!!!! escrita por Terno


Capítulo 1
Capítulo único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/42962/chapter/1

Tempo nublado. Ele sentia o vento frio colidindo com força contra suas costas, tentando, inutilmente, empurrá-lo para frente. Sendo o último da fila, provavelmente era quem estava sendo mais castigado pelo ar em movimento.

Não era uma fila muito grande. Umas seis ou sete pessoas a sua frente, não sabia ao certo. Boa parte deles não devia ter uma idade muito diferente da dele. Alguns estavam acompanhados de seus pais, mas ele preferira vir sozinho. Não queria ver seus pais fazendo alarde na frente de todos devido a suas notas. Não que ele achasse que seu boletim fosse grande coisa, este ano. Nunca era. Quase sempre passava por alguns décimos acima da média. No máximo, um ponto acima. Mas isso era o mais importante para ele: Passar de ano. Se passasse, pouco importava a nota, ele não teria mais com o que se preocupar até o ano seguinte.

Este ano fora um pouco diferente. Ênfase para a expressão “um pouco”. Ele tinha começado a prestar um pouco mais de atenção nas aulas, e assim julgava ter melhorado seu desempenho. Afinal, era o nono ano do ensino fundamental. O último ano que o distanciava do ensino médio. E, para ele, isso era importante.

Finalmente chegara a sua vez. A essa altura, já tinha umas três ou quatro pessoas atrás dele, talvez. Não se dera ao trabalho de contar. Até porque isso não era muito importante para sua vida. Mas enfim, a mulher a sua frente estava esperando para que ele dissesse seu nome, e foi o que ele fez. Depois de alguns segundos de procura, ela lhe entregou um pedaço de papel retangular. Seu boletim.

Saindo da fila, postou-se ao lado dela e pôs-se a examinar suas notas. Não demorou muito para ele descobrir o que o aguardava.

Uma, duas, três. Três matérias em que ele tirara notas insatisfatórias. Seus olhos arregalaram-se, seu coração começou a bater mais forte. Ele sabia muito bem o que aquilo significava.

Uma nota ruim ou duas até ia. Se fossem apenas duas, ele ainda passaria de ano, embora ficasse na dependência. Mas não eram apenas duas notas abaixo da média. Eram três! E a escola não permitia que os alunos fossem dependentes de três matérias. Muito menos quatro, ou cinco, e assim por diante. Em outras palavras, ele fora reprovado. Adeus, ensino médio. Até o ano que vem. Ou não.

Ele começou a segurar o papel com mais força. Naquele momento, percebera que fizera bem em recusar a companhia de seus pais. Não que isso importasse muito. Claro, eles não iriam gostar nem um pouco da notícia, mas a bronca era o que menos lhe preocupava. A raiva deles eventualmente passaria. Não, a bronca dos pais era o de menos.

O fato é que aquele papel era a prova de seu fracasso. Tantos outros conseguiram ir para o ensino médio, mas ele não conseguira. Justo ele! Isso nunca acontecera com ele! Nunca fora desleixado. Não dava a vida pelos estudos, claro que não, mas sempre os levava a sério! Tudo bem, quase sempre. Mas o fato é, mesmo assim, ele não conseguira passar de ano!

Uma pessoa passou na frente dele. Ele olhou-a de relance. Era uma garota com um sorriso muito satisfeito no rosto. Ora, é claro que era no rosto. Ele nunca vira sorriso no umbigo nem em qualquer outra parte do corpo. Não que isso fosse relevante.

Ele conhecia aquela garota. Era sua colega de classe. Um desses tipos, de alguma forma, abençoados. As boas notas simplesmente vinham até ela, não precisava de esforço algum. Bem, talvez precisasse. Ele não conhecia muito da vida pessoal dela. Talvez passasse as tardes estudando, ou algo assim. Mas ela com certeza não parecia do tipo estudiosa. Passava quase a aula inteira conversando, ou desenhando, ou ouvindo música, ou lendo alguma coisa de total irrelevância para com a aula. E mesmo assim, suas notas eram as melhores da classe. Ou segundas melhores, não tinha certeza.

Obviamente, ela tinha passado de ano. Estava a caminho do ensino médio. E sem esforço algum! Isso o fez voltar os olhos para o papel e segurá-lo com ainda mais força.

Não era justo! Ele se esforçara bastante naquele ano! Com certeza mais do que aquela menina! E ainda assim, provavelmente ela estava segurando um boletim impecável, enquanto ele segurava o boletim de um repetente.

Uma gota caiu no papel, ele não sabia de onde. Então, finalmente ele percebeu outras escorrendo pelo seu rosto, e que estava respirando com dificuldade, aos soluços. Estava chorando, e com todas as razões para isso.

