o Globe.

— Ei, eu falei baixinho. Devo ganhar algum crédito por isso. E o senhor podia simplesmente ter me mandado calar a boca — cruzei os braços, sorrindo. Não era possível espantar meu sorriso nos últimos minutos, ainda mais sabendo agora que talvez Leo estivesse sentindo algo por mim há tanto tempo, o que aumentava minha culpa por ter mentido para ele e consequentemente, meu ego.

— A ideia foi muito tentadora, mas você estava ocupada o suficiente em tentar me fazer sorrir. Estava curioso em saber se conseguiria.

— E consegui até um riso, não foi? — comecei a rir, erguendo as sobrancelhas com uma dramática soberba. Era delicioso relembrar como Leo riu no Globe, tentando não ser vencido pelo meu claro dom em fazê-lo sorrir.

— Conseguiu. E desde então é a plena culpada por toda essa bagunça. Como poderei ser levado a sério agora com todos estes risos e sorrisos? Desconfio que tenha de processá-la por danificar minha imagem pessoal, Katerina.

— Será um prazer enfrenta-lo no tribunal, Sr. Valois. Não acredito que consiga vencer a quantidade de bagunças que existem na minha vida desde que nos encontramos a primeira vez.

— Concordo. Ainda é a pessoa mais atribulada que conheço, Kate.

Leo puxou o cinto de segurança e ao invés de soltá-lo, apenas afrouxou um espaço suficiente para estender a mão e segurar meu rosto, ficando próximo de mim. Meu coração ainda palpitava com qualquer simples toque dele, reagindo àquela eletricidade como se roubasse todo o ar de dentro do carro.

Olhei aqueles olhos azuis tão de perto, o suave sorriso em seus lábios e deixei minha mão sobre a dele, apenas sentindo aquela agitação no nosso silêncio. Leo não precisava de um beijo para me calar. Bastava ficar próximo e estava feito: era imediatamente abduzida por taquicardia e um recém-descoberto encantamento pelo modo com que nossa respiração se misturava.

— Será que você vai ter uma péssima impressão de mim agora? Fechada dentro de um carro com um homem, em uma rua deserta durante a noite... — murmurei.

— Não. Desta vez você não está com qualquer um — ele sorriu com uma pitada irritante e vitoriosa, a fatídica sobrancelha arqueada antes de um suave movimento roçar nossos lábios. Fechei os olhos, aguardando por mais um beijo, suspirando sem nem notar.

Porém alguma coisa reteve Leo ali e seus dedos acariciaram os meus, entrelaçando-os antes que eu abrisse os olhos e ele recuasse um pouco, beijando minha mão carinhosamente.

— Sinto que devo desculpas, Katerina. Por ter feito aquele julgamento sobre suas ações e modos na noite do jantar. Sei que fui grosseiro com você.

— E machista — adicionei.

— Deveras. Mas estive pensando nisso desde a noite passada e sei que a julguei mal em um claro acesso de infantilidade. Provavelmente um pouco de ciúmes, mas não quero que fique muito convencida por isso.

— Não vou — contive um sorriso ainda maior, para tentar ser convincente. Fracassei miseravelmente.

— Claro que não. — foi a vez dele sorrir. Ainda não compreendia como Leo podia sorrir tão pouco se seu sorriso era tão lindo, mas estava ficando satisfeita com o aumento da frequência quando estávamos juntos. — A questão, Kate Dalton, é que quero pedir que confie em mim. Sem mais mentiras, por qualquer motivo.

— Mas eu... — Leo me impediu de continuar falando, encostando o indicador nos meus lábios.

— Eu sei. Por isso estou me desculpando. Você criou uma meia verdade para me atingir e realmente conseguiu. Creio que paguei minha parte dessa culpa por ter que suportar que o Sr. Campbell era seu noivo. E definitivamente, Katerina... Você é mais do que suficiente para ter qualquer homem interessado o bastante em você.

Juro que meu coração falhou naquela frase. Na verdade, eu já nem sabia se havia um bumbo no meu peito ou um órgão bombeador de sangue e mantenedor de sinais vitais. Era uma dúvida cruel. Num resumo, eu só conseguia piscar e manter a boca entreaberta, meio sorrindo até reagir.

— Eu confio em você, Leo. — toquei o rosto dele e ainda parecia surreal poder fazer esse gesto. — Quero que você me conheça além dessa atendente barulhenta e problemática. Sem mentiras. E se serve de alguma coisa, ter você interessado em mim já é o bastante.

Era bem mais que o bastante, ainda mais para alguém cuja vida amorosa era tão desastrosa quanto o placar de aniversários fracassados. Mas Leo não precisava ficar sabendo disso tão cedo.

— Vou aceitar isso como um elogio.

— Por favor, aceite. Sou péssima com elogios.

Minha sinceridade o fez rir e uma pontada de responsabilidade me fez respirar fundo, relembrando de que tinha algo importante para fazer ainda naquela noite. Uma conversa difícil me esperava fora daquele carro e um frio de insegurança me roubou um pouco do sorriso.

— Você tem que ir — Leo analisou. Estava me surpreendendo como ele conseguia me ver tão claramente.

— Tenho, mas não quero. Meu estômago fica me avisando de que alguma coisa vai dar errado, mesmo que eu saiba que preciso fazer isso. Bruce foi tão monossilábico nas últimas mensagens... Não sei o que esperar.

— Eu ficaria com você, mas desconfio que você queira fazer isso sozinha.

— Sim, eu preciso. Tenho que dar um basta nessa situação.

Poderia adicionar: “senão não terei paz para apostar minhas fichas em você e ver no que vai dar, Sr. Valois”, mas acho que ficou bem subentendido. Além de que eu não queria que a conversa terminasse em uma briga feia entre aqueles dois, mesmo que eu tivesse bons motivos para adorar assistir de camarote o Britanicus Raptores em ação.

Apanhei minhas coisas na sacola que estava no banco de trás do carro, fazendo um pequeno contorcionismo até trazer tudo para o banco da frente. Então consultei o horário no celular que estava no meu bolso e suspirei, consultando Leo antes de abrir a porta e ser açoitada por uma rajada de vento gelado.

— Oh, céus... Não posso ficar no carro? — ri um pouco e Leo estendeu as mãos, ajeitando o cachecol ao redor do meu pescoço onde as voltas estavam largas.

— Katerina, você reclama de mais, pelas musas. Aprume-se e resolva suas questões por você. E um pouco por mim — ele repetiu o que eu havia dito antes e com aquele sorriso de quem espera uma repreensão pela imitação, me beijou suavemente, puxando as longas pontas do tricô vermelho. — A propósito, meu cachecol ficou ótimo em você.

— Seu... Cachecol? — Janet, sua mãe ardilosa! Como pôde?

— Exatamente. Fique com ele. Por sorte, talvez.

— Por sorte.

Sorri, ajeitando as sacolas nos braços e roubando um beijo na ponta do nariz de Leo antes de descer do carro. O frio parecia mais cortante naquela rua tão vazia e não demorei nada em abrir o portão do Knight’s Inn e correr porta adentro, enfiando o queixo nas voltas do cachecol com a pequena felicidade de sentir um suave perfume daquelas linhas tricotadas.

Eu me lembrava daquele dia, de quando Leopold Thomas Valois D’Orleans entrou pela primeira vez pelas portas da Barnes & Noble, antes de se tornar Próspero ou Carma. Ele usava um cachecol vermelho e tinha neve nos cabelos.

******

Bruce Campbell estava desconfortavelmente sentado na pequena poltrona de leitura da Sra. Christine, tentando sorrir enquanto a mulher servia as duas altas canecas de louça com chocolate quente e brandy, para espantar o frio. Ela tinha se disposto a trazer duas cobertas para nossas pernas, já que o aquecedor da sala da pensão não fazia grandes maravilhas por conta da falta de manutenção daquele inverno. Mas ninguém ligava para o calor da sala, já que o importante era termos um espaço para conversar.

