Muitas Pessoas, Apenas Um Céu escrita por Foxbold


Capítulo 2
Capítulo 1 - As garras do mar




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Nós não éramos amigas, minha mãe e eu. Sei que todas as pessoas brigam de vez em quando, mas simplesmente não nos suportávamos. Discutíamos por qualquer motivo idiota, e até mesmo um olhar podia gerar uma revolta vez por outra. Apesar de não me entender, ela não era o tipo de pessoa agressiva e incompreensiva. Seu problema era apenas comigo. Para falar a verdade, minha mãe era a pessoa mais doce que já tive o prazer de conhecer. Ela cantava enquanto lavava os pratos, com seus olhos azuis como o mar refletidos no brilho molhado da porcelana. Sempre cheirava a lavanda e nunca tirava o sorriso do rosto. Quando andava pelas ruas, quase podia perceber os pássaros se aproximando dela (e até as pessoas).

Morávamos numa casa na beira do mar, minha mãe e eu. Sozinhas, porque meu pai se separou dela quando a pequena eu ainda nem era nascida. Sei que seu nome era Charles, que usava paletó marrom e flor amarela na lapela. Tinha um sorriso contagiante e sempre contava boas piadas. Minha mãe diz que puxei seu nariz afilado e sua pele branquíssima, mas admite que o traço mais forte em nós dois era o espírito aventureiro.

A nossa casa não era muito grande. Para falar a verdade, nem um pouco. Por fora, parecia minúscula (e por dentro, menor ainda). Mas ela era como um coração de avó: sempre cabe mais um. A cozinha quase sempre cheirava a torradas recém assadas e quando o sol das quatro horas entrava pela janela e o vento da maré bagunçava meus cabelos, sentávamos na pequena mesa de madeira azul claro desbotada e tomávamos café. As ondas batiam do lado da casa, que era separada do mar apenas por uma pequena escada de pedra desgastada pelo sal. Eu tinha medo de pular no oceano, porque parecia (e era) uma massa cinzenta e molhada enorme que me engoliria e me sufocaria se tentasse adentrá-la. Nos dias de chuva, quando as águas se revoltavam, eu tinha medo. O céu e o mar se misturavam de uma forma fantástica e aterrorizante. Olhando para frente, não era possível ver nada além de uma planície cinza. Fechávamos as janelas e esperávamos, dentro do quarto, a tempestade passar. Minha mãe me colocava no colo e lia histórias sobre baleias que engoliam pescadores.

Com o passar do tempo, fomos nos entendendo cada vez menos. Ela tinha planos diferentes dos meus, acreditava em coisas diferentes das minhas. Não éramos compatíveis. A única... a única coisa em que pareço com ela são os olhos. Meu pai tinha lindos olhos cor de vidro. Calmos, serenos, frios, enquanto ela tinha olhos azuis vivos e audaciosos, como uma piscina ou as águas das praias californianas. Os meus... olhos são uma mistura dos dois. Um azul claro não tão vivo, mas também não tão gélido. Eu sou uma filha da discrição e do espetáculo. Sou uma filha do simples e do complexo. Uma filha do humilde e do extravagante. Nossos olhos são os que nos conectam.

Mas esses olhos...

Esses olhos também foram a minha perdição. Foram a causa da perda de tudo o que eu tinha. E de tudo o que eu amava.

Duas ruas depois da nossa casa havia uma lanchonete. Toda noite, minha mãe ia até lá e comprava dois mistos quentes, um para mim, outro para ela. Naquela noite – ainda me lembro bem - as ondas do mar iam e voltavam, batendo no muro da casa, gastando a rocha da escada, como sempre. As águas foscas lodosas lambendo a beira da janela, como grandes braços de escuridão. Naquela noite nós brigamos.

Não foi uma briga normal. Não foi como das outras vezes, quando apenas discordávamos e discutíamos por alguns minutos e pronto. Naquela noite, eu errei. E eu nunca vou me perdoar.

- Então eu preferia que você não fosse minha mãe! – gritei, chorando e bati o punho na mesa.

Ela não falou nada. Não olhou no meu rosto como sempre fazia e dizia que deveríamos acabar a discussão. Ela apenas se levantou devagar, encarando o chão, e disse: “Vou comprar os sanduíches.”

Fiquei esperando, olhando pela janela, as lágrimas caindo no mar e se misturando com as ondas. Naquele momento, eu não me arrependia. Era só uma criança com raiva.

Esperei uma.

Duas.

Três.

Esperei quatro horas.

Quando o relógio marcava 11:59, comecei a me preocupar. Por que ela estava demorando? A lanchonete já deveria estar fechada, àquela hora da noite. Será que havia encontrado algum amigo pelo caminho? Mas, apesar de esperar ainda mais meia hora, ela não voltou. Eu não vou lhe dar expectativas. Foi isso o que aconteceu: ela nunca mais voltou. E eu estaria esperando até hoje. Se houvesse a mínima chance sequer de que ela voltasse, eu estaria lá. Naquela casa velha. Mesmo que suas paredes já tivessem sido completamente destruídas pelo sal e a escada nem existisse mais. Mesmo que a cozinha não cheirasse mais a torradas e os pescadores passassem o resto de suas vidas dentro das baleias. Eu estaria esperando. Porque eu nunca mais me arrependi tanto de ter dito alguma coisa do que naquela dia, quando disse “eu não te amo”.

Desaparecida: Mary Greenfield

Endereço: *******

CPF: ***

Telefone: (**)********

Por favor, entrar em contato o mais rápido possível.

Descobri aos 15 anos que Mary Greenfield – minha mãe – nunca mais voltou para casa porque havia sido sequestrada e – aparentemente, segundo os policiais – estuprada em alguma propriedade rural abandonada a quilômetros da cidade. Provavelmente, nunca acharíamos seu corpo. Não houve enterro. Eu não deixei. De Mary Greenfield nada sobrou, apenas uma filha, que em nada se parece com a mãe, a não ser pelos olhos.

A casa? A casa está lá até hoje. Provavelmente sua mesa velha de madeira azul já foi comida pelos cupins e a cozinha agora cheira a água pútrida. Provavelmente, caranguejos e ostras fizeram suas moradas entre as vigas do chão e a escada de pedra não existe mais. Provavelmente os livros de história dos pescadores agora são restos de papel velho e grudento no assoalho.

Depois daquela noite, só uma coisa restou: eu.


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Notas finais do capítulo

Postei o primeiro capítulo no mesmo dia pra dar um gostinho. Se gostaram, avaliem, isso me ajuda a ter uma noção do que eu devo fazer :3



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