Ele sabia que era um fracasso perto de seus colegas. Sabia que esse incidente o perseguiria para sempre, mesmo que conseguisse passar no ano seguinte. Ele sempre seria um ano mais velho que o resto da turma, e esse fato estaria lá, imutável, sempre o lembrando do que ele era. Um fracasso. Uma falha humana. Uma mancha negra perto de seus antigos colegas impecavelmente bem sucedidos. Sentia-se sujo, indigno de estar ali. Escola alguma merecia um repetente. Era um estorvo para o progresso do aprendizado dos alunos. E ele também não merecia estar numa escola. Não poderia suportar o fato de estar entre dezenas de pessoas melhores e mais bem sucedidas do que ele. Sempre esmagado pelos outros. Sempre.

A essa altura, o papel já havia se rasgado, com tanta força aplicada pelas mãos que o seguravam. Suas unhas o perfuraram e lentamente começava a penetrar-lhe a carne das palmas.

Olhara mais uma vez para a garota genial. Ela falava animadamente com alguém ao celular. Provavelmente se gabando de seu sucesso.

Naquele momento, sua tristeza, desânimo e mágoa deram lugar a outros sentimentos: Ódio, rancor e inveja.

Afinal de contas, o que aquela menina tinha de especial? Nada! Não era diferente dele, nem de qualquer outra pessoa. E ainda assim conseguira se sair melhor do que ele! Conseguira chegar ao topo, que ele almejava desde o início do ano, sem obter sucesso! E agora estava esbanjando glória e felicidade, enquanto ele ainda jazia lá embaixo, sentindo o insuportável peso do fracasso sobre si.

O sangue agora começava a pingar de suas palmas e ir em direção ao chão, por ação da gravidade. A menina ainda falava ao celular. Aqueles olhos, brilhando de excitação, e seu sorriso absolutamente alegre eram como uma afronta ao orgulho do infeliz repetente. Como se ela estivesse gritando em alto e bom som “Olhem para mim, eu sou melhor do que aquele fracassado!” Ela não tinha o direito de estar tão feliz! Não tinha!

Olhou para suas mãos ensangüentadas. Sentia uma imensa vontade de usá-las para torcer o pescoço dela. Queria sentir seus ossos se partindo, ouvir seus gritos esganiçados e ver a pele do pescoço manchada pelo seu próprio sangue. Sim, ela merecia. Qualquer um que zombasse dele daquela forma merecia.

Deu um passo. Abandonara o lugar em que encontrara a humilhação. Continuou a avançar em direção a seu alvo. Ouviu-a dizer a palavra “tchau” e a viu guardar o telefone na bolsa. Ela então saiu do lugar e continuou andando, dando as costas para ele.

Aquele andar exibido e esnobe, afastando-se dele. Era como se dissesse “Você não é digno de chegar perto de alguém brilhante como eu”. Isso o deixou furioso, mas ele parou quase imediatamente.

Era inútil, afinal. E daí se o pescoço dela quebrasse? E daí se ela não chegasse à glória que a aguardava no ensino médio? Isso não mudaria o fato de ele ter falhado. Só o tornaria ainda mais fracassado, o suficiente a ponto de ser condenado a viver numa cela, junto com outros fracassados, isolado da digna e bem sucedida sociedade.

Saiu da escola. Andou pela calçada num estranho estado de entorpecimento. O mesmo quando entrou no ônibus e ficou de pé lá dentro.

Depois de alguns minutos, finalmente saiu do ônibus. Andou mais alguns metros até sua residência. Ouviu a voz de um comentarista esportivo narrando um jogo de futebol ao abrir a porta. Provavelmente vinda da televisão.

Passou direto por ela. Ouviu seu pai gritar alguma coisa sobre o boletim, mas não deu ouvidos. O papel rasgado estava em seu bolso, perseguindo-lhe com a notícia de seu eterno fracasso. Chegou ao quarto. Entrou, fechou a porta e se atirou na cama.

As lágrimas voltavam a escorrer de seus olhos e ele voltava a soluçar. Começou a sentir a típica e incômoda dor de cabeça que vem durante ou depois do choro. Enfiou o rosto no travesseiro. Imediatamente, respirar ficou ainda mais difícil. Era provável que acabasse perdendo o fôlego.

Será que isso seria ruim? Por que o mundo precisaria de mais um fracassado? Que falta ele faria?

Ele começou a sentir dor. Tanto nas palmas das mãos, que já estavam manchando os lençóis brancos com sangue, quanto no peito, por falta de oxigênio. Ele sabia que merecia isso. Era sua punição por ter fracassado.

Por fim, não agüentou mais. Virou-se, puxando o ar com força, quase involuntariamente. Seu coração martelava-lhe com força o tórax.

Fechou os olhos. Depois de um tempo, voltou a respirar com mais facilidade. Então, finalmente perdeu a consciência, ainda respirando suavemente, enquanto seu sangue continuava escorrendo de suas mãos até os lençóis.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "!!!!" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.