Agradecemos os cuidados de Christine e ela nos deixou sozinhos naquela saleta repleta de bibelôs e pratos decorativos com os pontos turísticos da cidade, em que pouco se podia andar sem esbarrar na mesinha de centro onde uma orgulhosa foto expunha Raymond e sua esposa lado a lado com uma engraçada réplica de cera da rainha Elizabeth.

Ainda era possível escutar os passos dela subindo as escadas, mesmo com os pés cobertos naquelas pantufas feias e castanhas, e num acordo mudo, Bruce e eu esperamos até que houvesse apenas silêncio entre nós.

Ele apanhou um dos marshmellows que estavam boiando sobre o creme do chocolate quente e depois de lamber os dedos, deu atenção ao modo ansioso com que eu olhava para ele, esperando que começasse a falar qualquer coisa.

— Você devia ter me ligado mais cedo. Fiquei esperando por alguma notícia — repreendi, já que ele estava bem mais interessado na bebida, aparentemente.

— Estive ocupado, Kate. É natal, as pessoas têm coisas para fazer e você também estava ocupada, não é? Meu pai também não colaborou muito facilmente.

— Vou tentar acreditar nisso. Mas então, vocês conversaram?

Bruce ergueu o indicador, pedindo um momento e retirou sua caneca da mesinha de centro e bebeu um gole demorado, fechando os olhos com o prazer da bebida descendo pela garganta. Um pequeno bigode de creme ficou acima de sua boca até que ele notasse, limpando com um lenço que tirou do bolso da jaqueta.

— Sim, nós conversamos. Uma longa, difícil e tenebrosa conversa.

Quando Bruce tocou a campainha do Knight´s Inn, alguns minutos antes daquele instante, não estava mais tão ansiosa. Depois que entrei pela porta e deixei minhas coisas no quarto, ainda dando pequenos rodopios como uma adolescente apaixonada, percebi que não tinha o que temer.

Se o resultado que viesse fosse negativo, estava disposta a ir ao fim do mundo para acabar com aquela farsa de compromisso — mesmo que o fim do mundo fosse apenas a casa de campo dos Campbell.

— George não compreende porque você deseja deixar o compromisso de lado, Kate. Ele acredita que seja vantajoso para todos de qualquer forma.

— Ele acredita ou você acredita, Bruce?

Trocamos um olhar afiado por um segundo, antes que ele voltasse a beber mais do calor da caneca. Não parecia incomodado com o meu claro julgamento sobre ele.

— Não estamos discutindo sobre o que eu acredito ou não, Kate. Eu disse que falaria com George e cumpri com a minha parte. Quero que isso acabe e você possa voltar para Nova Iorque o quanto antes.

— Para me afastar dele? “Próspero”? — minha voz estava carregada de ressentimento, mas consegui disfarçar um pouco com um gole de chocolate quente (que por sinal estava maravilhoso).

— Podemos esquecer isso? Não me importo com sua clara incursão romântica com Leopold. Nada que inclua qualquer Valois D’Orleans é da minha alçada, Kate. O que você vai fazer ou não depois que todo este acordo estiver desfeito... Não me importa.

Não soube decifrar bem a expressão de Bruce depois daquilo. Ele parecia preso em uma estranha névoa de incerteza, mesmo que sua voz tenha soado tão dura e decidida. Alguma coisa nele me lembrava de um boneco puxado pelas cordas de um titereiro.

— O final desse compromisso é só o que importa, Bruce. Você nunca seria feliz comigo, nem eu com você.

— Como pode ter certeza disso?

— Eu tenho.

Com um último gole na caneca, Bruce tentou mais uma vez se acomodar na poltrona de leitura e vencido, ficou um pouco torto nela, a mão coçando o queixo enquanto seus olhos ficavam perdidos entre os bibelôs e o vazio.

— Seu pai ligou hoje à tarde. Ele e George conversaram por quase uma hora.

A noticia me acertou com dureza. Kennedy ainda tinha esperanças de que eu me casasse para salvá-lo da completa humilhação na família ou das possíveis dificuldades?

— Você falou com ele?

Bruce negou.

— Meu pai pareceu bem mais enérgico quanto ao casamento depois de conversarem, Kate. George estava muito irritado com a posição ridícula de sua avó por conta do compromisso não ter acontecido e tudo que isso custou ao Sr. Dalton.

— Então ele compreende agora o motivo de eu não poder levar essa tolice adiante, Bruce. Minha avó tem que ser levada a razão e minha família tem que entender que não existe mais espaço para esse tipo de negociação. Unir empresas é uma coisa, mas pessoas... Isso não se faz.

Ele assentiu devagar antes de me olhar. Pensativo.

— É tão simples, Bruce — mudei de lugar e tomei espaço na mesa de centro, para me sentar mais perto dele. — Com isso terminado você pode demonstrar para seu pai que tem mais valor do que um casamento pode te dar. Pode se acertar com Beatrice, se quiser. Seríamos livres.

— Simples — ele desenhou um fraco sorriso — mas já se perguntou se eu desejo me ver livre, Kate?

— Não deseja? — franzi as sobrancelhas. — Por favor, Bruce não venha me dizer...

— Não vou dizer nada. — ele pegou minhas mãos e trocamos um olhar longo. As palavras estavam ali, prontas para Bruce dizer, mas ele escolheu não proferir nenhum som.

— Eu quero falar com seu pai. Quero que George Campbell escute o que eu tenho a dizer.

— Ele não vai dar ouvidos a nenhuma dessas ideias de liberdade ou tradições ridículas, Kate. Ainda mais agora.

Estreitei os olhos e recuei um pouco, tirando minhas mãos das de Bruce e cruzando os braços. Os pássaros no meu estômago começaram a bicar e isso era péssimo. Pior do que comer um cachorro quente com chucrute azedo depois da Quinta Avenida.

— O que quer dizer?

— São negócios, Kate — ele suspirou. Parecia que eu era muito burra ou uma criança para não entender o quanto aquilo era óbvio.

— Se são apenas negócios, seu pai pode continuar negociando sua maldita fusão com o Sr. Dalton, independente da minha participação nessa loucura.

— Sem o casamento, seu pai não é mais o CEO das empresas, Kate. Sem o casamento, não existe fusão nenhuma. E George Campbell não quer entregar a chave de seus negócios na mão de um dos filhos de Edward D’Orleans e eu concordo com ele.

— Você... O que foi que você disse para ele?

— Que você era avessa à ideia do casamento, que estávamos em acordo de que era uma tolice continuar com isso e que você precisava ficar livre, exatamente como acabou de me dizer. Livre para poder seguir sua vida e se acertar com Leopold. Se quisesse.

—Você disse que não se importava com nada que tenha a ver com ele — conseguia sentir minha garganta arder. Meu coração estava agitado de uma forma muito ruim.

— Eu não menti. Realmente não me importo. Mas meu pai sim. E a partir do momento que a quebra desse compromisso pode significar que você vá direto para os braços do seu “Próspero” e com isso a fusão das empresas migre diretamente para os já cheios bolsos de Edward D’Orleans, acredito que compreenda que meu pai não poderia permitir isso.

— Você contou a ele de propósito... — estava incrédula ainda. Não conseguia digerir que Bruce pudesse ter sido tão canalha. — Por quê? Eu não sou uma moeda de troca!

— Não, Kate, você não é uma moeda. Você é melhor do que isso. É uma passagem de entrada para uma fusão hipervantajosa com uma das indústrias de algodão mais frutíferas do sul dos Estados Unidos. E isso é uma realidade que você já devia ter aceitado. É tudo muito simples, se quiser me escutar.

Não respondi nada. Estava misturada e perdida entre uma onda de raiva e nojo daquele homem que não conseguia decifrar mais. O pouco dentro de mim que ainda insistia em ser feita de idiota por alguma faísca de confiança em Bruce, caiu por terra numa queda feia.

— Nós voltamos para a América depois do natal, fazemos uma pequena festa onde você quiser, apenas para certificar o noivado e permitir que as pessoas saibam sobre ele. Até o réveillon nossa união será notícia nos círculos mais importantes e consequentemente, a união de nossas famílias tradicionais será ligada a fusão das indústrias. No início do ano você poderá planejar o casamento dos sonhos e até o fim de janeiro, nos casamos em uma pequena igreja em Nova Orleans, para que sua avó possa participar e abençoar o compromisso. Seu pai volta ao poder das empresas, sua mãe ganha a fatia que importa da riqueza dos Dalton, saímos do país para uma viagem para alguma ilha paradisíaca e na volta, basta assinar alguns papéis para se ver livre de mim.

— Um divórcio... — balbuciei.

— Viu como é simples, Kate?

— Você não presta. Eu acreditei em você. Eu confiei em você! Como pude ter sido tão cega? Estava na minha frente o tempo todo e eu quis crer que você era um bom homem, Bruce. Que haveria mais coisas importantes do que dinheiro na sua vida... — me levantei irritada demais para conseguir continuar sentada na frente dele.

Consegui escutar seu suspiro, longo e indiferente ao meu momento de revolta. Ele apenas balançou a cabeça devagar. Meu inimigo, como tinha o julgado no princípio.

— Existem coisas mais importantes, Kate. Mas eu estou farto de perdê-las continuamente para as pessoas ao meu redor, dia após dia. Estou cansado desse jogo de desafios. Não é uma questão de brigar pelo final feliz, por amor ou liberdade. Trata-se de ser adulto a aceitar as responsabilidades e encará-las de frente, e não fugir delas como uma criancinha assustada como você fez.

— Isso não tem nada a ver com ser adulto! Qual a razão? Provar para seu pai que é um homem capaz? Afastar Beatrice Fontaine da sua vida? Ganhar de Leopold D’Orleans? Me ilumine, Bruce! Eu também estou cansada de ficar no meio de um jogo que não entendo como se joga.

Bruce riu, algo que pareceu um engasgo no topo da língua, contido por seus lábios crispados. Uma aura soturna havia se instalado nele, como se toda sua beleza e gentileza agora fosse apenas uma sombra muito distante, usada apenas para atingir objetivos.

— O mundo não se resume em você, Kate. Na verdade, você ainda não entendeu que simplesmente foi jogada no meio do tabuleiro como um peão. Minha vida não se resume a me casar com você ou tentar resolver seus problemas ínfimos de família. Assim como você precisa entender que existe bem mais por trás das pessoas do que você consegue enxergar. Talvez você tenha sido cega quanto a mim... Mas tem certeza de que sou o único que você enxergou com sua lente colorida?

— Isso não explica nada.

— Não. Mas para ser bem claro, Katerina, eu não vou permitir que nenhum Valois D’Orleans me humilhe novamente ou que minha família perca qualquer coisa por culpa deles.

— Lucas estava certo. Você sempre cobiçou o que Leo possuía, não é? Eu devia ter dado ouvidos a ele desde o princípio e me afastado de você quando tive a chance.

Ele riu, como se houvesse algum motivo para tanto e se curvou, apoiando os cotovelos sobre seus joelhos apenas para brincar com os dedos na borda da caneca sobre a mesa. Ergueu o rosto para acompanhar como eu andava de um lado para o outro da pequena sala.

— Eu nunca cobicei nada de Leopold... Pelo visto, você não conhece o alvo da sua afeição tão bem quanto deveria, Kate. Ele já te contou sobre o acidente? Sobre como ele foi responsável por duas mortes e quase incluir o próprio Lucas na contagem das vítimas? Eu não preciso desejar nada de um homem que se escondeu do mundo para carregar a culpa do que causou.

— Não acredito em você. Em nenhuma palavra sequer.

— Bastou uma noite, algumas cervejas e muita falta de responsabilidade para o metódico e inteligente Próspero ter um carro desgovernado e algumas vidas inocentes nas mãos.  Ele não se perdoa, não fala sobre isso, não é? Talvez seja por que ele sabe que o preço que pagou foi mais do que justo pelo que causou as outras pessoas.

Naquele momento, fiquei cega. Não sei exatamente se era o sangue borbulhando nas minhas veias e me impedindo de pensar direito ou se aquela dor imensa que as palavras causavam. Tudo que me lembro é de estar de um lado da mesa de centro e num piscar estar diante de Bruce, a mão acertando seu rosto em um estralo.

Ele se virou com o tapa e massageou o lugar com uma das mãos enquanto eu ofegava diante dele, lívida, furiosa.

— Saia daqui. Não quero ouvir nem mais uma palavra.

Bruce Campbell se levantou, ajeitando a jaqueta no corpo, limpando e esticando o tecido do jeans em suas pernas. Afastou os cabelos castanhos para trás e fez um meneio, um curto gesto antes de caminhar até o corredor.

— Como quiser. Agradeça a senhora pelo chocolate mais uma vez. Mantemos contato, Katerina.

Assim que a porta da frente do Knight’s Inn se fechou, cai sentada no sofá da sala em prantos. Não demorou a Christine surgir pelo arco do cômodo preocupada quando as vozes alteradas cessaram, enrolada em seu roupão de chenille rosa. Raymond faria chá para os meus nervos, como comentaram baixinho assim que ele espiou dentro da saleta, arrastando seus chinelos.

Devia bastar.

******

“Não estou conseguindo dormir...”.

Digitei, depois das três e meia da manhã, quando todas as lágrimas já tinham se secado e só restava um amargor de folhas secas de chá no topo da minha boca. Só conseguia pensar no sua perfume da bergamota do chá earl grey de Leo enquanto esperava que o cansaço e a confusão me fizessem dormir. Por isso perdi a vergonha de enviar uma mensagem naquele horário. Não havia ninguém mais perto para me escutar.

Conte carneiros, Katerina...”.

Ele respondeu cinco minutos depois, obviamente tirado do sono pelo aviso da mensagem recebida. Quase conseguia ouvir sua voz mau humorada e inglesa, arrastada por sair de algum sonho.

“Carneiros não me dão sono. No máximo me fazem pensar em casacos de inverno.”

“Já é alguma coisa.”

 “Dormir seria alguma coisa”

O intervalo entre as mensagens me deixava ansiosa e ao mesmo tempo, preocupada. Na verdade, uma inquietação estava me perseguindo e não me deixou mesmo depois de horas da saída de Bruce pela porta da pensão.

“Como foi a conversa?”, Leo pareceu adivinhar.

“Longa.”

“E o que mais?”

“Problemática. Mas não tinha como ser de outro jeito, não é?”

     As respostas pararam de chegar dali por diante e fiquei vigiando a tela do celular na esperança de ver a mudança no status do aplicativo que mostrasse que Leo estava digitando. Mas isso não aconteceu. Apenas mais de quinze minutos depois o aparelho vibrou, indicando uma chamada.

Não precisava adivinhar quem era.

Você está bem, Katerina? — ele questionou antes de dizer qualquer Alô. Escutar a voz sonolenta de Leo depois daquela noite conturbada voltou a encher meus olhos de lágrimas insistentes.

— Estou. Agora estou. Vou ficar ótima.

Sua voz diz o contrário.

— Pode ignorar a minha voz. Estou mais cansada que de costume hoje e acho que tive uma crise nervosa bem incomum. Este fim de ano está sendo bem movimentado pra mim — suspirei.

Tente descansar um pouco. Afastar os pensamentos da sua cabeça para conseguir dormir. “O meigo sono, o sono que desata a emaranhada teia dos cuidados, que é sepulcro da vida cotidiana, banho das lides dolorosas, bálsamo dos corações feridos, a outra forma da grande natureza, o mais possante pábulo do banquete da existência...”.

Leo recitava “O Homem” e me causava um breve sorriso, mesmo que o cansaço me impedisse de lembrar donde ele havia tirado aquela citação.

— Não me recordo desse.

— Macbeth. — ele respondeu sem nenhum apontamento, coisa que normalmente faria para demonstrar o quanto eu estava defasada nos meus conhecimentos literários. Mas aquele não era o momento. — Kate, você quer que eu vá até aí?

— Não, não. De forma alguma. Já passa do horário aceitável em qualquer lugar do globo para se atazanar alguém, ainda mais tirar um inglês da cama quente em uma madrugada de inverno. Fique tranquilo, eu vou sobreviver bem até o amanhecer. Foi bom escutar seu sotaque irritante para me sentir melhor.

Notei que Leo riu do outro lado da linha.

Não se preocupe. Parece que minha madrugada foi dedicada a responder mensagens de insones. Lucas também está acordado no hospital e já enviou uma dúzia de mensagens querendo saber a que horas vamos busca-lo. Ele nunca foi paciente.

— Nem um pouco — ri em me lembrar da hiperatividade do ruivinho. — Então vou tentar contar carneiros mais uma vez, Sr. Valois e deixa-lo livre para atender a demanda de seu amado irmão.

— Faça isso, senhorita Dalton. Faça isso.

— Boa noite, Leo. Obrigada por ligar.

— É um prazer, Kate.

Poderia ficar me despedindo de Leo por mais uma hora ou duas pelo menos, para esperar que o sol nascesse em algum lugar e o dia de natal começasse finalmente, com alguma promessa de espantar aquela sensação ruim de mim. Mas não era justo mantê-lo acordado, nem mesmo preocupa-lo com as insanidades da minha conversa com Bruce naquele horário. Nós precisávamos conversar e eu não poderia protelar isso.

Rolei na cama mais vezes do que o considerado saudável depois que Leo desligou. Algumas coisas reviravam na minha lembrança, como a acusação de Bruce quanto ao acidente. E quanto mais eu pensava e pensava, mais distante o sono ficava de mim.

Foi quando o celular bipou duas vezes e na tela o sorriso imenso de Luke indicou algumas mensagens que tinha acabado de enviar. Ele estava realmente entediado. Óbvio que respondi e trocamos mais algumas mensagens, até mesmo uma foto nada divertida de como a cânula estava presa na mão dele, pingando tediosamente o soro fisiológico que vazava de um pedestal ao lado da cama, antes dele enviar:

Vem me ver, Kate. Já que você está sem sono mesmo. Risos”.

“Sua mãe não está com você? Achei que ela fosse passar a noite no hospital”.

“Não, eu acabei convencendo ela de que era muito melhor dormir na própria cama do que ficar nessa poltrona desconfortável de acompanhantes. Eu não ia fugir no meio da noite mesmo”.

“É um alívio saber disso, Luke. Carinha sorrindo”.

“Você vem? É só pedir um táxi do sistema 24 horas, eu te passo o número. Em cinco minutos você está aqui”.

Pesei os prós e contras daquele convite. Não tinha nada a perder e dificilmente pegaria no sono depois daquele horário. Acabei aceitando o convite maluco de Lucas porque a) eu queria muito vê-lo b) eu precisava de um pouco de ânimo c) ninguém consegue negar nada para Lucas. Era um combo perfeito.

Em alguns minutos estava plantada na calçada do Knight’s Inn usando a minha chave especial da porta da frente, acenando para o taxista que parecia um saquinho de chá, tantas blusas que estava usando.

O velho motorista nem se deu ao trabalho de me perguntar nada além do endereço para onde me levaria. Fiquei com um pouco de medo pela rapidez dele dirigir naquelas ruas lisas de neve e ainda mais porque estava quase certa de que vi bocejos duas vezes em seguida. Não estava preparada para morrer em York, obrigada.

Paguei a corrida com um valor um pouco exorbitante e entrei pelas portas automáticas do hospital diretamente em uma ala diferente de onde estava no começo da noite. Lucas tinha avisado que o transferiram do quarto de internação para a ala de observação e eu teria que subir no primeiro andar para encontra-lo.

Depois de quase me perder duas vezes, encontrei um elevador para o primeiro andar. Logo na saída, um pequeno conjunto de portas de vidro dava espaço para uma discreta floricultura, repleta de cartões desejando “melhore logo” ou “parabéns”, ursos de pelúcia e buquês coloridos. Resolvi que era uma esplêndida ideia animar Luke com um pouco de cor naquele quarto pálido. E acredito que era uma figura bem colorida quando deixei as portas do lugar para trás carregando um ramalhete de girassóis e uma pelúcia do Tigrão embaixo do braço, combinando lindamente com o meu (sim, agora era meu) cachecol vermelho e o casaco de lã azul.

Adria não ficaria nada orgulhosa se me visse assim.

Não imaginava que corredores de hospitais poderiam ser tão frios às cinco da manhã. Devia ser por conta das paredes brancas e das pessoas usando aqueles tons gélidos de azul e verde, perambulando silenciosamente aqui e ali. Ou apenas a sensação de que alguém havia esquecido uma porta aberta diretamente para dentro de uma câmara fria no centro da Antártida. Algo assim.

Usei o cachecol para cobrir meu nariz e fiquei aspirando aquele perfume bom que vinha entre as linhas vermelhas. Nem me importava com o olhar estranho que dois residentes deram na minha direção (já que devia estar parecendo um tipo estranho de terrorista congelado), me bastava que conseguisse voltar a sentir um pouco a sensibilidade nas extremidades do meu rosto.

Minhas botas fizeram um chiado alto no piso de linóleo quando fiz a curva de um corredor sinalizado e estendi a mão para conseguir a atenção de uma enfermeira entediada por trás do balcão de atendimento do primeiro andar.

— Por favor... Os quartos de observação?

Ela ajeitou os óculos cor-de-rosa na ponta do nariz e apontou a primeira porta azul desbotada a minha direita.

— Dali até o final do corredor, docinho.

— Obrigada — abracei as flores e a pelúcia, procurando pelo quarto 138. Estava apenas quatro portas adiante, com o nome de Lucas Valois escrito em uma prancheta presa abaixo do número.

Bati de leve três vezes antes de girar a maçaneta e abrir meu melhor sorriso, enfiando o rosto para dentro do cômodo que cheirava nitidamente a iodo e álcool. Havia duas camas separadas por uma cortina branca, mas apenas Luke estava deitado por ali, bem ao lado da janela.

Achei que ele pudesse estar dormindo, mesmo depois daquelas mensagens, ou até medicado e naquele ponto entre o mundo real e o imaginário. Porém não esperava escutar o riso do ruivinho tão nitidamente quando coloquei meu primeiro pé para dentro do quarto, nem mesmo encontrá-lo acompanhado naquele horário.

Uma jovem estava sentada na poltrona entre as duas camas, ainda soltando um riso baixo quando me viu. Seus olhos de um belo tom castanho esverdeado me encararam com imensa dúvida. Ela era um colorido vivo entre aquelas paredes brancas, vestida com um suéter amarelo que com certeza combinaria perfeitamente com minhas galochas de borracha e agora fazíamos um belo par de cores dentro do quarto.

— Hey, Kate — Lucas me cumprimentou e consegui fechar a porta atrás de mim, tentando ao máximo não ficar sem jeito diante daquela estranha.

Ela era linda. Uma espécie de beleza que só se vê em lugares extraordinários, aumentada por sua pele bronzeada e o cabelo castanho repleto de luzes douradas, o sorriso que misturava educação e gentileza assim que se levantou para me receber.

— Hey, Luke. Estou atrapalhando?

— Até parece, Kate. Olha só, girassóis! — ele estendeu os braços para receber o vaso de flores. E embora sua pele sardenta estivesse absurdamente mais pálida e a queda tivesse o presenteado com um corte e um hematoma feio ao redor do olho direito, sua animação parecia intacta agora.

— Achei que fosse gostar. Na verdade, eles não tinham muitas opções a esta hora da madrugada... — dei um muxoxo, ajeitando o cachecol e tirando as luvas. Deixei o Tigrão perto dos pés dele, ganhando de recompensa uma risada gostosa assim que ele notou o bicho de pelúcia.

— Ele sempre foi meu favorito — Luke comentou mais com a moça do que comigo, então alguma coisa o fez lembrar de que éramos desconhecidas e causou uma risada peralta nos lábios dele. — Oh, me esqueci de apresentar vocês!

Mas a moça não pareceu se incomodar e sorriu, estendendo a mão para apertar a minha. Ela tinha a pele morna, de um jeito que incomodamente me lembrou de um velho dentista que me presenteou com um aparelho fixo quando eu tinha seis anos. Não era uma lembrança muito agradável.

— Katerina. Com certeza Lucas já deve ter dito alguma coisa sobre mim. — adiantei, já que parecia de praxe que todas as pessoas de York soubessem uma coisa ou duas sobre a senhorita Dalton.

— Não, ele não mencionou nada ainda... Acho que não dei muito tempo para ele — ela riu e sua voz levemente rouca só contribuía para que eu a achasse uma daquelas mulheres que podem conquistar o mundo. Havia um quê de intimidador nisso.

— Com mais cinco minutos eu teria feito todos os elogios possíveis, Kate. — Luke colocou as flores no criado mudo e se deitou, abraçando o Tigrão com ele.

— Consigo imaginar, Luke — sorri para ele e a jovem me deu espaço, mostrando que eu devia me sentar ao lado da cama, onde ela estava antes.

Rimos, mesmo que pairasse no ar aquele clima de educação amistosa de quando não se conhece bem uma pessoa que tem amigos em comum.

— Obrigada, mas... — agradeci a gentileza. — Desculpe, você não me disse seu nome...

— Charlotte Lewis, ao seu dispor.

— Oh, você é a Charlotte — sorri, sem cogitar nada inicialmente. — Escutei seu nome nestes últimos dias.

— Espero que por um bom motivo. Luke contou meus defeitos para você, Katerina? — ela ficou aos pés da cama dele, brincando de encontrar os dedos de Luke por baixo das cobertas, causando uma crise de risadas nele que o deixava ainda mais parecido com uma criança.

— Juro que sou inocente nesse caso!

— Cuidado, Lucas. Você sabe que posso te fazer confessar com um ataque de cócegas! — ela ameaçava com a mão imitando garras, apenas para vê-lo rir um pouco mais. Não podia culpa-la. Luke era um verdadeiro raio de sol.

— Ele é inocente dessa vez, pode cessar o ataque — relaxei um pouco com o clima mais leve, erguendo as mãos como se fosse vítima do ataque também. — Foi o médico que citou seu nome para Leopold mais cedo, quando Lucas deu entrada no hospital.

— Dr.Turner? — ela questionou Luke e a cabeleira ruiva apenas chacoalhou para afirmar. — Eu disse para ele que estou caçando seu irmão já faz dias. Estou quase colocando cartazes de procura-se pela rua e oferecendo uma recompensa.

— Leo ficou especialista em esconde-esconde nos últimos anos — Luke suspirou depois de parar de rir aos goles com o fim da ameaça de Charlotte. — Juliet... Também deu seu recado.

Senti uma pontada com a forma forte de Luke lidar com a vontade de não citar mais o nome da prima. Ele ia passar por isso. Ia sobreviver e com certeza ainda doeria, mas o ruivinho era muito jovem para deixar uma mera ilusão moldar seu caminho. Sabia que ele merecia uma pessoa que fosse tão especial quanto ele, uma garota que conseguisse ver a pequena luz mágica que ele carregava nos olhos.

— Não vou ficar insistindo por toda a cidade para que ele venha falar comigo. Digamos que eu continuo fazendo a minha parte, você sabe. Mas eu gostaria que ele também fizesse a dele.

Lucas sorriu. Eles concordavam naquilo e eu fiquei em silêncio, me dedicando a contar o número de dobras das cortinas, apenas para não atrapalhar.

— Ele está indo muito bem, Lottie.

— Eu imagino o quanto. Se o resto do mundo tivesse um terço da teimosia absurda do seu irmão, estaríamos condenados. — eles riram juntos. — Bom, vou te deixar em boa companhia agora.

— Não precisa sair por minha causa. Por favor, fique. — comentei um pouco desconcertada.

— Imagine. Eu só passei por aqui para dar um puxão de orelha nesse ruivo irresponsável e fazer ele rir um pouco. Estou exausta e já passa da minha hora de ir pra cama.

Levantei educadamente antes dela se curvar perto da janela e puxar uma bolsa e um jaleco branco que nem notei que estavam ali. Charlotte beijou o topo da cabeça de Luke e apertou sua bochecha, descansando a bolsa no ombro antes de estender a mão para mim mais uma vez.

— Foi um prazer conhecer você, Katerina. É bom ver que esses dois estão fazendo novos amigos.

— Isso se eles me considerarem uma boa amiga. — provoquei Luke, que resmungou qualquer coisa prestes a me jogar um travesseiro.

— Tenho certeza que sim.

Charlotte não era muito alta, mas tinha certa leveza ao andar até a porta prestes a sair. Parou apenas um momento, hesitando antes de voltar um passo e dizer algo.

— Lucas... Você sabe se Leo... Tem visitado Bianca ultimamente?

Olhei para ela e depois para Luke, tentando interpretar os sinais. Era muito lógico que aquela jovem tinha um relacionamento de longa data com os Valois D’Orleans e certa intimidade, mas confesso que a quantidade de nomes femininos que surgiam ao redor de Leo estavam começando a me deixar um tanto... Intrigada. Isso se essa for a palavra correta.

— Não, Lottie. Eu acho que ele ainda não teve tempo pra isso desde que chegamos. As coisas têm sido um pouco... Tumultuadas.

Lucas apertou os lábios. Demonstrava que aquele assunto era um daqueles delicados, pouco falados por algum motivo especial. Talvez tudo que rodeasse Leo tivesse aquele pequeno mistério suspenso, coisas que não eram ditas.

— Sei... Bom, deseje feliz natal para ele por mim. E para seus pais, okay?

Com a partida de Charlotte e a porta fechada mais uma vez, voltei a me sentar na poltrona ao lado da cama de Luke. Não era tão desconfortável quanto ele havia dito, mas ninguém conseguiria pegar no sono sentado nela.

— Então — achei melhor recomeçar. — Como você está depois de quase me matar de susto?

— Com o rosto dolorido, algumas peças faltando, mas pronto para outra. Modo de dizer, claro.

— É bom que seja, Lucas Valois D’Orleans. Não quero morrer tão jovem de parada cardíaca!

Ficamos rindo um pouco, falando bobagens e fazendo piadas sobre coisas sérias como aparelhos monitores de batimentos cardíacos e injeções. Não queria trazer a tona nenhum assunto que pudesse estressar Luke, fosse sobre Juliet ou perguntando sobre Charlotte e toda a curiosidade que agora ficava rolando dentro de mim. Aquele não era o momento certo e era preferível passarmos juntos entre risos e sorrisos o nascer de um novo dia, longe das nuvens pesadas que pareciam ter descido sobre mim e o ruivo na véspera de natal.

O dia cinzento clareou além das janelas e Luke bocejou pela primeira vez, vencido pela medicação e o cansaço. Estava quase cochilando, brigando entre resmungos porque queria ficar acordado comigo, quando Janet abriu suavemente a porta.

Já passavam das sete da manhã e a senhora Valois D’Orleans estava radiante como um dia de primavera, vestida com um tailleur azul celeste que iluminava seus olhos. Eu admirava muito quem sabia ser tão elegante, exatamente como minha irmã sabia quando não estava enfiada com sobretudos de zebra ou calças tigradas.

— Bom dia! Bom dia! — ela cantarolou colocando uma pequena mala na cama vazia ao lado. Beijou minhas bochechas, questionou se eu havia tomado um tombo da cama da pensão e seguiu para o filho, para enchê-lo com um abraço apertado e uma centena de perguntas para certificar-se de que ele estava em completo bom estado para ir direto para casa.

— Mas o médico ainda... — Luke tentou dialogar.

— Bobagem. Eu falei com o doutor logo cedo e ele me garantiu que deixaria sua alta com uma das enfermeiras. É natal! Ninguém vai ficar em nenhum hospital com um almoço de natal esperando em casa.

Não era uma afirmação qualquer, era uma ordem. Janet me parecia bem capaz de colocar Luke dentro de uma mala e raptá-lo do hospital se alguém se negasse a deixa-lo sair naquela manhã. Tínhamos sorte da enfermeira aparecer pouco depois, bem a tempo de permitir que o ruivinho tomasse o café da manhã antes de retirarem o soro e os aparelhos barulhentos.

Fui obrigada a esperar que ele se trocasse (já que Janet achava um ultraje que eu fosse para a pensão caminhando no frio que estava lá fora) e acompanhei uma engraçada Sra. D’Orleans carregando o filho que era bem mais alto do que ela, como se puxasse um garotinho. Ainda havia espaço para ela aprumar a maleta no outro braço e fazer dezenas de observações sobre todas as enfermeiras que já conhecia naquele andar, além de ressalvas importantes sobre como Lucas deveria manter os girassóis na água para que não morressem de frio.

Collins correu para nos encontrar na saída do prédio e apanhar flores, pelúcia e mala, na seguinte ordem, antes de nos acomodarmos dentro do carro. Trocamos apenas uma piscadela de cumprimento — meu máximo da simpatia naquele momento, sentindo o começo de uma ressaca sonífera imensa — e me acomodei contente no banco de trás, exatamente ao lado de Luke.

York estava tão vazia quanto na noite anterior. Todas as pessoas estavam ocupadas com seus almoços de natal, presentes e parentes, visitantes e estranhos. Todo o movimento se resumia em um ou outro pedestre repleto de sacolas, indo possivelmente para a casa de alguém.

Mas meu ânimo natalino estava abaixo de zero.

— Charlotte foi me visitar — Luke comentou no meio do caminho, também um pouco molenga com a cabeça apoiada no meu ombro. Janet analisou o filho pelo retrovisor.

— É mesmo? E como ela está? Faz muito tempo que não coloco meus bons olhos na pequena Lottie.

— Desejou feliz natal. E parece bem chateada com Leooo... — bocejou.

— Eu não posso pegar seu irmão pelas orelhas. Não tenho nem mesmo altura suficiente para isso, mesmo que quisesse. E depois, quem deve satisfações para a moça não somos nós — ela suspirou, desajeitada com o assunto. Arrumou o espelho para me ver e sorriu, conseguia ver os vincos da idade no canto de seus olhos. —Leo é um ótimo filho, Katerina, mas existem coisas que eu não posso obriga-lo a fazer. Charlotte é uma dessas coisas, entende?

Ah, não.

— Claro — e ali estava o meu melhor sorriso torto.

— Lottie é fisioterapeuta — Luke explicou divertindo-se sonolentamente em enrolar o dedo em uma mecha dos meus cabelos. — Ela ajudou o Leo com os...

Luke bocejava de novo, tamborilando os dedos no ar para preencher a falta das últimas palavras.

— Claro que você é esperta o suficiente para saber que existem outras coisas além de um tratamento de fisioterapia entre Leopold e Charlotte. — Janet respirou fundo, falando rápido, quem sabe na tentativa de que meu cérebro sonolento não averiguasse os fatos. Collins tossiu na direção.

— Oh... — ergui as sobrancelhas e disfarcei muito bem o resto da expressão que queria transmitir.

Collins parou perto do meio fio diante da pensão e o carro causou uma neblina ao redor da calçada. Beijei o rosto de Luke, deixando-o se esticar todo no banco do passageiro e Janet me deu uma dúzia de recomendações para me agasalhar bem e ficar pronta perto das onze horas, quando Collins viria me buscar para o almoço de natal.

Não me lembrava de ter aceitado participar, mas não me via passando o dia todo trancada dentro do Knight’s Inn lamentando minha vida azarada e agora meu prêmio Guinness de mulher mais incapaz de encontrar pessoas descomplicadas neste planeta. Eu devia reclamar por ainda não terem me entregue o prêmio.

Cochilei algumas horas, jogada no colchão sem me importar se metade das minhas pernas estava pendurada para fora da cama ou se estava amassando uma das minhas poucas roupas boas de viagem. Minha cabeça zunia e não sabia bem o que pensar daquele tornado que tinha me sugado diretamente para o epicentro dos acontecimentos entre Campbells, Daltons, D’Orleans, Lewis e sabe-se lá mais quantas famílias que ainda não conhecia.

Mesmo assim, acordei as dez para começar a me arrumar e tentar me animar com o pensamento de que pelo menos teria algumas horas entre uma família aparentemente normal, comendo peru e bebendo, esquecendo que o mundo lá fora continuaria quando o natal terminasse.

Decidi que usaria o vestido que comprei depois da minha visita a Trafalgar Square. Não era nada luxuoso, apenas um vestido creme com mangas médias e acima do joelho, um pequeno cinto dourado ao redor da cintura. Arrumei os cabelos do melhor modo, deixando grande parte solta já que sempre fui um imenso zero a esquerda no quesito vaidades.

Quando me olhei no espelho do corredor para a porta do Knight’s Inn, me dei por muito satisfeita. A pouca maquiagem tinha conseguido disfarçar um pouco as minhas olheiras, já que o batom vermelho fazia o serviço de chamar a atenção no meio da minha palidez. E estava de bom tamanho. Já sabia que Juliet estaria brilhando mais do que toda a árvore de natal, então não queria chamar mais atenção do que ela.

Pontualmente as onze, Collins estacionou do outro lado da rua, dando dois leves toques de buzina para me avisar. Vesti o trench coat sobre o vestido, dei duas voltas no cachecol da sorte e desejei feliz natal para Christine e Raymond antes de sair. Talvez pedisse para Janet me deixar trazer alguns bolinhos com conhaque para eles no fim do dia. Aposto que seria legal.

Collins sorriu já fora do carro, abrindo a porta para mim. Assim que nos cumprimentamos novamente e ele perguntou se eu gostaria que ele aumentasse o aquecedor, saímos da rua das pensões em direção à casa dos D’Orleans, fora da cidade.

O rádio do carro tocava um melodioso jazz em volume baixo, que Collins murmurava com um sorriso satisfeito. Ele parecia feliz naquela manhã de natal, suas bochechas particularmente coradas. Quando saímos das vias asfaltadas e passamos para os pedriscos pesados e molhados pela neve da noite anterior, Collins pigarreou, para atrair minha atenção (que estava bem mais interessada em contar o número de cercas, carvalhos e aves nos fios de eletricidade).

— Parece chateada, senhorita Katerina.

— Cansada. Nunca imaginei que férias fossem tão cansativas.

— Com saudades de casa então?

— Um pouco. Estou precisando respirar da minha própria vida. Já se sentiu assim, Collins? Querendo que o mundo todo fique em silêncio para você cuidar apenas de você mesmo por alguns dias?

— Frequentemente — ele sorriu, ajeitando os óculos no nariz. — Mas o mundo não para. Não faz exceções. Por isso, temos que nos adaptar a ele.

— Ele tem sido um tremendo filho da mãe comigo. O mundo, entende? Estou precisando de uma maré de sorte expressa tamanho família ou uma daqueles programas de proteção a vítimas que te mandam para outro país com um novo nome, identidade. Alguma coisa assim.

Aquilo fez Collins rir. Não sei se foi o palavrão ou o modo cansado com que bufei no final da frase.

— Ainda com problemas sobre aquele assunto que conversamos?

— Eu resolvi uma parte daquele assunto. Aliás, sou mesmo uma mentirosa tão ruim assim?

— Demais — ele ergueu as sobrancelhas, o que dava mais profundidade para a resposta. — Tão ruim quanto parece ser para disfarçar o que está pensando, senhorita Kate. Ou eu devo assistir muitos seriados policiais e ler muito Arthur Conan Doyle ultimamente.

— Vou tentar melhorar. Não é muito educado ficar demonstrando o que eu penso todas as horas.

— Mas você se sai muito bem na maior parte do tempo. O problema é que quando o assunto é sobre uma pessoa em particular, a senhorita fica bem mais transparente. Como mais cedo, aqui dentro do carro. Tenho certeza que nunca a vi tão surpresa antes, nem mesmo quando Leopold a chamou para conversar depois do nosso jantar em Nova Iorque.

Respirei fundo e as cercas voltaram a parecer importantes. Pelo menos bem mais importantes do que relembrar o que Janet havia dito sobre Charlotte e Leo. Não queria sentir nada sobre aquilo. Não queria achar que tinha sido traída ou usada, nem começar a criar histórias imensas ou dar alguma razão para o discurso de Bruce na pensão. Preferia alimentar uma pequena ilusão de que tudo ficaria bem quando voltasse para a América e tudo que envolvesse Leo poderia ficar como uma doce lembrança das minhas férias de inverno.

Era melhor não me envolver mais. Tinha que aproveitar enquanto era apenas uma paixão, um sentimento novo, aquela ansiedade e agitação quase juvenil da descoberta da novidade. Leo tinha uma história, uma vida além de sua viagem para Nova Iorque e suas visitas a Barnes & Noble. Tudo que o tornava exatamente quem é estava naquelas terras, em York e não era nada anormal que esbarasse em seu passado enquanto estivesse ali.

Não tinha direito algum de cobrar explicações dele. Não havia nada entre nós, apenas beijos e declarações e... Santo Edgar Allan Poe, eu ia começar a chorar.

— Senhorita Kate... — Collins tocou meu ombro. Não tinha percebido quando paramos diante das escadas da casa dos D’Orleans.

— Estou bem. — respondi automaticamente.

— Tente sorrir. Deixe as preocupações aqui fora. Me prometa.

Ele saiu do carro e deu a volta para abrir a porta e me oferecer sua mão. Como um pai amoroso, Collins arrumou meus cabelos e limpou um cantinho de batom na minha boca antes de abrir um sorriso bonito e orgulhoso.

— Você está linda. Hoje é natal, por isso nada de tristezas, nada de pensar em mentiras, nada de chorar — passou os dedos perto dos meus olhos, me fazendo rir. — Aproveite.

Demos os braços para subir as escadas e dentro da casa dos Valois D’Orleans o clima de inverno parecia bem distante. Logo no hall uma grande árvore iluminada estava posta entre as duas escadarias para o primeiro andar e os vestígios de que um presente já havia sido aberto, ainda estavam espalhados pelo chão.

O aroma da casa se misturava com o cheiro bom de comida assando. Conseguia descrever os pães, bolinhos e claramente um peru, que devia estar borbulhando com molho e recheio na cozinha. Um verdadeiro festival para os sentidos, que era repleto de boas lembranças de alguns bons natais que passei com minha família, nas raras vezes em que todos estavam presentes para isso.

Collins me ajudou a tirar o trench coat e o cachecol, e me ofereceu um pequeno copo com um gole de licor de chocolate, perfumado e doce, para afastar o frio. Um gole já aqueceu meu rosto e a garganta, cumprindo bem com o prometido.

— Eles devem estar na sala, com certeza — disse sobre a família Valois. — Quer que eu a leve até lá? Fica logo no primeiro andar, duas portas a direita da sala de jantar.

Fiz mentalmente o caminho. Já sabia onde ficava a sala de jantar (daquele chá horroroso) e a biblioteca (...), então não devia ser tão difícil encontrar o caminho por mais duas portas. Minha noção de direção não era tão ruim quanto meus reflexos, acreditei.

O mordomo me deixou no hall, terminando de beber o licor e ainda um tanto abobalhada pelo tamanho daquela árvore de natal. Um pinheiro natural decorado com toda a sorte de enfeites, pequenos cavalinhos de madeira, duendes de louça, bolas de vidro vermelho e dourado, fitas de cetim brilhante. As luzes acesas mesmo durante o dia clareavam o cômodo.

Comecei a subir as escadas repetindo baixinho quantas portas eu deveria ir para a direita e pouco antes de terminar todos os degraus, uma música se misturou com o ambiente. Não vinha de nenhum rádio nem gravação, porque começava e parava bruscamente, cada vez em um trecho distinto, algumas no princípio, depois de poucas notas.

Era notavelmente o som de um piano, tocado com lentidão, mas repleto de sentimento. Não reconhecia a música, não tinha nenhum talento nato para dizer que compositor era ou se podia ser alguma canção regional. Mas eu sabia que era uma melodia linda, rítmica e paciente, que ficava mais alta conforme eu passei a andar pelo corredor do primeiro andar, entre os arcos para outros cômodos e o caminho que reconhecia naquela imensa casa.

Percebi que as paradas eram seguidas de algumas notas em desarranjo, desafinadas, batidas com certa irritação. Seja lá quem estava tocando o piano, não parecia muito feliz com a própria capacidade de seguir a partitura e me lembrava muito das aulas de música que enfrentei junto com Adria na infância.

Encontrei a porta de onde a música vinha alta e nítida. Estava aberta e não me surpreendia que tudo lá dentro parecesse retirado de um cenário extraordinário. O piano estava perto das longas vidraças que tinham a mesma vista da biblioteca, sofás e uma escrivaninha repleta de livros e partituras não deixavam dúvida do uso do cômodo. As cortinas balançavam, as janelas abertas enchiam aquele estúdio de um frio cortante e mesmo assim, ele tinha a testa brilhante de suor.

Não sabia se devia entrar. Dali, em um passo entre corredor e porta, conseguia vê-lo e como se movia com cada tecla soando no lindo e lustroso piano. Fazia sentido que não conseguisse completar a canção...

Leo resfolegava e apertava os dedos quando relaxava as costas, exasperado pela própria dificuldade, recomeçando a música mais uma vez. Duas, dez, doze, vinte notas até que seus dedos falhassem e estragassem a melodia. E ele rangia os dentes, o rosto tenso facilmente visto da distância onde estava, sua respiração criando uma pequena névoa diante de seus lábios. Massageava o pulso com uma irritação palpável e tentava mais uma vez, mais suave, mais lento.

Andei devagar, os tapetes no chão abafando a minha presença por um momento até que Leo me notou pelo canto dos olhos.

— Kate... — pareceu surpreso em me ver, respirando fundo, passando a mão pelos cabelos que estavam arrepiados e úmidos.

Cruzei meus braços para tentar manter o calor e sorri, caminhando até o lado do piano, mais próxima dele. Leo parecia ter corrido uma pequena maratona até ali com sua pele corada e quente a despeito do inverno que entrava pelas janelas. Parecia que o piano tinha o derrotado em uma luta corpo a corpo, tamanho seu desalinho. A camisa branca estava por fora da calça jeans, os primeiros botões abertos, a gravata solta ao redor do colarinho. Uma bagunça imensa para alguém como Leo.

— Não quero atrapalhar. Por favor, continue. É uma música linda.

— Seria mais bonita se fosse tocada direito.

— Parecia bem pra mim. Por que não continua? — comecei a andar ao redor do piano. Não conseguia ficar parada com todo aquele frio.

— Tocar uma música dessa forma é um sacrilégio, Katerina. Mas eu insisto em tentar, mesmo que em algum lugar as boas musas da música estejam me amaldiçoando por tamanho pecado contra tal obra.

— Não acredito que elas achem isso um sacrilégio. Elas devem gostar de ver a sua dedicação.

— Talvez. Prefiro não abusar da boa sorte.

Ele se levantou, empurrando o banquinho para se afastar e tentar se colocar em prumo mais uma vez. Fechou os botões da camisa e passou a me observar andando por perto do piano, admirando o instrumento.

— Chama-se Valse. De Evgeny Grinko.

Valse? — tentei imitar seu sotaque fechado naquela palavra.

— O nome da música. E garanto que é muito mais bonita do que parece com a minha capacidade.

Inconscientemente, Leo fechou a mão e tornou a massagear o pulso como aquele gesto de tamborilar os dedos que sempre fazia quando estava na livraria, um costume que deixava sua pele ligeiramente marcada. Não tinha notado que havia uma discreta cicatriz em sua pele, um risco claro que marcava até perto da palma de sua mão.

— Não consigo imaginar.

Leo se afastou do piano e apanhou um celular que estava sobre a escrivaninha na entrada da sala. Ele estreitou os olhos, com uma dificuldade clara de enxergar as letras no visor, mas apenas um minuto depois deixou o aparelho apoiado à partitura no piano. A música não demorou em se soltar dos autofalantes do telefone, não com a mesma potência do instrumento original, mas com clara fluidez.

Sorri e fechei os olhos, balançando o corpo suavemente com a música, tentando acompanhar as notas com alguns murmúrios.  Me manter em movimento dava a falsa impressão de que não ia congelar com aquele vestido curto na frente do vento.

— Você sabe dançar, Kate? — a pergunta me fez abrir os olhos e rir.

— Não. Eu nasci com dois pés esquerdos nessa questão, Sr. Valois.

— Não parece. Está se balançando muito bem para alguém que tem dois pés esquerdos.

— Isso quer dizer que eu sou uma dançarina então?

— Não vamos abusar da sorte. Tire esses sapatos.

Olhei para ele sem entender. Tirar os sapatos? Eu estava com eles muito bem, obrigada.

— Tirar os sapatos?

—Vamos, Katerina. Faça menos perguntas. — ele sorriu, erguendo a sobrancelha antes de tirar os próprios sapatos e meias, deixando-os sobre o banco do piano e regulando o som do celular, para que ficasse mais alto. — Só pedi para tirar os sapatos, não foi uma proposta indecente.

— Está bem... — apoiei as mãos no piano para tiras as sapatilhas douradas e fiquei apertando os dedos contra o tapete, sentindo as extremidades geladas. — Está muito frio aqui.

— Eu sei. Agora, poderia me dar a honra dessa dança?

Leo se aproximou com um sorrir encantador, mais um de seus sorrisos que eu ainda não conhecia, o mais próximo daquele que vi primeiro no meu porão naquela noite de chuva. Quando ficou de frente comigo, se curvou com um abrir de braços galante, exatamente como imaginei que ele pudesse fazer a qualquer momento quando nos cumprimentávamos em Nova Iorque. Exatamente como um personagem saltado de um livro de romance vitoriano.

Tentei conter uma risadinha nervosa e encantada e segurei as pontas do vestido, fazendo o possível para dobrar meus joelhos e baixar meu queixo como os meneios que vi naqueles filmes históricos pela tevê.  Em seguida, ele estendeu a mão para mim e me guiou para perto até colocar seu braço ao redor da minha cintura.

— Se você continuar tão tensa assim vou pensar que está com medo de mim, Kate.

— Eu disse que não sei dançar — só conseguia olhar para meus pés, esperando para decidir se primeiro ia com o direito ou esquerdo.

— Mas não demos nenhum passo ainda — ele falou baixo, rindo.

— Eu sei — comecei a rir, nervosa, corando.

— Vou ter que te ensinar a dançar. Que vergonha, senhorita Dalton. — Leo balançou a cabeça, numa falsa recriminação. Soltou minha cintura e ergueu meu queixo, obrigando a olhar em seus olhos. — Sei que seus pés são interessantes, mas quero que olhe para mim.

— Okay — respirei fundo e senti meus joelhos estremecerem. Torcia para que Leo não soubesse o que conseguia causar.

— Agora, suba nos meus pés.

O quê? Subir nos seus pés? Você só pode estar brincando!

— Não posso fazer isso.

— Claro que pode. Coloque o seu pé direito sobre o direito e o esquerdo sobre o esquerdo. Não é tão complicado quanto parece, Kate. — ele ironizava e sabia que a provocação funcionaria comigo. No instante seguinte tirei os pés do tapete e estava pisando sobre os dele, tentando me equilibrar.

— Ai, meu Deus... — não conseguia parar de rir.

— Katerina, você está dispersa. Olhe para mim. Eu não vou deixar você cair. Confie em mim, se lembra?

Engoli meu riso nervoso e tímido assim que escutei suas palavras e passei meu braço sobre o ombro dele, para me apoiar. Logo que a mão de Leo estava firme nas minhas costas, ele se moveu um passo de cada vez sem nenhuma pressa, exatamente como seu modo de tocar o piano.

A princípio continuei tensa, sentindo minhas costas reclamarem. Mas bastou me sentir mais segura, prevendo para onde o próximo passo de Leo me levaria, que senti exatamente como meu corpo acompanhava o dele e a música em um compasso simples e único. Não sei se meus pés conseguiriam acompanhar sozinhos aquela valsa, mas estava absolutamente satisfeita daquela forma entre os braços dele, sem nenhuma palavra, fixa naqueles olhos de azul tão frio.

Meu coração estava aquecido ali, alimentado pela presença do Carma e a pequena fagulha de que eu levaria aquela dança como uma lembrança de York. E me lembrar disso, do sabor ruim que todas as ultimas coisas tinham me lançado, fez meus olhos desviarem do dele.

— O que foi? — ele não demorou em perguntar.

— Um pensamento.

— Você saiu daqui por um momento, pude notar. Onde você estava, Katerina? Na sua conversa da noite passada?

— Um pouco — respirei fundo e Leo diminuiu os passos sem me soltar. — Estava lá e aqui. Estava no hospital também, quando fui ver seu irmão de madrugada.

Achei que Leo fosse dizer algo sobre aquela informação, mas não disse. Com certeza Lucas tinha contado sobre minha visita ou mesmo sua mãe, não causando nenhuma surpresa nele aquele momento.

— E agora está apenas aqui?

— Em partes, eu acho. Algumas coisas me acertaram mais do que outras desde a noite passada. Outras eu acertei, literalmente — não deixei de sorrir em lembrar o tapa que dei em Bruce. — Eu sei que não tenho direito nenhum de fazer perguntas para você, nem de tocar em alguns assuntos.

— Posso então ser descabidamente sem educação em fazer uma pergunta, Katerina?

Assenti, voltando a olhar para ele.

— Sua conversa com Bruce. Você conseguiu o que queria?

— Não. Pelo visto só piorei as coisas. Foi uma conversa muito ruim.

— Entendo — Leo deslizou os olhos até a janela e eu entendi que estava pensando em algo. — Agora você pode perguntar o que queria. Não vou considerar uma pergunta desnecessária, eu garanto.

Engoli a saliva, olhando ao redor. Estava sentindo meu peito doer pela palpitação e ansiedade, a dúvida de qual seria a resposta que acabaria escutando. Mas possivelmente Londres me esperaria logo que amanhecesse a quinta feira e eu não queria deixar York com meu pensamento anterior de que tudo seria apenas uma lembrança.

Eu não queria uma lembrança.

— Eu conheci Charlotte Lewis hoje. Provavelmente você já sabe disso e também sabe que Luke me disse que ela é sua fisioterapeuta. Então pode deduzir que eu sei sobre o motivo das notas do piano não cooperarem com você, Leo.

— Ficaria mais surpreso se você não soubesse, Kate.

— Sim, a atendente curiosa ataca novamente. Só que dessa vez eu gostaria de não ter sido curiosa ou que as pessoas me dessem informações sem que eu pedisse. Sei que não foi por nenhuma maldade, mas houve um comentário sobre essa moça...

Leo fechou os olhos e não olhou para mim. Estava claro em como molhou os lábios e a linha de seu rosto se retesou. Havia um espinho naquele assunto, uma ferida como a cicatriz em seu pulso. Quando sua voz se soltou, não sei se desejei nunca ter tocado no assunto.

— Charlotte Lewis é irmã da minha noiva, Kate... E minha noiva está morta há cinco anos.


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